sexta-feira, 28 de setembro de 2018

A Falsa Polarização entre PT e Bolsonaro



A palavra “verdade” vem tendo uma definição extremamente frágil nesta eleição. A impressão que tenho é que cada um tem uma. Tenho uma conhecida que é eleitora do Bolsonaro, por exemplo, que vive claramente num mundo paralelo. Entrar no facebook dela significa ver a paranoia mentirosa em que este tipo de eleitor vive. Com a grande mídia não é diferente. Para tentar ajudar Geraldo Alckmin, criaram a fantasia de que PT e Bolsonaro são “extremos” comparáveis. O objetivo deste texto é tentar mostrar o tamanho desta mentira.
O governo do PT teve inúmeros defeitos. Para citar alguns, posso dizer que sem dúvidas as alianças com partidos inescrupulosos levaram a diversos casos de corrupção. O governo Dilma foi inegavelmente infeliz na condução da política econômica. Não podemos, porém, negar o óbvio: o PT SEMPRE, repito, SEMPRE, respeitou as regras do jogo. SEMPRE tomou suas atitudes de forma a se adequar e tentar vencer de acordo com estas regras. Mesmo em suas derrotas. Aceitou o resultado das urnas nas derrotas de 1989, 1994 e 1998 sem contestação. Tentou reverter o impeachment de Dilma dentro das regras estabelecidas. Tenta reverter a prisão de Lula também dentro destas regras, mesmo com o ex-presidente tendo uma facilidade gigantesca para obter asilo político em outro país. Tenta mobilizar a opinião pública mundial, mas em nenhum momento tentou derrubar as regras válidas. Um exemplo clássico para mim disto é a derrota de Fernando Haddad nas eleições municipais de 2016. Nenhuma pesquisa previa a vitória de seu oponente João Doria em primeiro turno. Quando esta aconteceu, Haddad em nenhum momento tentou contestá-la. Parabenizou seu oponente, montou no dia seguinte um gabinete de transição e participou da cerimônia de posse de seu sucessor. Lula, no final de seu segundo mandato, possuía 80% de aprovação. Isto não foi suficiente para fazê-lo sucumbir à tentação de um terceiro mandato. Recusou-se a alterar as regras. Também não utilizou o instrumento válido do plebiscito para nenhuma mudança constitucional. Ao contrário do que adora dizer a grande mídia, não aparelhou o Judiciário, sendo a perseguição que sofre deste Poder a maior prova disso. Foi Lula quem indicou, por exemplo, Joaquim Barbosa, carrasco petista no processo do mensalão.
A chapa Bolsonaro – Mourão, pelo contrário, já deixou claro que está, com o perdão do termo, cagando para as regras. Bolsonaro já contesta uma possível derrota que ainda não aconteceu, alegando fraude. Já está claro que não aceitará outro resultado que não a vitória. Já disse também que pretende alterar o número de juízes do Supremo de 11 para 21, podendo assim ter um Supremo cuja maioria fosse indicado por ele. Defende o Regime Civil-Militar de 1964 como modelo a ser seguido. General Mourão já disse também que defende uma intervenção militar. Os dois defendem a prática da tortura, incapaz de ser aceita num ambiente democrático, e já avisaram que tirarão o Brasil do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Diz Bolsonaro, entre outras coisas, o grande erro do Regime Militar foi ter matado “pouca gente”.
Outra tentativa que setores da grande mídia faz é de igualar comparar o “fanatismo” do eleitor lulista com o do eleitor bolsonarista.
O eleitor lulista adora Lula basicamente porque ele fez algo que melhorou a sua vida ou a de outras pessoas. O Bolsa-Família tirou o Brasil do mapa da fome. Milhares de famílias humildes viram seus membros mais jovens ingressarem na universidade, realizando um sonho que parecia impossível. A seca no Nordeste deixou de ter o impacto gigantesco que possuía até os anos 1990 graças a programas de apoio governamental. O salário mínimo, que comprava meia cesta básica ao final de 2002, comprava três cestas básicas e meia ao final de 2010. Milhões, desta forma, foram incluídos no “maravilhoso” mundo do consumo, que a publicidade tanto propagandeia como caminho para a felicidade. Cotas raciais foram adotadas na universidades federais, na primeira tentativa real em nossa história de reparar o grande erro histórico formador de nossa sociedade, a escravidão. É totalmente compreensível, portanto, o fato de uma senhora no semi-árido nordestino, que teve graças ao governo Lula, pela primeira vez, acesso a coisas que aqui em SP consideramos básicas, como tratamento dentário, tenha um enorme sentimento de gratidão a este líder. Podemos questionar sim o uso que o PT talvez faça disso, mas não podemos nunca, repito, NUNCA, deixar de respeitar o sentimento destas pessoas, que votam por gratidão a quem os ajudou.
Se a palavra que explica o “fanatismo” por Lula é gratidão, a palavra que explica o “fanatismo” por Bolsonaro é rancor. Se o eleitor de Lula vota no PT porque a vida de muitas pessoas melhorou durante seu governo, o eleitor típico de Bolsonaro vota no fascista porque quer ver a vida destas mesmas pessoas piorar. Em outras palavras, eles querem que as minorias que representem tudo aquilo que eles não são se fodam. No fundo eles querem que gays se fodam, por isso aplaudem quando seu candidato diz que crianças gays devem apanhar. Querem que negros se fodam, por isso não se importam quando o candidato é racista e faz piadas sobre quilombolas. Querem que mulheres se fodam, por isso não se importam quando seu candidato diz que uma deputada não é estuprada porque não merece. Simulam um ódio ao PT pelos defeitos do seu governo, principalmente a corrupção, mas não se importam em andar ao lado de gente como Eduardo Cunha quando possuem um objetivo em comum. Também simulam que são contra a criminalidade, mas aplaudem quando seu candidato faz apologia ao assassinato, ao estupro, ao racismo etc. Todos estes são crimes muito mais graves que corrupção, mas isto não importa. No fundo o que eles querem é um estado psicopata que elimine tudo que é diferente e que externalize todo o ódio e rancor que eles sentem por uma existência infeliz. Basicamente o eleitorado de Bolsonaro é composto por gente que leva uma vida de merda e odeia qualquer tipo de diversidade. O que explica sua opção por este candidato não é nada de bom que possa ser feito a alguém, mas o que pode acontecer de ruim a outras pessoas. Seres que nunca fizeram nada de ruim a estes eleitores aliás, mas cuja simples existência os incomoda, por serem "diferentes". São pessoas que, no fundo, só sabem desejar o mal e por isso um candidato como Bolsonaro as representa.
O segundo turno que se desenha será entre os dois “extremos” fabricados pela grande mídia Por mais que se fale em economia, a base da disputa será entre sentimentos. De um lado um eleitorado que vota por gratidão, amor, respeito e compreensão, com um partido que sempre respeitou as regras do jogo e a democracia. Do outro, um candidato que representa rancor, ódio, agressividade e julgamento, com um candidato que já deixou claro diversas vezes que não está nem aí para as regras democráticas. Minha dica é, de verdade, afaste-se das pessoas que tem alguma dúvida de que lado escolher no segundo turno. Elas não têm nada a te acrescentar. Aproveite que a eleição está tirando a máscara desta gente e escolha melhor quem faz parte da sua vida.

terça-feira, 18 de setembro de 2018

O imbecil



General Mourão é um imbecil. É a definição de imbecil. Quando procurarmos a palavra imbecil no dicionário deveríamos encontrar como sinônimo General Mourão. Toda sua retórica é baseada única e exclusivamente em preconceitos e ignorâncias. É uma pessoa que tem ojeriza do conhecimento. Um preguiçoso.
A família “tradicional” brasileira, que imbecis como Mourão dizem defender, não passa de uma invenção fajuta. Este conceito familiar de família composta por pai e mãe criando uma criança nunca foi tradição no Brasil. O que verdadeiramente é tradição no nosso país é a criação sendo tocada por uma mulher, seja ela no papel de mãe, de avó, de empregada doméstica ou de escrava. Esconder isto é esconder o papel covarde e relapso que homens sempre tiveram neste tema. Basta conversar com as pessoas e ver como é difícil encontrar pessoas que tenham duas gerações de famílias como estas que os que se dizem “tradicionais” argumentam defender. Este argumento só serve para que imbecis como Mourão impeçam a sociedade de enxergar a enorme culpa masculina nesta situação trágica e levar a masculinidade a questionar o papel tosco que representou em nossa história.
Segundo o IBGE, aproximadamente hoje temos 26,25 milhões de famílias que hoje não possuem figura masculina, chefiadas única e exclusivamente por mulheres. Isto desconsiderando aquelas em que os pais estão ausentes mesmo sendo presentes. Mulheres que com muita luta e garra se desdobram para manter seus filhos ou netos alimentados. Verdadeiras heroínas. Pessoas que deveriam ser enaltecidas pela sociedade. É completamente inaceitável que um imbecil como Mourão diga que estes lares são “antros de formação de traficantes” e ainda seja aplaudido por uma plateia provavelmente formada por homens. Minha formação foi quase totalmente responsabilidade de duas mulheres, minha mãe e minha irmã. Sinto-me numa sociedade de merda que não valoriza o trabalho surreal que foi para as duas me educar.
Na mesma palestra, o imbecil disse que a política externa brasileira deve deixar de privilegiar a “mulambada da África e da América Latina”. Os imbecis não sabem, mas o Brasil FAZ PARTE disso que o imbecil-mor chamou de mulambada. América Latina e África são nossos irmãos, nossa história é extremamente parecida com a deles. É assim que somos tratados pelo restante do mundo. Deixe-me explicar uma coisa, brasileiros imbecis que concordam com o general imbecil, sabe quando o Trump fala absurdos sobre latinos, sabe de quem ele está falando? Ele está falando de NÓS ! Mais do que nunca é hora de nos unirmos com a “mulambada”, uma vez que sofremos dos mesmos preconceitos e temos os mesmos interesses do que ela. Quando você, brasileiro imbecil, vai passear na Europa e descobrem que você é brasileiro, eles te acham “mulambada”. Pare de querer se identificar com que te trata desta forma e respeite seus irmãos, com quem pode crescer junto.
Se a família não é tradição, sabe o que é tradição neste país? A escravidão, por exemplo. Acho que podemos chamar uma instituição que foi legal por 388 dos 518 anos da nossa história de tradição, o que acha? O genocídio indígena, também é uma tradição. São Paulo é uma cidade que até hoje se orgulha dos genocidas. Basta ver o monumento a eles na entrada do principal parque da cidade. Sabe porque não conhecemos quase nenhum índio? Porque eles foram mortos quase todos. O Brasil tem que é que ter vergonha das suas verdadeiras tradições.
Mourão tem orgulho da palavra tradição. Porque é um imbecil. Imbecil não se preocupa com conhecimento, vai apenas repetindo merdas. Disse o imbecil-mor que “o Brasil herdou a malemolência do índio e a malandragem do negro”. Não é verdade. O que o Brasil herdou foi a arrogância do branco genocida e escravizador. Mas imbecis como Mourão não ligam para história. Querem inclusive tirá-la do currículo escolar. Não ligam, aliás, para especialista algum. Os especialistas em violência pública dizem, por exemplo, que a generalização do porte de armas iria aumentar a violência no Brasil. Mas foda-se. O imbecil vai responder ao especialista com algum meme.
O general imbecil vai para o segundo turno como vice do capitão imbecil. Enfrentará Fernando Haddad, Ciro Gomes, Geraldo Alckmin ou Marina Silva. Todos com projetos políticos que, discordemos ou não, não são imbecis. A obrigação de quem não é imbecil é votar em qualquer um dos quatro contra a República da Imbecilidade. Será humanidade contra barbárie.

domingo, 16 de setembro de 2018

O Poste



Fernando Haddad é bacharel em direito, com mestrado em economia e doutorado em filosofia. Integrou o Ministério do Planejamento por dois anos e foi Ministro da Educação por sete anos. Durante sua gestão, implantou o Prouni, que permitiu que milhões de jovens brasileiros realizassem o sonho de realizar uma universidade, e realizou a maior expansão do número de universidades federais da nossa história. Saiu do ministério para concorrer à Prefeitura de São Paulo. Exerceu o cargo de prefeito da maior cidade do país por quatro anos. Com experiência de sete anos como ministro e quatro como prefeito, foi lançado como candidato à presidência pelo PT na última semana, após a confirmação da invalidação da candidatura do ex-presidente Lula. É este Haddad, sete anos ministro e quatro anos prefeito, que a mídia apelida de “poste”.
O principal objetivo da adjetivação “poste” é impedir que qualquer debate de qualidade se faça em torno da candidatura Haddad. Um simples desrespeito pejorativo. Dos atuais candidatos à presidência, considero que apenas Ciro Gomes e Geraldo Alckmin possuam mais experiência administrativa do que o petista. Mas tanto faz. O importante é repetir a palavra poste na função de adjetivo para causar o maior dano possível.
Em 2010, dizem os “especialistas”, o “poste” foi Dilma. Ela havia sido a ministra mais importante do país durante seis anos e Lula a escolheu para tentar sucedê-lo. A mídia a acusava de ser “desconhecida”. Um sinal de que ninguém acompanha as “importantes” análises midiáticas afinal, uma vez que a ministra mais importante do país por seis anos era tratada como uma desconhecida. Ganhou, governou e foi reeleita em 2014.
Lula é o principal nome político do país há pelo menos 29 anos. Desde 1989 o cenário que temos é dele contra alguém. Venceu em 2002 e foi reeleito em 2006 basicamente porque praticou a maior distribuição de renda com crescimento econômico da nossa história. Realizou, como já dito no primeiro parágrafo, com a ajuda de Haddad, o maior programa de inclusão de jovens de baixa renda no ensino superior. Aumento o salário mínimo real de meia cesta básica para três cestas básicas e meia. Tirou o Brasil do mapa da fome graças ao Bolsa Família, programa que passou a ser copiado em outros países do mundo, inclusive a Itália. Reduziu drasticamente os efeitos que as estiagens de períodos de seca causam na região Nordeste. Já percebeu como matérias televisivas sobre este assunto escassearam nos últimos anos? Conseguiu tudo isto graças a algumas alianças duvidosas com gente que não presta, é fato, mas é necessária muita ausência de empatia e de humanidade para não compreender e respeitar o amor que uma parcela significativa da nossa população tem pelo ex-presidente. Mais do que isto, a palavra certa talvez seja respeito.
Não há respeito na cobertura eleitoral da grande mídia. Quem assistiu às sabatinas do Jornal Nacional com os candidatos percebeu isto. Os jornalistas se esforçavam para deixar bem claro que eles não respeitavam os candidatos e que fariam o possível não para saber algo sobre propostas, mas para tirá-los do sério. Quase como o CQC ou o Pânico. Marina não teve espaço para fazer nenhuma proposta sobre meio ambiente. Alckmin foi cortado quando tentou falar sobre reforma política. Ciro foi ridicularizado quando tentou explicar seu programa de ajudar pessoas a limparem seus nomes. Tudo que pôde fazer foi pedir às pessoas que entrassem no seu site para descobrir, enquanto os jornalistas o cortavam para perguntar sobre seu temperamento. No momento que eu julguei mais bizarro, Bonner chamou Marina Silva de líder fraca. Marina teve mais de 20 milhões de votos na última eleição. Quem é Bonner para chamar uma pessoa como Marina de “líder fraca”?
Já na primeira fala da sabatina, Bonner chamou Haddad de “poste”. Esta postura deve se repetir nas próximas sabatinas. Haddad não foi perguntado sobre educação ou sobre a revolução que produziu na mobilidade urbana na cidade de São Paulo. Passou os 30 minutos falando, basicamente, sobre casos de corrupção da gestão petista.
Quem acompanha o blog sabe que eu considero Fernando Haddad o melhor prefeito que SP já teve. Produziu, a meu ver, uma verdadeira revolução na cidade. Foi o primeiro a enfrentar verdadeiramente a ditadura do carro, priorizando totalmente o transporte público e a implantação de ciclovias. Priorizou a vida, reduzindo a velocidade nas Marginais, diminuindo o número de mortos na via e aumentando a velocidade média da circulação. Enfrentou a especulação imobiliária com um Plano Diretor extremamente elogiado por arquitetos. Geriu bem as finanças da cidade, tanto que elevou o grau de investimento da capital paulista mesmo durante a crise econômica. Liberou a Avenida Paulista para pedestres aos domingos, criando um verdadeiro parque de concreto aproveitado por milhares de pessoas semanalmente. Redefiniu a forma como o espaço público deve ser ocupado. Criou um programa de acolhimento a usuários de crack, que tiveram chance de tentar um recomeço profissional. Acolheu transexuais com o Programa Transcidadania, que deu cursos e empregos para pessoas que tantos preconceitos sofrem na nossa sociedade.
A população de SP não concordou comigo. Haddad perdeu sua reeleição para um candidato com discurso vazio e oportunista já no primeiro turno. Claramente a maioria das pessoas não compartilha minha visão. Em parte porque a eleição aconteceu durante o ápice do antipetismo, momento em que havia uma percepção de que a corrupção era praticamente exclusividade petista, em parte porque a população da cidade não enxerga com bons olhos as prioridades que Haddad escolheu. Não soube se comunicar com a maior parte da população. Tudo isto é fato. Mas debates políticos devem ser feitos com fatos e não com termos desrespeitosos. Haddad não é o poste de Lula. É o candidato apoiado por Lula. É extremamente capacitado e tem um trabalho pelo qual pode ser julgado positiva ou negativamente. Basta ter respeito.

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

A beleza de uma partida de futebol horrorosa



Flamengo e Corinthians empataram ontem por 0 a 0 no Maracanã pela primeira partida da semifinal da Copa do Brasil. Foi possivelmente o pior jogo de todos os tempos. Não digo que foi o pior evento esportivo de todos os tempos porque de vez em quando ainda assisto a corridas de Fórmula 1. Num exercício matinal de masoquismo em alguns domingos, fico vendo jovens milionários dando voltas em circuitos desinteressantes em veículos feios, única e exclusivamente porque isto me traz uma nostalgia gostosa da infância, de fazer isto quando criança estando junto do meu pai. Sobre Flamengo e Corinthians, foi horroroso e de uma beleza que apenas quem enxerga no futebol uma metáfora da vida foi capaz de compreender.
Assim como a vida, um jogo de futebol é um grande tédio, marcado por pouquíssimos momentos de emoção em que algo efetivamente acontece. Não importa o quanto uma partida seja boa, ela sempre poderá ser resumida em um compacto de três minutos. Isto quando o jogo é bom. Este Flamengo e Corinthians acho que dá pra reduzir em, sei lá, uns quarenta segundos. Do mesmo jeito que não importa o quão agitada tenha sido uma vida, sempre podemos reduzir 70 anos de experiência num livro de 600 páginas, isto no caso de uma vida realmente agitada.
No futebol, assim como na vida, ficamos um grande tempo parados esperando algo acontecer para que saiamos da mesmice. Este algo, quase sempre, é fruto de mero acaso. Por mais que especialistas, que entendem muito mais do assunto do que eu, fiquem falando na TV sobre esquemas táticos, desenhando aqueles quadrados imaginários no gramado, não consigo tirar da cabeça a impressão de que a maioria dos gols é fruto de puro acaso. É jogar a bola na área e ver o que acontece. É esperar o que o adversário erre e que o jogador do seu time fique de frente para o goleiro. É esperar um frango. Claro que há o componente treino e talento. Mas a maior parte dos gols é fruto de puro acaso, de sorte ou azar.
Poucas coisas são mais legais a meu ver do que assistir um jogo de futebol entre amigos e um deles ir ao banheiro no momento que sai um gol. O desespero desta pessoa saindo do toalete querendo saber o que aconteceu é hilário. Aquele sentimento de “fiquei uma hora assistindo esta bosta e bem quando eu saio acontece algo”. Eu muito raramente vou ao banheiro em jogos do meu time. Tenho sempre a expectativa, muito raramente atendida, de que algo pode acontecer neste exato momento em que eu estiver fora. Então lá fico eu, apertado e assistindo o grande nada.
Assim como na vida, os momentos em que o jogo de futebol sai do tédio são raros e exatamente por isso ficam marcados. Lembro-me exatamente do que estava fazendo em quase todos os gols importantes que o Palmeiras fez e levou desde 1992. Lembro-me de correr pela casa com o Marcos pegando o pênalti do Marcelinho e do silêncio que tomou conta do meu corpo enquanto um amigo corintiano berrava no meu ouvido depois da final do Paulista deste ano.
A principal lição que o futebol brasileiro nos dá é que, não importa o quão grande e “vencedor” seja o seu time, quase sempre o final será uma derrota. No campeonato brasileiro, um ganha e os outros dezenove perdem, por mais que, é claro, existam diferentes graus de derrotas. As vitórias virão bem de vez em quando e as aproveite ao máximo. Nas frequentes derrotas, aceite a zombaria e recomece. Não há nada diferente disto que possa ser feito. Uma graça do futebol brasileiro é o grande sobe-e-desce dos times. O Palmeiras estava na série B em 2013 e foi campeão brasileiro três anos depois. O Corinthians disputou a série B em 2008 e conquistava o mundo apenas quatro anos depois. Do inferno ao céu em um ciclo eleitoral, tudo isto movido a uma sucessão de tédios que duram 90 minutos.
Estou numa fase da vida em que acho que a verdadeira emoção vem do acaso. As melhores e as piores. O encontro inesperado e aquelas peças inexplicáveis que o destino impõe. Bola na área. Seja a favor ou contra o seu time. Isto que talvez tenha tornado a partida horrorosa entre Flamengo e Corinthians uma experiência tão prazerosa.
Na outra partida da rodada, o meu time Palmeiras era roubado em casa pelo Cruzeiro e perdia de 1 a 0. Os tediosos 90 minutos desta partida foram marcados por este erro da autoridade suprema. Reclamações, choros e xingamentos. Mas não há nada a ser feito. Quer algo mais simbólico da vida do que isto? A vida exige certo conformismo afinal. Levanta e tenta novamente, não há nada que corrija o passado.
Assistir a uma partida de futebol num estádio é uma experiência quase divina. Somos oniscientes e onipresentes. Só não somos onipotentes e por isso xingamos aqueles “desgraçados” que não passam a bola na hora certa ou que não conseguem acertar a esfera naquele retângulo enorme. É um grande sofrimento num evento tedioso, marcado por emoções em que a vitória significa quase sempre alivio e a derrota raiva. Quase como um dia de trabalho.
Em duas semanas, Corinthians, Flamengo, Palmeiras e Cruzeiro voltam a campo para as partidas de volta das semifinais. Estejamos preparados para mais 90 minutos de quase puro tédio, com explosões de alegria, tristeza, alívio, dor, felicidade e raiva de poucos segundos. Estejamos também preparados para mais duas semanas de quase puro tédio, com explosões de alegria, tristeza, alívio, dor, felicidade e raiva de poucos segundos.  Aprenda a lidar com o tédio. A vida é bela. O futebol também é. Não supervalorize as vitórias ou as derrotas. Não humilhe o derrotado nem se humilhe na frente do vencedor. Apenas aprenda e aproveite as experiências. Vitórias e derrotas são apenas momentos de um grande tédio.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Deus e o diabo na terra dos urubus



Adelio Bispo de Oliveira acredita em Deus. Na primeira declaração após sua prisão ocorrida após o ataque que marcará sua pobre existência, Adelio disse que foi Deus quem o ordenou a esfaquear o candidato à presidência Jair Bolsonaro na cidade de Juiz de Fora. O agressor saiu de Montes Claros, cidade em que mora, para realizar o ataque em outro município, o que mostra que ele e “Deus” premeditaram por algum tempo o ato que o tornaria de certa forma ilustre.
Jair Bolsonaro acredita em Deus. Cita-O sempre que possível, sem nem precisar marcar na mão junto com Lula, pesquisas e armas. Citou Deus, por exemplo, em seu célebre voto na sessão de impeachment de Dilma Rousseff, poucos segundos depois de homenagear um torturador que dizia ser “o terror” da vítima. Também O cita em todas as entrevistas, logo depois de defender a prática de tortura, a generalização do porte de armas, a agressões a homossexuais, a desvalorização da mulher etc. Alguns dias antes de ser esfaqueado, disse que estava na hora de "metralhar a petralhada", enquanto simulava uma metralhadora com um microfone. Brasil acima de tudo (Brasilien über alles, a versão tupiniquim do Deutschland über alles de Hitler) e Deus acima de todos são seus lemas.
A crença na existência de uma entidade divina é quase uma necessidade humana. Eu pelo menos desconheço que exista alguma civilização que em dado momento não tenha procurado explicações no sobrenatural. Uma grande sacada foi o momento em que a figura divina foi humanizada. “Deus nos fez a sua imagem e semelhança”. Ao equiparar o homem a Deus, considerou-se o ser humano como o ser superior, aquele que possui os mesmos dons do criador do universo. “Deus está sempre ao meu lado”, costumam dizer aqueles que têm grande fé em sua existência. Se Deus está sempre ao meu lado, estou sempre certo, é o que está por trás desta frase. Deus funciona como um argumento de autoridade para tudo aquilo que é feito por quem acredita Nele, independente disto ser algo moralmente bom ou ruim.
A humanidade tem diversos exemplos históricos de atos bárbaros cometidos em nome de Deus. As Cruzadas, feitas para devolver a Terra Santa ao Deus cristão. A Inquisição, não à toa chamada de Santa, que queimava o corpo e purificava a alma dos pecadores. O Holocausto, realizado por cristãos que queriam punir os herdeiros do povo que responsabilizavam pela crucificação de Cristo. Os ataques terroristas de 11 de setembro. Todas as guerras patrocinadas pelo governo americano. A grande sacada da crença em Deus é esta justificação. Em nome de um Ser invisível, que mora num universo paralelo e vê tudo que fazemos, vale tudo. Matar, torturar e dizer que uma concorrente “merece ser estuprada”.
Janaina Paschoal acredita em Deus. Sua imagem no Twitter é dela segurando uma imagem de santo. Citou Deus várias vezes durante o processo de impeachment, do qual foi a advogada de acusação. Silas Malafaia também acredita em Deus. Enriqueceu graças a ele. O Senador Magno Malta também acredita em Deus. Fez sua carreira política graças a ele. Os três têm em comum que, logo após o ataque, sem nenhum tipo de prova material, acusaram o PT pelo ocorrido. Nenhum dos três pediu desculpas e provavelmente nem pedirá uma vez que já está provado que Adelio é um desequilibrado que agiu sozinho. Pelo contrário, o que farão será espalhar notícias falsas. A verdade não é nada perto da “vontade de Deus”. A verdade não passa de um detalhe insignificante na "Guerra Santa" em que os três vivem. Isto não só para pessoas do lado representado por estas três figuras, aliás. Até agora vejo em minha timeline pessoas de "esquerda" espalhando notícias de que o atentado teria sido uma farsa e que “não saiu sangue” depois da facada. A era das teorias da conspiração.
Jair Bolsonaro creditou a Deus sua recuperação. No lugar dele, eu seria mais grato aos médicos do SUS, profissionais que trabalham em condições precárias e que salvam vidas diariamente. Verdadeiros heróis. Não vi em nenhum lugar o nome deles sendo citados por nenhum membro da sua crente família. O procedimento que salvou Bolsonaro custo ao SUS R$ 347,00. As Santas Casas das cidades de interior estão quebradas, seria interessante aproveitar o momento para falar sobre o papel do poder público no socorro a elas. Mas isto não acontecerá. Também poderia agradecer ao fato de que temos uma legislação que dificulta o acesso a armas de fogo para uma pessoa como Adélio. Numa sociedade como a defendida por Bolsonaro, provavelmente Adélio realizaria seu ataque com uma arma de fogo e provavelmente o “trabalho de Deus” ficaria mais complicado para Bolsonaro e mais fácil para Adélio. Aparentemente o candidato não concorda com esta visão. Sua primeira imagem no hospital após o ataque foi fazendo o gesto de uma arma.
Andar por São Paulo tem sido uma experiência extremamente assustadora neste período pré-eleitoral. Está muito claro que Bolsonaro representa a simbolização de uma fascistização da sociedade, de pessoas que acreditam basicamente na violência como instrumento de solução para todos os problemas. Pessoas paranoicas que enxergam a expansão da ignorância como fator “educacional” e que se sentem livres para espalhar todo tipo de mentiras e preconceitos. Fazem-no sem a menor vergonha. Estão com ódio nos olhos, “em nome de Deus”.
Os momentos que seguiram o ataque contra Jair Bolsonaro foram de euforia no mercado financeiro. Acreditam os investidores que a vitória do candidato fascista se tornou mais próxima agora que ele poderá usar o discurso de vítima. Os urubus pressentem a morte e se aproximam do moribundo enquanto ele convalesce. A democracia brasileira convalesce. “Em nome de Deus”.

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

A política e a ode à barbárie



Tudo aconteceu no dia 12 de maio deste ano, véspera do dia das mães. A policial Kátia da Silva Sartre participava de um evento em uma escola quando um bandido puxou uma arma anunciando um assalto. Kátia então puxou uma e atirou no bandido, que morreria um pouco depois. Não há dúvidas de que a policial fez o certo naquele momento, uma vez que agiu em legítima defesa. Isto, porém, não diminui o fato de que o que ocorreu foi uma tragédia.
Sociedades decentes tratam da forma mais decente possível mesmo as pessoas que agem da forma mais indecente. Mesmo cometendo um erro muito grave, o bandido morto ainda era um ser humano. O que se assistiu após sua morte foi um show de horrores. A mídia transmitia sem parar a imagem de sua morte, glorificando a atitude da policial que, segundo alguns apresentadores, deveria ser repetida e servir como exemplo para outros policiais. “Mate!”. No dia seguinte ao ato, da forma mais irresponsável possível, o governador Márcio França tentou obter ganhos políticos da tragédia. Foi até o Batalhão onde Kátia trabalha para realizar uma homenagem à policial. Chamou a mídia para isto e propôs uma bonificação à profissional. Expôs não apenas a policial a uma possível vingança, mas também falou onde ela trabalhava, indicando quem ela era áte onde trabalhava. Também incentivou mais policiais a agirem da mesma forma. Um verdadeiro urubu buscando ganhos pessoais numa tragédia que terminou com uma vida.
Pois bem, assistia eu o horário político na última quarta-feira quando me surpreendi com a imagem da tragédia. O PR, mesmo partido que tem como trunfo a candidatura de Tiririca, transmitiu sem cortes o momento em que uma vida era perdida. Em seguida, a policial Kátia apareceu, apresentando sua candidatura à deputada federal, dizendo basicamente que faria tudo novamente. O áudio do vídeo em que Kátia age contra o bandido havia sido refeito, de forma que a policial deixa mais claro o que falou ou lembra que falou no fatídico momento.
Sociedades caminham para a barbárie quando perdem gradualmente a humanidade. Vivemos um momento de glorificação da morte. Policiais não são mais vistos como agentes públicos que devem defender a ordem e usar a força apenas quando necessário (O que Kátia fez, aliás. Deixo mais uma vez claro que a policial agiu corretamente naquele caso, o problema é o que veio depois). Toda morte é uma tragédia, mesmo a daqueles que cometeram graves erros. Uma sociedade que se vangloria de uma morte como estas e repete à exaustão o vídeo em que ela ocorre, tendo algum tipo de prazer em assistir este tipo de coisa, tem sérios problemas. Kátia não chega perto de fazer nenhum tipo de proposta durante seu tempo no horário político. O objetivo é simplesmente obter ganho político da morte do bandido numa sociedade com medo e sedenta por sangue. Ganho para ela e para os outros políticos do PR, que pensam em chegar ao Congresso puxados pelos votos da tragédia. A propaganda de Kátia será intercalada com a de Tiririca nos próximos dias. Piada e tragédia andam juntos na sociedade do espetáculo. Paródia e sangue. Escárnio e barbárie.
Dois dos três principais candidatos ao governo do Estado têm policiais militares como vices. Policiais são provavelmente a classe mais vitimada pelo estado de guerra que vivemos. Pessoas em sua grande maioria que vem das classes com menor renda, enviadas para uma falsa guerra contra pessoas que normalmente são também de baixa renda para proteção de um Estado que não dá nenhum valor à vida destas pessoas. Os mesmos governadores que continuarão a pagar salários pífios para pessoas que arriscam suas vidas trazem postes fardados para simular preocupação com o que ocorre. No primeiro debate ao governo estadual, o mesmo Márcio França citou a homenagem que fez à policial como prova do compromisso que tem com segurança. À época, não citou o nome da profissional, provavelmente porque o esqueceu.
A exploração e glorificação da violência é um dos principais motivos da onda fascista que leva um candidato como Jair Bolsonaro a ter chances de vitória. O candidato segue ensinando crianças a fazerem sinais de armas com os dedos. Em carreata nesta semana, simulou estar com uma metralhadora dizendo que era necessário “metralhar a petralhada”. Um quarto dos brasileiros se mostra disposta a votar num candidato que diz isto. Que acha tortura algo admissível e que propõe um bônus financeiro para policiais que matem bandidos em confrontos. Vivemos um momento de ode à morte e de estímulo ao ódio.  Esta ode saiu das telinhas, onde a anos vem sendo estimulada por figuras como Datena, para as urnas. Não à toa, os partidos políticos sonham tanto em trazer o apresentador sedento por sangue para a política. Kátia é fruto de um país que se transformou numa tragédia e caminha rumo à barbárie. Fruto da espetacularização da violência. Fruto da falta de debate e reflexão sobre o assunto. Uma sociedade que glorifica a tragédia.



segunda-feira, 3 de setembro de 2018

O Brasil queima sua própria história



Na última terça-feira, o candidato Jair Bolsonaro foi entrevistado pela bancada do JN. Questionado pelo âncora William Bonner sobre a negação que faz do termo golpe para se referir ao Golpe de 1964, Bolsonaro citou o apoio que o dono da emissora em que era entrevistado deu ao mesmo golpe. O âncora não o rebateu, com medo de manchar a imagem fictícia de democrata criada para o ex-patrão já falecido. O Brasil, em geral, é indiferente à sua própria história e incapaz de analisar de forma mais ampla seus próprios erros, para desta forma corrigi-los. A imagem da tragédia do Museu Nacional do Rio sendo destruído pelas chamas é extremamente simbólica disto. Nossa história é queimada diariamente pela indiferença.
“Uma sociedade que não conhece sua história tende a repetir seus erros”. A frase, que sinceramente não sei se está descrita aqui ao pé da letra, está escrita no Memorial de Auschwitz. Impedir a repetição de erros é a principal função do trabalho histórico. O grande evento da história do Brasil é, sem dúvida, a escravidão. Nenhum outro evento foi tão importante na definição do funcionamento da nossa sociedade quanto ela. A origem das nossas desigualdades e de como as nossas relações de trabalhos foram desenvolvidas. Não há em SP nenhum museu dedicado exclusivamente a este assunto. Dizia Joaquim Nabuco no final do séc. XIX que cada brasileiro carregaria em sua pele as marcas deste período histórico, seja por ter feito parte do grupo que escravizou, seja por fazer parte do grupo escravizado. Completava ele que ao final da escravidão seria seguido um período de ainda maior duração e de igual dificuldade, que seria o das consequências dela. Uma sociedade hierarquizada e com pouquíssimas chances de ascensão social, que ocorre basicamente através do esporte e da arte. A inumanidade terminou com a Lei Áurea em 13/11/1888, mas foi substituída por outra, a do esquecimento. A elite brasileira daquele momento, formada basicamente por grandes proprietários de terra escravistas, cujos herdeiros representam boa parte da nossa elite até hoje, passou a trazer brancos europeus para a realização das atividades braçais, com o objetivo de embranquecer a população. Tratavam-os, porém, de forma semelhante ao que estavam acostumados durante a escravidão. Uma elite preguiçosa, cuja riqueza vem exclusivamente da posse e criada com a mentalidade escravista de que o trabalho só poderia ser obtido com o uso da força. Foi para combater isto que surgiu a CLT, no final dos anos 1940. Um país recém-saído da escravidão e tentando, pela primeira vez, dignificar minimamente as relações de trabalho e botar algum tipo de coibição na forma como uma elite ainda tratava aqueles responsáveis pelo trabalho. A mesma CLT que no ano passado foi achincalhada por “especialistas” e “modernizada”. Hoje vemos candidatos propondo a destruição final da CLT, opondo basicamente direitos e empregos. Menos direitos para mais empregos, diz Bolsonaro. Coisa semelhante diz Amoedo, do Partido “Novo”. Um país sem memória aceita propostas que tirem do Estado sua função primordial, reconhecer e reparar injustiças e desigualdades.
A história oficial do Brasil basicamente apagou a questão negra após a Abolição. Abra qualquer livro de história escolar e talvez o único momento em que ela é abordada será na Revolta da Chibata. Poucos trabalhos históricos sobre este período saem do meio acadêmico e chegam ao grande público. Tenho 34 anos e a primeira vez em que visitei uma réplica de Senzala foi aos 32 anos, numa viagem para Ouro Preto. É uma experiência duríssima e fundamental para entender o que aconteceu neste país em boa parte da nossa história.
Além da escravidão, outro evento que marca de forma inapagável nossa história é o genocídio. Não apenas contra o povo negro, mas também contra o povo indígena, que foi basicamente exterminado do nosso território. Temos em SP um gigantesco monumento em homenagem aos genocidas em frente ao principal parque da cidade. Na véspera da última eleição municipal, um grupo fez uma manifestação lembrando isto, pintando o monumento de vermelho. Foram tachados de “depredadores do patrimônio público”. O palácio onde mora o governador do Estado tem seu nome como uma referência ao grupo de pessoas que praticaram este genocídio. Nenhum monumento às vítimas na cidade, ao menos que eu conheça, de forma a lembrar que a nossa história foi feita à base de assassinatos e correntes. O que existe é a uma tentativa de glorificar os assassinos.
O Brasil queima sua história. General Mourão, vice de Bolsonaro, disse que o brasileiro herdou “a indolência do índio e a malandragem do africano”. É a mentalidade do assassino. Porque ao não tratarmos o período de forma séria e ao não nos esforçarmos para corrigir os enormes problemas sociais que estes erros causam, estamos sendo cúmplices dos assassinatos.
O Brasil não teve uma comissão da verdade para tratar dos crimes cometidos pelo Estado durante o Regime Militar, tão defendido por Bolsonaro e Mourão. Nossa população é extremamente ignorante sobre o assunto e cai em ladainhas do tipo “seu pai foi torturado?” para diminuir o tamanho do estrago que foi aquilo. O mesmo General Mourão ameaçou um golpe de Estado quando o Supremo julgava a legalidade da prisão em segunda instância, cuja negação poderia soltar o ex-presidente Lula.
O maior inimigo da sociedade atual é o fascismo. A forma como ele simplifica os problemas, dando soluções fáceis e autoritárias para problemas complicados. O Brasil é um país que historicamente lida mal com conflitos e acaba optando por uma via autoritária todas as vezes em que eles são impostos. Os governos petistas foram os primeiros, desde Vargas, a tratar com alguma seriedade as injustiças históricas cometidas contra negros e índios. A política de cotas foi um primeiro e importante passo. Uma boa parcela da elite não as aceita, considerando que o governo petista “inventou” o conflito. Inventou o “nós contra eles”. A falta de conhecimento histórico permite este tipo de discurso. Também permite chamar a crise atual de "pior crise da história". Em um país que teve escravidão, NADA será a maior crise da história, porque NADA foi pior do que aquilo.
Enfrentar o fascismo é a principal missão da nossa geração. E a melhor forma de fazê-lo é através da propagação de conhecimento. Através da verdade. A verdade é que a história do Brasil é feita de exploração e sangue e todos somos frutos disto. O incêndio do Museu no Rio é uma tragédia sem tamanhos. E é um símbolo de uma sociedade que renega sua própria história.