domingo, 29 de abril de 2018

A última partida de um país que já não existia



Uma declaração atrapalhada do porta-voz do Partido Comunista da Alemanha Oriental no final da tarde de 9 de novembro de 1989 resultaria, na noite daquele mesmo dia, na queda do Muro de Berlim. Ninguém estava muito preparado para o que ocorreria a partir daquilo. Isto inclui a Federação Austríaca de Futebol e a prefeitura de Viena. Na semana seguinte após a queda do muro, estava marcada a partida entre Áustria e Alemanha Oriental, que definiria quem ficaria com uma vaga para a Copa do Mundo de 1990. Mais de 50 mil alemães orientais aproveitaram a fronteira recém-aberta e foram para Viena assistir a partida, tornando basicamente a equipe uma local estando fora de casa. A Alemanha Oriental perdeu o jogo e ficou fora do Mundial.
A desclassificação alemã oriental acabaria sendo muito importante para o futuro da sociedade alemã. A partir do começo de 1990, começou a crescer nos dois países a ideia de reunificação das Alemanhas, projeto que foi logo incorporado pelo governo alemão ocidental. A campanha e o posterior título da Alemanha Ocidental na Copa da Itália foi parte fundamental do processo de criação de uma unidade entre duas sociedades tão distintas durante aquele ano. Isto certamente não teria acontecido se os alemães orientais tivessem a sua seleção na mesma competição.
Com o apoio americano e aproveitando o sentimento criado pelo futebol, os governos alemães decidiram marcar um plebiscito nas duas nações para votar a reunificação. Para convencer o governo soviético, o governo alemão ocidental deu basicamente uma montanha de dinheiro para a URSS e assinou um documento se comprometendo a manter os monumentos em homenagem aos soldados soviéticos mortos na Segunda Guerra que até hoje existem em território alemão. França e Inglaterra eram contrárias à reunificação, mas EUA e URSS deixaram bem claro que seriam eles que decidiriam. Marcou-se o plebiscito para o início de setembro e a proposta de unificação venceu com mais de 80% dos votos.
Após isto, seria necessário escolher uma data em que a reunificação oficial ocorreria e a escolha foi a mais pragmática possível. Optou-se por 3 de outubro, basicamente porque o primeiro final de semana deste mês costuma ser o último antes da chegada do inverno e o governo alemão desejava que a data fosse o grande dia de celebração nacional nos anos posteriores, com festa nas ruas. Era muito importante que o 3 de outubro fosse gigantesco e superasse o 9 de novembro como data oficial da reunificação. O dia 9 de novembro coincide com o aniversário da Noites dos Cristais em 1938 na Alemanha nazista, e existia o temor no governo alemão de que a transformação deste dia em feriado facilitasse a existência de manifestações da extrema-direita celebrando o triste evento.
A Alemanha Oriental, assim, passou o mês de setembro de 1990 como “país-fantasma”, com data marcada para deixar de existir. No final deste mês, a seleção de futebol deste país perto de ser extinto tinha um amistoso marcado contra a Bélgica em Bruxelas. Contrariando a opinião pública dos dois países, Bélgica e Alemanha Oriental decidiram manter o amistoso. Difícil, porém, foi encontrar jogadores na quase extinta Rep. Democrática Alemã que se dispusessem a participar deste evento. Após inúmeras convocações e recusas, a Alemanha Oriental conseguiu arranjar doze jogadores que toparam jogar, sendo que nenhum deles era goleiro. Um meio-campo foi improvisado na posição. Um destes jogadores era Matthias Sammer. Principal nome da seleção alemã oriental à época, Sammer seria o grande nome do primeiro título da Alemanha unificada na Eurocopa de 1996 e último alemão a ganhar a Bola de Ouro, no mesmo ano.
Num dia frio e chuvoso, a seleção da Alemanha Oriental entrava com apenas um jogador reserva e sem técnico num estádio vazio belga para fazer sua última partida. A Bélgica massacraria a seleção alemã oriental durante todo o primeiro tempo, mas por aqueles motivos que apenas o futebol explica, não conseguiu fazer o gol graças à atuação do meio-campo improvisado no gol. E, para surpresa geral de todos, no começo do primeiro tempo Sammer abriu o placar para o país em extinção. O gol de Sammer gerou um enorme interesse na partida dentro da Alemanha Oriental, algo do tipo “não acredito nisso” e calcula-se que a quantidade de TVs que ligaram na partida multiplicou-se por sete nos cinco minutos seguintes ao gol. Aguentando a pressão, a Alemanha Oriental faria 2x0 no final do jogo, com o mesmo Sammer. O final desta partida resultou em lágrimas e numa comoção espontânea nas ruas da Alemanha Oriental. Muitos consideram que esta partida deu início ao movimento que chamam de “ostalgie”, uma certa nostalgia que alemães orientais têm de seu antigo país. Uma multidão receberia os doze jogadores após a partida.
A reunificação alemã foi de certa forma cruel com o futebol alemão oriental. Os clubes do antigo país, outrora competitivos nas competições europeias, foram destruídos pela incapacidade de competir com os milionários times do antigo vizinho do Ocidente. A partida citada acima transformou Sammer no maior ídolo esportivo na região que era a Alemanha Oriental. Isto até hoje. Para se ter uma ideia, a contratação de Sammer pelo Borussia Dortmund em 1991 transformou o Borussia em time de maior torcida naquela região, situação que permanece inalterada atualmente. Durante os anos 2010, o Bayern de Munique inclusive contratou Sammer para o cargo de diretor técnico, com o objetivo de conquistar o mercado alemão oriental. Não deu certo. O futebol naquela região passa hoje por um suspiro graças ao investimento financeiro que a Red Bull faz no clube da cidade de Leipzig, mas ainda muito longe de conseguir enfrentar os poderosos clubes do Ocidente.
A Alemanha possui quatro Copas do Mundo, sendo duas muito simbólicas para eles, 1954 e 1990. Ganhou três Eurocopas. Participou de algumas das partidas mais marcantes da história. Final de 1966 contra a Inglaterra, semifinal de 1970 contra a Itália, semifinal de 1982 contra a França, 7x1 no Brasil em 2014. Para quase metade do país, porém, o jogo mais marcante segue sendo um amistoso insignificante disputado num estádio vazio na Bélgica em 1990. Um dia em que doze jogadores jogaram com dignidade por um país que praticamente não existia. Apenas pela honra e por respeito ao passado.

domingo, 22 de abril de 2018

A inversão da relação causa-consequência no país da pós-verdade



A principal característica do momento de judicialização da política brasileira é a inversão da relação causa-consequência. Desde 2015, a consequência aparece antes da causa, que é criada e se ajusta para a obtenção do objetivo procurado. Os dois exemplos que darei neste texto são o impeachment de Dilma Roussef e a prisão de Lula. Em seguida, procurarei mostrar o papel da mídia em naturalizar esta inversão e como ela se adequa ao período da pós-verdade.
Dilma Roussef assumiu seu segundo mandato em janeiro de 2015. Em março do mesmo ano, aproximadamente 75 dias após esta posse, mais de um milhão de pessoas foram à Avenida Paulista pedir o seu impeachment. Meios da grande mídia, mercado financeiro e membros do Judiciário apoiaram a passeata. Já se sabia qual era a consequência desejada, mas ainda faltava criar uma causa que a justificasse legalmente. Para isto, inventou-se um crime de responsabilidade fiscal. Dilma teria cometido a tal das pedaladas fiscais, atrasando o pagamento do governo a bancos públicos para supostamente melhorar o balanço. Não há nenhum indício comprobatório de que a presidente efetivamente houvesse ordenado isto a seus ministros e o suposto crime havia sido cometido na gestão anterior. A Constituição deixa claro que é necessária comprovação de intenção do presidente no cometimento do crime e que este só pode ser julgado por coisas que aconteceram no atual mandato. Mas foda-se. É o que conseguiram achar como suposta causa para justificar a consequência que já desejavam. É o que legitimaria a farsa. A mídia fez seu papel de convencer a população que lá havia um motivo. Durante a votação na Câmara, ficou claro que ninguém estava nem aí para o suposto motivo. Família, Deus, maçonaria, corretores de seguros, Sérgio Moro, general torturador, economia, tudo foi citado, menos o tal crime. No fundo, ele era completamente insignificante.
A segunda consequência pedida naquela mesma passeata era a prisão de Lula. Eles ainda não sabiam o porquê a queriam, apenas a queriam. A maioria das respostas era “porque ele é ladrão”, seguido por gritos de “viva Cunha”. Mais uma vez, era necessário encontrar uma causa que justificasse esta consequência. Durante o clamor desta parcela da população, o dono de uma empreiteira foi preso. Após quase um ano em prisão preventiva, depois de negar várias vezes o envolvimento do ex-presidente a quem se buscava culpar, aceitou delatá-lo. Disse que tentou vender um apartamento para ele e que, como acreditava que a venda ocorreria, reformou este imóvel e depois cobraria este valor em reforma. Note que a situação é tão bizarra que não é o imóvel que seria a propina, mas a reforma do mesmo. Lula desistiu da compra, todo o sistema de propina é uma mera suposição, mas foda-se. Num dos interrogatórios contra Lula, Sérgio Moro perguntou sobre a instalação de um elevador no imóvel da discórdia. Usou sempre verbos no passado, indicando que a instalação deste elevador aconteceu e que seria uma das grandes “provas” de que este processo no futuro do pretérito era real. Nesta semana, um grupo do MTST ocupou o imóvel e descobriu-se que não há nenhum elevador ou indícios de que uma reforma tenha ocorrido por lá nos últimos tempos. Durante todo este período, nenhum órgão de mídia se interessou por um furo de reportagem de visitar o apartamento. Mais do que isto, o juiz do caso não permitiu que a defesa vistoriasse o imóvel prova da acusação. Uma situação bizarra.
Na era da inversão da relação causa-consequência, a simples existência de um processo já é o suficiente para que se legitime a realização de uma vontade, neste caso de punição. Dilma foi afastada e Lula foi preso pela vontade de um grupo de pessoas poderosas, a partir de causas forjadas que foram inventadas depois das consequências. O judiciário politizado fez sua parte de criar processos a partir destas invenções. A mídia fez sua parte ao endeusar este judiciário, tornando seus membros heróis nacionais e reinterpretando o sentido da palavra Justiça. Vivemos um período em que a vontade de alguns se sobrepõe sobre a verdade. Judiciário conservador, elitista e retrógrado, mercado financeiro rentista, mídia que faz o jogo desta turma. Cada um fazendo sua parte. O Brasil se tornou o país das causas inventadas. O país da pós-verdade.

sábado, 7 de abril de 2018

A era do absurdo e o futuro do pretérito



Antes de começar o texto, GOSTARIA de pedir desculpas pelo título. E deixar claro que todas as vezes que um verbo for utilizado no futuro do pretérito, utilizarei caixa alta.
Vivemos uma era de absurdos. E uma das principais características desta era é que o criminoso é considerado culpado pela opinião pública, e chamo de opinião pública a grande mídia e aqueles por ela manipulados, antes mesmo de que haja algum crime minimamente verificado. Escolhe-se um culpado e depois se procura o crime. Utilizarei nisso naquilo que chamo de tese dois exemplos: o impeachment de Dilma e a prisão de Lula.
Dilma foi eleita em outubro de 2014 e uma semana após sua eleição ocorreu a primeira passeata pedindo seu impeachment. Embora pequena, já era uma manifestação demonstrando a incapacidade de uma parcela da população, especialmente em SP, incapaz de aceitar a derrota nas urnas. Eles já queriam o impeachment, mesmo que ainda não soubessem qual motivo seria capaz de “legitimar”, mesmo que de forma fajuta, suas vontades. Em março, dois meses e meio depois da posse, a passeata pequena se tornou gigantesca. Mais de um milhão de pessoas vestindo verde-e-amarelo, clamavam por impeachment. Junto a eles, pessoas pedindo intervenção militar, a volta da monarquia e utilizando símbolos nazistas. Depois desta passeata, cresceu na opinião pública a ideia de que era possível o impeachment da presidenta. Para isto, era necessário achar um crime. Nisto, apareceu uma advogada lunática, segundo a qual Dilma TERIA cometido um crime de pedalada fiscal. TERIA atrasado o repasse de dinheiro do governo para estatais para melhorar os números governamentais. Qualquer coisa que parecesse um crime SERIA suficiente para justificar o processo e o deputado mais bandido da história do mundo comandou o processo que resultou no afastamento de Dilma.
Um segundo pedido daquela passeata de pessoas em verde-e-amarelo que continha gente pedindo intervenção militar, a volta da monarquia e utilizando símbolos nazistas era a prisão de Lula. Ninguém sabia qual era o crime, mas queriam Lula na cadeia de qualquer jeito. Ele era ladrão e pronto. Para isto, seria necessário inventar um crime. Talvez no futuro alguém entenda o quão bizarro isto é, mas Lula SERIA condenado três anos depois pelo seguinte crime. A OAS era dona de um prédio e queria vender um apartamento para Lula. Isto na época em que o ex-presidente era a pessoa mais popular no Brasil. Para aumentar a possibilidade de venda, a OAS fez uma reforma neste apartamento, esperando que isto aumentasse as possibilidades de sucesso da venda. Lula visitou o apartamento com sua esposa. Esta gostou do imóvel, mas Lula não. Disse que não havia sentido um casal idoso comprar um tríplex. Alguns anos depois, um juiz tentando agradar a esta opinião pública que já tinha um culpado sem ter crime PRENDERIA o dono dessa construtora. O juiz manteve o empreiteiro preso até que ele o ajudasse a criar um crime. Dois anos depois, o empreiteiro fez sua parte para sair da cadeia. Disse ele em delação premiada que a reforma do apartamento que jamais foi de Lula SERIA uma propina. Lula RECEBERIA o apartamento e em troca FARIA lobby da construtora sabe-se lá onde. Lula SERIA considerado dono com base única e exclusivamente em delações. Não há documento algum que comprove sua posse. É como se eu juntasse algumas pessoas e dissesse que o apartamento em que você leitor(a) mora não é seu. Mesmo sem ter documento algum, isto SERIA suficiente neste mundo bizarro criado para condenar Lula. Se testemunhos servem para provar a posse, também servem para provar a ausência de posse, afinal.
Uma pessoa está na cadeia por um crime inventado. Por um crime do futuro do pretérito. A mídia repete à exaustão que o processo legal foi seguido. Como se o processo legal fosse suficiente para justificar a condenação por um crime que não existe, a não ser no futuro do pretérito. Mandela foi condenado por um processo legal. Luther King também. O processo não diz nada se aquilo que o motivou foi uma farsa. Para que esta farsa tivesse sucesso, a atuação da grande mídia foi fundamental. Anos repetindo mentiras para que elas ficassem gravadas na mente de boa parte da população como verdade. A revista Isto É trazia Lula vestido de presidiário antes mesmo do tal processo no futuro do pretérito existisse. A revista Veja contava em sua capa sobre um suposto plano que Lula TERIA para fugir para a Itália. A lei nunca foi tão descumprida na condenação de alguém como foi no caso de Lula. Mas já é claro que não há mais lei, afinal. A base da legislação, a presunção de inocência, já foi pro saco nesta época punitivista.
Na última pesquisa presidencial, Lula, o condenado no futuro do pretérito, aparece em primeiro. A turma do verde-e-amarelo diz que é porque o povo é burro. Eu acho que é pelo contrário, o povo é muito inteligente e de certa forma percebe a farsa. Vivemos o pior Brasil da nossa geração enquanto a mídia não se cansa de afirmar que ESTARÍAMOS avançando. O antigo segundo colocado que agora chega à liderança é Jair Bolsonaro, o fascista. Esta turma do verde-e-amarelo já conseguiu realizar seus dois primeiros pedidos. Dilma fora e Lula na cadeia. Qual será? O Rio já vive sob intervenção militar. É o futuro do pretérito comandando uma era de absurdos.

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Maluf, Lula e o punitivismo como instrumento do fascismo



Paulo Maluf é um filho da puta. Creio que poucas pessoas tenham dúvidas sobre isso. Roubou, mentiu, apoiou uma ditadura. Paulo Maluf merece ser tratado com dignidade. Foi preso aos 86 anos. Com câncer. Uma parte da sociedade comemorou seu sofrimento. “Está sendo feita justiça”. Maluf conseguiu um habeas corpus. Revolta. “Injustiça e impunidade”. Não interessa que o ex-governador esteja em prisão domiciliar e tenha os bens bloqueados. Apenas a privação total da liberdade é vista como uma forma de se fazer justiça. Justiça é igual a sofrimento e humilhação.
Paulo Maluf é claramente culpado. Mesmo ele merece ser tratado com dignidade. Está no fim da vida e não há sentido em impedir que viva o final de sua vida com o mínimo de qualidade. Mesmo as pessoas menos decentes devem receber um tratamento decente no final da vida. Não há sentido em prisão que não seja domiciliar para pessoas em idade avançada e que não representam perigo à sociedade. Não é o caso do médico Roger Abdelmassih, cuja liberdade claramente representa um risco. Mas no caso de Maluf, serviu apenas como prazer para gente que perdeu qualquer capacidade de empatia humana. Não deixa de ser curioso que Maluf tenha feito parte da sua carreira estimulando este ódio e punitivismo. “Lugar de bandido é na cadeia”. Nada melhor do que aproveitar o caso de Maluf para se mostrar diferente de Maluf. Sejamos melhores que este tipo de pensamento. Infelizmente não somos.
Uma das maiores marcas do avanço do fascismo no Brasil é a tara por punição. As pessoas estão com ódio e querem ver sofrimento. Cada foto de político sendo preso pela Lava Jato, raspando o cabelo e tirando foto com cara de tristeza causa festa na turma do verde-e-amarelo. Pessoas saem nas ruas com as cores do país pedindo o fim da impunidade. Comemoram cada prisão e reclamam de todo habeas corpus. Prisão igual a justiça, liberdade igual a  impunidade. Sérgio Moro, ídolo da turma fascista, mostrou em entrevista na TV o número de pessoas que colocou na cadeia como sinal de competência. Não deu importância aos casos em que suas decisões condenatórias foram revertidas em outras instâncias. Inversão da presunção de inocência, agora todos são culpados até que se prove o contrário. Estímulo às delações, que são premiadas até no nome e são consideradas por si só uma prova. Prisões preventivas eternas. Tudo estimulado por uma mídia que aposta no medo e no ódio de forma comercial. Pessoas com medo ficam em casa e consomem. Na falta do que gostar, o ódio une e permite a manipulação. Pessoas deste tipo se consideram patriotas. Elas dizem amar seu país. Como elas o amam, todas que não concordam são automaticamente inimigas da pátria. Apropriaram-se dos símbolos nacionais e os utilizam para gritar por sua visão tosca de justiça.
Amanhã Lula possivelmente será preso. Quem acompanha este blog sabe minha opinião sobre o processo do ex-presidente. Ele foi, a meu ver, condenado sem provas, num processo farsesco que se transformou num circo midiático. Está sendo preso antes do julgamento em última instância, numa clara afronta à Constituição. Quem assistiu à análise do seu habeas corpus preventivo no Supremo pôde notar, caso ainda consiga pensar, o grau de bizarrice que tomou conta do Poder Judiciário. O voto do ministro Barroso, por exemplo, parecia vindo do programa do Datena. O ódio impede a turma do verde-e-amarelo fascista de ter qualquer empatia humana. Lula não é visto como um senhor de 74 anos sobrevivente de um câncer. É alguém que deve sofrer e cujas imagens na prisão significarão regozijos de alegria nesta turma. Apenas gente doente se alegra ao ver sofrimento. Uma prisão domiciliar do senhor de 74 anos não basta para quem o odeia. Mesmo que eu o achasse culpado, como acho que é o caso de Maluf, não conseguiria ficar feliz. Sinto-me humano por isso.
Somos uma sociedade doente. Pessoas que só sabem berrar e odiar estão vencendo todas desde o impeachment. Estão conseguindo impor sua visão de país. Nunca estivemos pior, mas para eles estamos melhorando. “Sendo salvos”. Tiraram o monstro da jaula e ele não para de crescer. Na boa, estamos fudidos...

quarta-feira, 4 de abril de 2018

O Evangelho segundo Deltan Dallagnol



Não há nada mais perigoso para um Estado laico do que um membro do Poder Judiciário que seja fanático religioso. O fanatismo cega e faz com que a pessoa aja não de acordo com a racionalidade das regras institucionais estabelecidas democraticamente, mas sim através de uma fé pessoal baseada em subjetividades em vontades pessoais. O fanático religioso é de certa forma alguém que se compara a Deus, que acredita que a figura divina está sempre ao seu lado. Por estar sempre ao lado do Ser superior, o fanático sente que O representa, sendo assim a sua vontade igual à vontade divina. Estando com Deus o tempo todo, o fanático se vê como estando sempre com a razão e tendo como função transformar a sua vontade, que afinal é a vontade divida, em realidade. É isto que explica, a meu ver, o grande número de fanáticos religiosos que no Brasil atual saem pedindo a morte e a prisão de quase tudo que se mexe para, aos domingos, comungar e rezar. Para esta gente, Deus no fundo não passa de um argumento de autoridade para justificar interesses pessoais, uma abstração cuja companhia permite tudo, especialmente o ódio. Jair Bolsonaro, por exemplo, poucos segundos após homenagear um torturador na sessão de impeachment de Dilma, disse que seu voto era em nome de Deus. Não há contradição na cabeça destes fanáticos, uma vez que o fanatismo não dá espaço para reflexão. Todo fanático se acredita um Deus, uma vez que trata sua vontade como vontade divina e se enxerga como um executor dos desejos do Ser maior que está sempre ao seu lado. Sociedades em que fanáticos religiosos chegam ao poder tendem a ser reacionárias e preconceituosas. Não há espaço para o respeito à diversidade com alguém que se considera um Deus. Quando se está com Deus, se é igual a ele, logo se atingiu a perfeição. Todo fanático é intolerante. Todo fanático se sente livre para odiar.
Deltan Dallagnol é um fanático religioso. Fala mais sobre a Bíblia do que sobre a Constituição. Descreve-se em sua conta no Twitter como alguém temente a Deus. Nesta semana, Dallagnol disse jejuar e orar para que uma pessoa fosse presa. O Deus de Dallagnol, portanto, é alguém punitivista. Considerando que Dallagnol acredita que suas vontades sejam também as vontades do Deus em que arduamente acredita, temos outras características desta representação divina. Dallagnol é contra o habeas corpus e a favor da liberação quase irrestrita das prisões preventivas. Provavelmente acredita que Deus está do seu lado nestas empreitadas. O Deus de Dallagnol não quer persão, o Deus de Dallagnol quer prisão. O Deus de Dallagnol, porém, não se opõe aos privilégios da casta judiciária, uma vez que sua ovelha mais importante recebe auxílio moradia mesmo morando na cidade em que trabalha. Dallagnol não faz jejum por distribuição de renda, igualdade ou paz. Tampouco ora para aprender a usar um Power Pont. Passa fome e reza apenas para pedir punição. Dallagnol quer vingança e não enxerga contradição em utilizar-se de sua crença divina para pedir o sofrimento de alguém, sem entrar no mérito de saber se esta punição é justa ou não. Quem lê este blog sabe minha opinião, mas o que está em pauta aqui é o uso de Deus com objetivos punitivistas.
É óbvio que cada pessoa pode ter sua interpretação de lei e suas crenças. O que é assustador é ver a quantidade de pessoas semelhantes a Dallagnol que fazem parte do nosso atual Poder Judiciário e que usam suas crenças para manipular a classe média que está com ódio de tudo, menos do que define como Deus. Marcelo Bretas, juiz da Lava Jato no Rio, elogiou o procurador fiel e também disse orar junto com seu irmão. Este recebe dois auxílios moradia, uma vez que sua esposa também é juíza.
O fanático religioso perde a capacidade de qualquer autocrítica. Somos uma sociedade que aos poucos é dominada por este fanatismo. Deus está em todos os discursos, principalmente nos que defendem o ódio. Não há espaço para amor e compreensão. Uma sociedade em que pessoas dessas julgam e condenam não é mais capaz de discernir certo de errado. Uma sociedade que utiliza estas figuras como exemplo não tem futuro. É medonho como pessoas que se dizem conscientes toparam se unir a este tipo de gente, sem olhar na história para onde as sociedades caminham quando seguem este caminho. Todo governo totalitário de direita se apoia no fanatismo religioso. Bem-vindo à República Fundamentalista do Brasil.