terça-feira, 30 de outubro de 2018

Lições da mais dura derrota



“Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui.
Tentei salvar os índios, não consegui.
Tentei fazer uma universidade séria e fracassei.
Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei.
Mas os fracassos são minhas vitórias.
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.”

A definição acima de Darcy Ribeiro define bem o meu sentimento no dia seguinte à vitória de Jair Bolsonaro. A semana da eleição foi basicamente uma contagem de tempo para um salto no abismo. Já era certo que o país optaria por eleger aquele que considero a pior pessoa já eleita para qualquer cargo público em qualquer lugar do mundo desde o fim da Segunda Guerra. Pode ser desconhecimento, mas se alguém souber de algo semelhante a esta eleição de Bolsonaro no período pós-45, me avise. Bolsonaro é um deputado completamente insignificante, sem nenhum projeto minimamente importante realizado em três décadas de mandato. Conquistou fama graças a aparições polêmicas em programas de subcelebridades, dispostos simplesmente a criar polêmicas em troca de um ou dois pontos de audiência. Obteve fama única e exclusivamente graças a ofensas e agressões. Estimulou preconceitos, revisionismos históricos e enalteceu torturadores. Muito se falará sobre quem é o culpado por isto. A culpa é simplesmente de quem votou nele. De mais ninguém. Não foi falta de informação que levou a maioria da população a eleger uma pessoa com este histórico. Todo mundo sabia em quem estava votando.
A grande lição que tiro desta eleição é como o excesso de privilégios em que fui criado fez com que eu criasse uma espécie de bolha interna que me tornasse incapaz de enxergar a verdadeira natureza da sociedade brasileira. Passei boa parte da eleição acreditando que qualquer um que fosse para o segundo turno contra Bolsonaro venceria. Imaginei que um candidato racista, machista e homofóbico jamais teria alguma condição de receber mais da metade dos votos e que a população seria capaz de reconhecer que preconceitos como este e tortura são coisas piores do que corrupção. Eu estava tremendamente enganado. Bolsonaro ganhou exatamente porque é assim e conseguiu de certa forma “libertar” os preconceitos que a maioria da população possui e deixou de se envergonhar. O Brasil é o país que é, desigual em todos os sentidos, porque há uma forte conivência da maior parte da sociedade. Somos uma sociedade formada por seres extremamente individualistas, que são basicamente incapazes de sentir qualquer tipo de verdadeira empatia com sofrimentos e preocupações alheias.
Desfiz amizades que não serão refeitas após as eleições. Acredito que não há espaço para pessoas que se dispuseram a ser cúmplices da ascensão de uma pessoa como Bolsonaro na minha vida. Vi pessoas que eu amava relativizando tortura e fazendo piadas preconceituosas. Decepcionei-me com parentes. Mas também vi muita gente com quem tenho enormes divergências políticas deixando diferenças de lado para lutar pela democracia. Pessoas que, com motivos, detestam o PT, mas que se puseram na luta pela democracia e pelos direitos humanos. Vi o quanto estas pessoas eram criticadas por pessoas próximas a elas, sem que desistissem. Dizem que às vezes são nos piores momentos que atos heroicos são capazes de aparecer. Se perdi amigos e sofri ao ver familiares escancararem seus preconceitos, pude também ver surgir em mim um sentimento de admiração por pessoas com as quais tinha apenas contato e pelas quais hoje tenho um grande respeito.
Supervalorizei o Brasil. Nossa história é basicamente composta de sangue e exploração. De escravidão e desigualdade. A nossa realidade é esta, o que vivemos entre 1994 e 2014 não passou de um breve sonho. Um breve sonho que melhorou a vida de muitas pessoas. Mas que incomodou outras. Bolsonaro e seus adoradores dizem sempre que queriam “tomar o Brasil de volta”. Conseguiram. Uma longa noite nos espera. Mas resistiremos. Ainda somos muitos. Já aviso, será difícil nos varrer. Em sua primeira entrevista, Bolsonaro já propôs um genocídio a movimentos sociais, do qual tratarei melhor no parágrafo seguinte e ameaçou a mídia livre com corte nas verbas públicas. Isto porque está “pegando leve”.
O momento exigirá reflexão e muita cooperação. Para começar a enfrentar isto, ajude. Converse. As primeiras vítimas de Bolsonaro, muito provavelmente, serão os movimentos sociais. Bolsonaro já deixou claro que os tratará como “terroristas”, numa clara tentativa de desumanizar as pessoas que fazem parte destes movimentos, garantindo assim o apoio da massa acéfala ao já presumível massacre. É o que todo regime autoritário faz. Por isso, a melhor resistência é fazer parte de algum. Minha indicação para quem mora em SP é o MTST. Moro no centro da cidade e vejo o trabalho maravilhoso que esta turma faz, ocupando prédios abandonados na maioria das vezes por algum playboy vagabundo, que tem o prédio como herança e não pode derrubá-lo, por ser tombado, e basicamente deixa o imóvel vazio e descuidado à espera que ele caia.
O mar da história é agitado. A minha geração ainda não havia passado por nenhuma grande privação ou teste histórico. A hora chegou.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

O tio burro




Daqui a uma semana é muito provável que Jair Bolsonaro já tenha sido eleito presidente do país que representa a nona economia do mundo. Falando apenas de termos técnicos inicialmente, deixando as gravíssimas questões morais para o decorrer da análise, não lembro de na história do planeta alguma pessoa tão despreparada e ignorante assumir um cargo tão importante. Bolsonaro está sendo eleito para o cargo mais importante do país sem ter apresentado nenhuma proposta realmente boa sobre nenhum termo e sem ter nenhum especialista, à exceção de Paulo Guedes, participando da criação de um plano de governo. Também será eleito se recusando a participar de debates ou de entrevistas no segundo turno, ameaçando a imprensa que “ousa” questioná-lo. Foi deputado por 28 anos, tendo um desempenho medíocre baseado na defesa dos interesses da classe militar. Conquistou fama graças a participações polêmicas em programas de subcelebridades, onde saia falando merda e ofendendo pessoas com base em achismos preconceituosos. Uma pessoa completamente insignificante. Bolsonaro é mais ou menos como aquele tio lunático que quase todos têm na família, aquele que é extremamente burro e não sabe, que só fala merda baseado em nada e cuja solução para quase todos os problemas do planeta costumam incluir assassinatos e prisões. Basicamente um cara como o tio burro vai ser eleito presidente.
A principal discussão da semana que vem será de quem é a culpa pela vitória de Bolsonaro. Muitos falarão que a culpa é do PT, que seria o “responsável” pelo surgimento de Bolsonaro. Outros falarão que é de Ciro, que foi passear na Europa ao invés de ajudar Haddad. Whatsapp, mídia, twitter também estarão entre os responsáveis. Pouco se falará, porém, sobre aquela que deveria ser a constatação mais óbvia desta eleição. A culpa pela vitória de Bolsonaro terá sido de quem votou nele. E mais, Bolsonaro terá ganho porque a maioria do país é exatamente como ele. Racista, homofóbica, machista e guarda dentro de si a mais perigosa união que existe, a da ignorância com a arrogância.
Fomos incapazes de enxergar que somos uma sociedade formada em sua maioria por tios burros da família. Sou um homem branco, de classe média e privilegiado. Esta eleição é a prova de como fui cego para a sociedade que me ronda. Passei boa parte da eleição calmo, achando que era impossível que uma pessoa como Bolsonaro recebesse mais da metade dos votos. Em boa parte do tempo, inclusive, acreditava que Bolsonaro não fosse capaz nem de chegar ao segundo turno. Pensava eu que a galera estava dizendo que ia votar nele por estar puta, mas que, ao ser confrontada com as coisas que ele já disse, com suas propostas de genocídio contra minorias, suas falas contra homossexuais, sua visão sobre mulheres etc, suas intenções de voto iriam cair e o PSDB chegaria ao segundo turno. O que aconteceu foi exatamente o contrário. Bolsonaro apenas subiu com a aparição de vídeos em que ele diz que crianças homossexuais devem apanhar, que quilombolas pesam “arroubas”, que fraquejou ao ter uma filha mulher. Também cresceu quando seu vice disse que o Brasil havia herdado “a malandragem dos negros e a indolência dos índios”. Bolsonaro tirou a máscara de todas estas pessoas, que puderam graças a ele expor seus ódios e preconceitos sem nenhuma vegonha. Lembro-me que conversava com um amigo negro na época em que eu supervalorizava a decência da sociedade brasileira e ele me dizia que eu estava errado, que a sociedade era uma merda e que Bolsonaro tinha chance. Ele estava certo. Ele sente na pele o que esta sociedade de merda é capaz de fazer.
A vitória de Bolsonaro não tem nada a ver com o que chamam de sentimento antipetista. O candidato já deixou bem claro que vai repetir todos os erros cometidos durante a era petista. Recebeu caixa dois, apoiou corruptos e já está partilhando ministérios entre os bandidos de sempre. O que as pessoas que votam em Bolsonaro odeiam no PT não são os erros, e sim os acertos da era petista. Odeiam o Bolsa Família, o desenvolvimento do Nordeste, as cotas racias, a inclusão de homossexuais. Odeiam qualquer tipo de avanço. Querem que o Brasil, como diz seu candidato, volte 50 anos no tempo. Uma época em que o Brasil era mais pobre, mais desigual, menos inclusivo e praticava tortura.
O típico eleitor de Bolsonaro é completamente incapaz de defender seu candidato com base em algum tipo de dado. A “defesa” é sempre feita com base em ataques, mentiras, deboches e, principalmente, aquilo que chamo de “vitimismo dos privilegiados”. São pessoas que têm as melhores condições de vida possível, mas reclamam porque continuam achando a vida uma bosta. Como acham a própria vida uma bosta, incomodam-se muito com o fato de que a dos outros não esteja tão bosta e sonham com o dia em que todos se sentirem tão bostas. Por isso ficam tão felizes quando imaginam a vida de outros piorando na gestão Bolsonaro. "Ele “vai acabar com as mamatas”, diz o publicitário paulistano que mora em Miami e só vem ao Brasil para passar férias no final do ano.
É inacreditável o grau de concessões morais que estas pessoas se mostram dispostas a fazer, com um sorriso no rosto, para “se livrar do PT”. Ontem, por exemplo, Bolsonaro disse que vai expulsar ou prender aqueles que ousarem discordar do seu governo. Dentre estas pessoas que ele vai expulsar ou prender, queridos conhecidos que vão votar no coiso, não está apenas a Gleisi, o Lindbergh ou a grande tara de vocês, o Lula. Estão pessoas como aquele seu amigo esquerdista do facebook, que você acha chato e que tá viajando, aquele amigo gay, do qual você diz ser amigo, mas que não se importa com o fato de que ele pode ser agredido nas ruas em função do discurso do seu candidato. Estou eu.
Vivemos numa sociedade que se mostra intolerante. Que aprova tortura. Que aprova homofobia. Que aprova machismo. Que aprova o racismo. Uma sociedade que quer massacrar minorias. Assim como seu tio burro. Houve uma época em que eu achava as merdas que o meu tio burro falava engraçadinhas e inconsequentes. Não eram. Nunca foram. Eu era alienado. Nós éramos alienados. Fomos extremamente condescendentes com os absurdos e preconceitos de pessoas que amamos. Como o tio burro. O tio burro que não se importa com a vida de ninguém. Só com a dele. O tio burro está muito próximo de triunfar. A principal "proposta" de Bolsonaro para educação é o Escola sem Partidos, projeto que pretende praticamente extinguir o ensino de ciências humanas na escola. O tio burro gosta deste projeto, assim seus sobrinhos ficarão mais parecidos com ele. Esta eleição nada mais é do que isto, o triunfo do tio burro.

sábado, 6 de outubro de 2018

Tropa de Elite e os indícios do fascismo



Antes de começar o texto em si, acho importante afirmar que não acho nunca que uma obra de arte seja de alguma forma responsável por algo. Acho que ela é sempre importante principalmente pela forma como consegue representar a sociedade. Acredito também que seja a arte a melhor forma de entender a história. Poucas coisas são melhores para entender a contracultura americana dos anos 60 do que ouvir Jefferson Airplane. Ou compreender a Revolução Russa a partir de Maiakovski. Nada é melhor para entender a culpa alemã do pós-guerra do que ler Dr. Fausto de Thomas Mann. Ou, nos últimos tempos, o funk ostentação como símbolo da era Lula. Jovens que enxergavam em bens de consumo o caminho para a felicidade e queriam ostentá-los. A ideia de que a felicidade e o valor estavam basicamente no consumo. Note que o objetivo aqui não é discutir qualidade. É discutir o papel fundamental que a arte tem de representar sociedades ou de funcionar como previsão de algo.
O fascismo já triunfou na sociedade brasileira. Ele não surgiu do nada de agora. É fruto de uma construção temporal. Fruto do hábito. O maior símbolo disto é a aceitação. Primeiro aceitamos que Bolsonaro teria 20% dos votos. Lembro-me da época em que eu dizia que achava um absurdo que um quinto do país votasse num fascista. Depois nos habituamos a achar que era normal ele ir para o segundo turno. Pois bem, ele pode ganhar no primeiro, coisa que não acho que vai acontecer, mas...
Em 2007 era lançado o filme Tropa de Elite. Foi possivelmente o maior sucesso do cinema nacional neste século. Posso estar errado, talvez Cidade de Deus ou aquelas farofadas da Globo Filmes tenham feito mais sucesso. Mas sinceramente não lembro de nenhum filme com mais repercussão do que Tropa de Elite. O herói do filme é Capitão Nascimento, um policial do Bope que procura alguém para substituí-lo. Uma pessoa com enormes problemas psicológicos, um pirado, ou um “cidadão de bem”. Nascimento considera-se numa missão nobre, combate bandidos. E no combate aos bandidos, vale tudo. O capitão tortura, agride e mata, tudo para deleite do público. Faz isto em nome do seu conceito de “bem”. O personagem principal do filme, a meu ver, na verdade é Mathias. Uma pessoa que tenta unir o estudo do direito à atividade policial. O filme mostra como Mathias vai abandonando a lei e se tornando cada vez mais como Nascimento até a cena final, em que o futuro capitão atira na cabeça do bandido, encontrado graças à prática da tortura, com a câmera na posição do bandido. O filme termina e o cinema composto por pessoas brancas de classe média em que eu assistia o filme delirou.
A grande sacada do diretor José Padilha neste filme foi, a meu ver, a ideia de ter um locutor que narrava o filme o tempo todo, impedindo assim que o espectador realizasse algum tipo de reflexão ou interpretação enquanto assistia ao filme. Não à toa Padilha repetiu este instrumento nas outras porcarias que fez dali pra frente. Em Narcos, da qual consegui assistir a um episódio inteiro, e em Mecanismo, no qual desisti na metade do primeiro episódio. A primeira função deste instrumento é, como já dito, impedir que o espectador tenha o apoio do silêncio para a reflexão e interpretação. As pessoas não têm tempo e nem saco para isto. Elas vão ao cinema hoje em dia, em geral, para comer pipoca e passar o tempo. A segunda é colocar o personagem principal numa situação quase divina. A voz que narra é a dele, que parece ser onisciente, onipresente e onipotente. Nascimento está em todo lugar ao mesmo tempo e é capaz de sabe quem merece a punição ou não. A lei é um detalhe. Há algo acima da lei que se pode chamar de, sei lá, “bem”, que justifica tudo. A tortura era aplaudida nas telas. Se em Tropa de Elite era o policial que era endeusado por desrespeitar a lei, em Mecanismo era o juiz. Entendeu a relação?
A grande sacada da campanha de Bolsonaro até agora é apresenta-lo da mesma forma como Padilha apresentava Nascimento. Não há nenhum espaço para reflexão e interpretação. Visões mentirosas e agressivas da sociedade são repetidas impedindo qualquer espaço para pensamento. Como os “maconheiros da PUC”, que são apresentados como hipócritas pela voz divina de nascimento, a “esquerda caviar” é o inimigo que tenta impedir Bolsonaro Nascimento de fazer o “bem” matando. Como “esquerda caviar” eles conseguem encaixar basicamente tudo que não os representa. Mulheres feministas, movimentos negros, gays. Todos são vistos como inimigos hipócritas.
Assim como Mathias, os eleitores de Bolsonaro abandonaram o conhecimento como a forma de encontro de soluções. Mathias larga Foucault e vai resolver no fuzil. Os eleitores de Bolsonaro quase gozam imaginando o corte que seu presidente fascista pretende fazer nos gastos com cultura. Ela não serve para nada e não resolve nada, pensam eles. A queima de livros não faria diferença em suas vidas, a maior forma de comunicação deste público é o Whatsapp, afinal.
Os comandantes da campanha Bolsonaro souberam ler seu público da mesma forma que Padilha. É um público incapaz de pensar, que precisa de alguém dizendo o que está acontecendo, se possível de forma simples, através de memes. Uma sociedade que glorifica a violência e quer a morte do que é diferente e incomoda. Que desvaloriza direitos humanos. Vejo uma câmera no papel do traficante morto na última cena de Tropa de Elite. Vejo Bolsonaro chegando com uma arma e matando a democracia, aquela que “não soube resolver nossos problemas”, mesmo que o período de 1994 a 2014 tenha sido o melhor da nossa história. A luz se apaga e o público aplaude. O filme só fez sucesso por causa do público. O problema é o público.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

A distopia



Não é raro que fotografias consigam de forma tão perfeita captar o espírito de um momento. O casal se beijando na Times Square virou um símbolo da vitória aliada na Segunda Guerra. A criança vietnamita correndo com o corpo queimado é a maior lembrança dos horrores da Guerra do Vietnã. Sem dúvida a foto que melhor simboliza a distopia que vivemos no Brasil é a que inicia este texto. Funcionários da Havan, uniformizados, coagidos por um chefe lunático, obrigados a participarem de um vídeo ridículo em que ele declara apoio ao candidato Jair Bolsonaro. Olhe para os olhos de cada uma destas pessoas. Veja o grau de submissão e humilhação a que elas são impostas por um chefe incapaz de respeitar qualquer tipo de opinião individual. Repito, olhe para a cara destas pessoas, submetendo-se ao papel de números.
O trabalho embrutece, dizia Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro. No vídeo que gerou esta foto, Luciano Hang ameaça seus funcionários que não estão dispostos a votar em seu candidato. Diz que tirará seu investimento e gerará desemprego se outro candidato ganhar. Em seguida, aparece num palco, numa posição que lembra a de um pastor numa igreja evangélica, onde seus funcionários uniformizados são obrigados a cantar o hino nacional.
A campanha de Bolsonaro e seus adeptos criou algo que considero um fenômeno novo na história do planeta, que é o nacionalismo bocó. Regimes que se propõe a serem nacionalistas costumam valorizar predominantemente a cultura nacional. Afinal, não há riqueza maior para um país do que sua cultura. A França, por exemplo, é mais conhecida por sua cultura do que por qualquer outra coisa. Os milhões de visitantes de Roma, além de ver o papa, vão pra lá atrás da cultura que o lugar oferece. Os EUA se tornaram a potência que se tornaram não apenas pela força econômica, mas pela forma que impuseram sua cultura ao redor do mundo. Isto é diferente no nacionalismo bocó bolsonarista. O desrespeito que eles têm pela cultura brasileira é gigantesco. Para eles, artista é tudo “vagabundo, preguiçoso e maconheiro” e toda verba pública tem que ser cortada para eles. O mesmo acontece com o conhecimento em geral. Bolsonaro foi completamente indiferente ao incêndio do Museu Nacional, por exemplo. Desqualificam todo conhecimento histórico, tentando reescrever a história com base em achismos e preconceitos. À exceção de Paulo Guedes, não há nenhum especialista em absolutamente nada que apõe qualquer coisa na campanha Bolsonaro. Nenhum educador apoia suas sandices. Não há proposta alguma para saúde pública. Suas ideias de segurança pública são rechaçadas por quem estuda o assunto, atendendo basicamente a um lobby da indústria de armas que sonha em lucrar com a generalização do porte de armas no país.
A campanha de Bolsonaro é um grande nada repleto de preconceitos e ódio. Uma mistura de antipetismo, machismo, homofobia, glorificação da violência e ignorância, repleto de símbolos nacionais que por si só não significam nada e com a anuência criminosa de setores da economia, que não se importam em promover um verdadeiro genocídio desde que isto signifique ganhos na Bolsa de Valores. A elite econômica usa a onda Bolsonaro para realizar alguns sonhos. Não querem perder esta chance única de eleger um candidato que se dispõe a acabar com o 13º salário e com os direitos trabalhistas, tudo isto com a legitimidade das urnas. A campanha de Bolsonaro é uma grande negação do conhecimento. Não à toa se baseia basicamente em informações falsas e visões de mundo paranóicas. Verdade e conhecimento andam lado a lado, quem não se preocupa com um não se preocupa com o outro.
Bolsonaro propõe uma tirania das maiorias. “As minorias devem se submeter à vontade das maiorias”, diz ele em vídeo. A tirania das maiorias é o grande risco da democracia, algo previsto tanto na Antiguidade Clássica por Aristóteles quanto na democracia moderna, por Tocqueville, por exemplo. Foi por este motivo que Montesquieu concebeu a ideia de separação dos poderes. Executivo, Legislativo e Judiciário funcionariam de forma independente, se vigiariam e impediriam que as minorias fossem massacradas pelos interesses da maioria. Pois bem, imaginemos um Executivo de Bolsonaro. A previsão para 2018 é que mais da metade do nosso Legislativo será composto por integrantes de três bancadas: agronegócio, lobby das armas e igrejas evangélicas. As três categorias apoiam Bolsonaro. O Judiciário, nesta semana, deixou muito claro quem é seu candidato. Após prender e impedir a única pessoa que derrotaria este candidato nas eleições, o juiz Sérgio Moro liberou, a uma semana da eleição, uma delação ainda sem provas com diversas acusações contra o partido que o enfrentará no segundo turno. Sua esposa usa redes sociais para declarar apoio implícito a Bolsonaro. Juiz Marcelo Bretas, chefão da Lava Jato no Rio de Janeiro, faz o mesmo. O presidente do Supremo, Dias Toffoli, declarou que o Golpe Militar de 1964 deve ser chamado de Movimento e proibiu uma entrevista porque ela poderia ajudar o concorrente de Bolsonaro. Brasil acima de todos e Deus acima de tudo, diz Jair Bolsonaro. Mas a frase poderia tranquilamente ser de Deltan Dallagnol, o procurador da Lava Jato que propõe o fim do habeas corpus e das limitações à prisão preventiva. Nenhum dos outros dois poderes parará as loucuras de Bolsonaro no Executivo. Pelo contrário.
Brasilien über alles, diz a versão brasileira do fascismo. Olhe mais uma vez para a foto que deu início a este blog. É isto que estamos nos tornado. Um horror inimaginável nos espera. Quem se abstém disto é cúmplice. Lembro-me da história de um conhecido meu, que trabalha em um banco no Itaim. Contava ele que em 2014, um amigo dele havia ameaçado e por fim pago a empregada doméstica para que ela prometesse votar em Aécio em 2014. Ele e seus amigos riram da história. Vivemos uma grande distopia. Que pode estar apenas começando.


terça-feira, 2 de outubro de 2018

MÁRTIR


Previsões catastróficas são escritas por dois tipos de pessoas: as que desejam que aquilo não ocorra de jeito nenhum e as colocam o bem estar social abaixo do seu próprio ego e torcem para estarem certas. Porém as previsões catastróficas somente são publicadas com o discurso do desejo de que elas não se realizem. A minha premissa sobre escritores apocalípticos me coloca em descrédito, porém eu não desejo que o Brasil eleja Jair Bolsonaro.

Ao contrário do que pensa o Cabo Daciolo, a união das esquerdas é impossível. Se na Ursal derrubaremos unidos as fronteiras da América Latina e criaremos um grande país comunista, na vida real não conseguimos nem fechar questão em torno de uma candidatura presidencial brasileira. O grande culpado é o PT e o resultado de tudo isso conheceremos em até 1 mês, data em que, tomara, esse texto seja finalmente um punhado de análises infantis de um blog.

A candidatura de Lula é parte da defesa do presidente. Gleisi Hoffman já disse que a possibilidade de não ter Lula na cabeça de chapa seria como abandoná-lo e endossar o golpe, que só restava ao partido seguir com a candidatura até o limite. O limite chegou em 11 de setembro, quando Haddad assumiu a dianteira da campanha.

O partido de 38 anos e qualquer brasileiro de 12 sempre souberam que o poder judiciário brasileiro é o golpe, custa imaginar que alguém dentro do PT acreditasse cegamente que a apelação surtiria efeito e em um simples passe de mágica o TSE aprovasse o barbudo na urna. O ministro Barroso do STF, inclusive, tentou cercear de todas as formas o uso da imagem de Lula pela campanha de Haddad. Sergio Moro retirou o sigilo da delação de Palocci restando 6 dias para o pleito, além da mais recente guerra de togas no STF em torno da entrevista de Lula à Folha de São Paulo, absurdos totalmente previsíveis já que, como dizem, “de onde não se espera nada, daí é que não vem nada mesmo”.
Lula é o maior presidente da história brasileira. Há quem diga que ele é o maior presidente mundial do século 21, concordo com as duas teorias. Lula tem competência para erradicar a fome, melhorar a economia, impulsionar o consumo (muitas ressalvas aqui), fazer política externa como poucos, estreitando relações tanto com os países vizinhos quanto com o G8. Lula só não tem vocação para ser mártir.

Ninguém pode exigir sacrifícios do outro. Não podemos pedir que Lula seja Mandela. Retirar-se do cenário eleitoral em 2018 seria retirar dos autos mais arbitrariedades judiciárias necessárias para a argumentação internacional de prisão política. O fato é que a indissociável imagem de Lula e do PT gerou uma relação de gratidão e dependência. Se alguns pensavam que a indicação petista de Lula e, principalmente, a manutenção dessa indicação às portas da eleição, tenha sido a visão egoísta de um partido que tudo faz pelo poder se enganou, a candidatura é uma recompensa ao militante mais importante do partido. O PT colocou Lula à frente do Brasil.

Mais claro do que o golpe era a forma de acabar com ele agora em 2018. A união dos dois principais partidos de esquerda do país era vista por todos como a maneira mais fácil de barrar o processo de destruição social imposta pelo impeachment e o desgoverno dos últimos 4 anos. Ciro/ Haddad soava como música aos ouvidos de grande parte da fragmentada esquerda, seria o descanso do PT, a oportunidade do experiente Ciro e a projeção de Fernando Haddad, o futuro do Partido dos Trabalhadores.

Em uma análise pragmática, com o objetivo de barrar a ofensiva do golpe, essa seria realmente a melhor opção. Um candidato conhecido no país inteiro, com reputação ilibada, que fez do nordeste o seu reduto político e com pouca rejeição. Tudo isso com o apoio de Lula formaria a equação básica da eleição, quem sabe em primeiro turno. O PT não quis assim e preferiu seguir a agenda da defesa de Lula.

Com essa estratégia o PT decidiu arriscar e como disse Ciro "é a estratégia que leva o país a dançar na beira do abismo".
Estamos a 5 dias das eleições. Estranhamente Bolsonaro subiu após as manifestações do #elenão e hoje há um empate técnico entre Bolsonaro e Haddad no segundo turno. O duelo de rejeições será a temática e por mais incrível que pareça não sei se o Brasil ficará com o antipetismo ou com o antifascismo. É hora de salvar o primeiro turno e acreditar na máxima de que o segundo é outra eleição.

Esse post está longe de ser uma ode ao Ciro Gomes. Admiro a coragem de Fernando Haddad, que ignorou a reeleição para poder fazer na capital paulista o que era necessário à população, o prefeito que enfrentou a divindade automotora paulistana para fazer prevalecer o transporte público e as bicicletas. Sou o típico Haddiro e voto 12,5. Meu voto será útil, baseado nas pesquisas de boca de urna.

Justamente por esse pensamento de “tanto faz” queria vê-los juntos, mas unidade é um sentimento que não existe na Ursal. Outra coisa que eu gostaria de ver era o PT diminuir o campo gravitacional em torno dele, gostaria de ver o principal partido político do país pensar primeiro no que fazer para erradicar o fascismo. Lula teria o poder para mudar, uns dizem que não o fez por ser narcisista, mas eu acredito que simplesmente escolheu não ser o mártir, e nem tem a obrigação disso. Costumo dizer que o PT foi para o ALL IN, e com as nossas fichas.


Digressões sobre a Lava Jato, o fascismo, a barbárie e o hábito



A Lava Jato perdeu totalmente a vergonha de deixar claro qual seu candidato nesta eleição. Após anos de bajulação e de aprovação incondicional de boa parte da grande mídia e da opinião pública, a Operação não sente mais necessidade nenhuma de esconder seu caráter fascista. São anos de abusos e arbitrariedades que culminaram na situação tosca que vivemos atualmente. Apenas nos últimos três dias, vimos o juiz Marcelo Bretas, chefe da Operação no Rio, deixar implícito em suas redes sociais seu apoio ao candidato fascista. O mesmo ocorreu com Rosangela Moro, esposa do “sub-Deus” da Lava Jato, que postou em seu Instagram uma mensagem desrespeitosa às mulheres que participaram do protesto do #elenão. Uma semana antes, havia postado fotos de pessoas apoiando o impeachment com a frase “tudo aquilo não foi para nada”. Após dedicar o mês de setembro a ações cinematográficas contra políticos do PSDB do PR e de SP, com prisões desnecessárias, Moro decidiu, faltando seis dias para a eleição, que era hora de tornar públicas as delações realizadas por Antônio Palocci, delações que não haviam sido aprovadas pelo próprio Ministério Público por falta de provas, aliás.
Palocci está preso há dois anos. Pelo acordo de delação, terá sua pena reduzida em dois terços caso prove o que diz. Você sabe qual a pena de Palocci? Darei um tempo para pensar. Não sabe? Sim, a pena ainda não existe. Palocci está HÁ DOIS ANOS em prisão preventiva. A prática mais comum usada pela Operação Lava Jato é esta. O uso abusivo da prisão preventiva, de forma não prevista nos preceitos constitucionais, como instrumento de tortura psicológica a fim de obter as informações que julgue necessárias, com ou sem provas. A grande “contribuição” que a Operação Lava Jato deu a esta onda fascista foi sem dúvida esta. A forma como conseguiu convencer a maior parte da opinião pública que o desrespeito à lei e a noções básicas de direitos humanos é aceitável em busca de algo que considere um “bem maior”, no caso o combate à corrupção. Todo discurso bolsonarista tem isto como base. Matar pessoas vale a pena se elas forem cometer crimes, derrubar a democracia é válido para impedir que viremos uma Venezuela etc.
Uma onda fascista como a que vivemos não surge por acaso. A barbárie é fruto de anos de preparação. Para quem se interessa pelo tema, os meus dois livros favoritos sobre este assunto são Gostaríamos de informa-lo que amanhã seremos mortos com nossas famílias, de Philip Gourevitch, e Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt, o primeiro tratando do genocídio dos tutsis praticado pelos hutus em Ruanda no ano de 1994, e o segundo tratando sobre os séculos de perseguição aos judeus na Europa que culminaram com o Holocausto. Mostra Arendt que os séculos de perseguição aos judeus fizeram com que a sociedade em geral se acostumasse com a ideia de tirar direitos daquela parte da população, até o momento em que o único direito que ainda restava para ser tirado era a vida. Gourevitch parte desta mesma ideia para explicar a forma como o genocídio em Ruanda foi de certa forma quase normalizado pela população local. Tanto o Holocausto quanto o genocídio de Ruanda, argumenta brilhantemente os autores, foram praticados por pessoas “normais”, daquelas cuja única preocupação na vida é pagar as contas. A barbárie se torna um hábito.
A barbárie já é um hábito. Moro no centro de São Paulo. Basta descer na estação Sé do metrô e vir até a estação República, onde moro. Pessoas completamente abandonadas pelo poder público e pelo resto da sociedade de classe média, que vai tocando a vida se trancando em condomínios-presídios. Acostumamo-nos. A Prefeitura de SP apresentou um projeto para tirar a cracolândia da região da Luz e manda-la para Zona Norte. A justificativa é que isto irá valorizar a região. Construtoras já anunciam empreendimentos para a classe média naquela região. Estúdios de 1 dormitório, com áreas de lazer e metrô perto. Na borda da Sala São Paulo. A preocupação é com o lugar, não com as pessoas. Tirá-las de lá é o foco, se possível para um lugar onde elas não sejam vistas. Simplesmente nos acostumamos.
A principal atração que Bolsonaro pratica sobre seu eleitorado é a ideia de que ele vai matar bandido. E na classificação de bandido desta gente entra todo mundo que pode ser visto como diferente. Gays, feministas e petistas, principalmente. Gays devem apanhar na infância, feministas são pouco higiênicas (Rosangela Moro concorda) e petistas devem ser metralhados. Presidiários devem ser obrigados a trabalhar, numa versão moderna de escravidão. A tortura é um instrumento válido e deve ser aplicado na obtenção de informações importantes. Uma próxima etapa do que já faz Moro com sua tortura psicológica. Como um candidato destes está em primeiro? É simples, costume.
Ligando a TV ontem, pude assistir um debate sobre “como o governo Bolsonaro fará para criar empregos”. Tortura, homofobia, racismo, machismo. Tudo isto está em segundo plano para o objetivo supremo de “criar empregos”. A Bolsa sobre com Bolsonaro. Mudando de canal, cheguei num programa que mostrava uma operação policial bem sucedida, com bandidos mortos e policiais sendo premiados. Corte para uma propaganda política, em que João Doria Jr. diz que policial deve ter licença irrestrita para matar. Corte para outra propaganda, com Márcio França condecorando a policial que matou o bandido na frente da escola. Corte para outra propaganda, a policial que matou o bandido concorrendo a deputada federal dizendo que merece o voto do eleitor porque matou o bandido. Volta o jornal, dizendo que foram provavelmente policiais que mataram a vereadora Marielle Franco no RJ. A causa do crime é porque ela denunciava torturas e assassinatos cometidos por milícias policiais em favelas na cidade. Marielle. Negra, lésbica, mulher. Bolsonaro. Tortura, homofobia, racismo e machismo. Marielle é tudo que Bolsonaro persegue. 2018 é o ano em que Marielle foi assassinada e Bolsonaro pode ser alçado à presidência da República. Os assassinos de Marielle estão soltos. Enquanto debatemos empregos. Parece que as ações das empresas fabricantes de armas estão subindo, aliás. É um bom investimento, diz um analista econômico.
Simplesmente nos acostumamos. O que a candidatura que lidera a campanha presidencial é basicamente a formação de um Estado psicopata, que elimina aqueles que causam “problemas e mal-estar”. Basta um passo para que o outro seja dado. Estamos caminhando na barbárie faz muito tempo. Sérgio Moro é só uma etapa. Bolsonaro é a próxima. Já nos acostumamos a Moro.