segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Sobre Uber, Whatsapp e Piscinas



Durante muito tempo trabalhei numa editora de grande porte e fui obrigado a ir para Brasília profissionalmente alguma vezes. Umas sete ou oito, acho, entre 2010 e 2012. A Stora Enso, empresa finlandesa de papel, era (ou ainda é, não sei) dona da única fábrica no Brasil que possui um tipo específico de papel e havia entrado com um processo de acusação de dumping basicamente contra todas as fábricas estrangeiras que vendiam este papel ao Brasil, com exceção das que ficavam na França e na Itália. Eu e mais um grupinho de engravatados íamos para Brasília para fazer lobby contra este pedido da Stora Enso. Encontrávamo-nos um senador da região Norte, que foi ministro em um monte de governos, que era o contato direto entre o lobby das editoras e o governo central. Nas duas últimas vezes que fomos encontra-lo, o tal senador não apareceu. Mau sinal. A Stora Enso ganhou o processo e foi imposta uma sobre taxa de importação ao papel vindo de todos os países dos quais importávamos, a exceção de França e Itália. A mídia impressa e seus parceiros começaram uma verdadeira guerra contra o senador da região Norte, que passou a ter seus escândalos não mais acobertados. A sangria, no caso dele, não foi mais estancada. A Stora Enso era dona da única fábrica deste tipo de papel na França e passou a vender de lá para o Brasil. O então presidente da Stora Enso no Brasil pediu as contas e passou a representar uma fábrica italiana aqui no Brasil. Lembro-me da sua reação uma vez em que alguém havia deixado implícito que ele já estava negociando com a fábrica italiana e por isso a havia deixado fora do pedido de antidumping. Ele ficou transtornado e ameaçou processar e agredir quem disse isto. Se tivéssemos filmado aquilo e colocado na TV, o cara ganharia um Emmy de melhor ator. Acho um desperdício alguém com um talento tão grande para a interpretação passar a vida vendendo papel. Mas bom, o que me fez lembrar isto não é a picaretagem do empresário do setor privado, nem a relação entre mídia e política. E sim o fato de que eu achava bizarro que em Brasília era necessário ter telefone para chamar táxi.
Eu não uso Uber. Já escrevi um texto sobre isto. Numa época eu era chato e tentava convencer as pessoas a fazer o mesmo. Percebi que era chato e não faço mais. O que me fez mudar a minha atitude foi exatamente o texto que escrevi. Não tenho a maior autoestima do mundo, mas acho que aquele texto está bem escrito e bem argumentado. Uma amiga minha no dia seguinte ao texto me veio dizer que havia gostado e que a partir dele havia decidido não mais usar Uber, pagar mais caro no táxi e foda-se. Aquilo fez muito bem para o meu ego, eu a acho inteligente. Dois dias depois, recebo uma nova mensagem dela. Ela havia sido assaltada por um taxista.
Embora não tenha o aplicativo, não me oponho a entrar num Uber quando outra pessoa o chama. Não quero ser chato. E gosto do mecanismo. Acho fascinante que eles saibam onde estamos e que vejamos o desenho do carrinho se movimentando. Também acho legal a forma como o carro nunca nos acha, mesmo com este desenho. Quase sempre rio quando vejo o carrinho passando reto. A minha grande objeção ao Uber hoje é que está cada vez mais difícil conseguir um táxi em SP sem o uso de aplicativos. Sou um cara à moda antiga, para mim o jeito correto de chamar um táxi é parar em algum ponto na rua, ver o táxi vindo, esticar a mão e pronto. Sinto que sou a única pessoa que está percebendo que está se tornando um parto conseguir táxi assim em SP. Se você não está, sei lá, na Avenida Paulista, não vai aparecer uma porra de um táxi pra você pegar. Nada.
Sempre fui ruim de tecnologia. Dentre as pessoas da minha bolha, sou quase sempre a última a ter as coisas. Em geral acho chato. No começo da faculdade, nos anos 2000, não tinha celular. Fui a última pessoa que eu conheço a trocar o celular analógico por um com chip. Era motivo de chacota no trabalho por isto. Certa vez, a caminho casa, fui assaltado e levaram meu celular. Já do outro lado da rua, o ladrão me perguntou quanto dinheiro eu tinha. Eu respondi dez reais. Ele me propôs que eu desse estes dez reais e recebesse meu celular de volta. Eu aceitei. Minha vida começou a mudar quando o meu antigo chefe me deu um smatphone que um outro diretor havia devolvido porque estava velho. Comecei a usar, mas ainda não havia instalado Whatsapp. Era divertido ver as pessoas reclamando porque eu havia mandado um SMS. Isto foi mais ou menos em 2013. Eu achava todo mundo meu zumbi. Achava até meio bizarro minha namorada à época ficar o dia todo no whatsapp. Ela me contava que diversas amigas haviam feito grupos e falavam sobre tudo neles. A minha vida voltou a mudar em 2015. Eu ia passar um tempo viajando e resolvi instalar o tal do whatsapp para que elas pudessem me encontrar mesmo eu estando longe. Virei zumbi. Estou até hoje vendo esta merda toda hora, mesmo tendo em mente que quase nada importante acontece por lá. É um novo tipo de comunicação, estamos cada vez mais distantes, recebendo cada vez mais informações que significam cada vez menos.
Mais ou menos na época em que ganhei o smatphone que mudou minha vida, tive outra decisão que impactaria minha existência. Decidi que era hora de realizar o sonho de toda pessoa de classe média e comprar um apartamento. Eu estava feliz no meu relacionamento, tinha 29 anos, tinha um emprego que me permitia fazer lobby engravatado em Brasília, havia chegado o momento de ter um teto, dois filhos e um cachorro. Meu primeiro passo foi procurar um amigo meu que é extremamente burro, mas muito bom quando o assunto é dinheiro. E quando eu digo que ele é extremamente burro, estou dizendo muito muito burro. Ele é incapaz de interpretar um texto, fez dez anos de Cultura Inglesa e não sabia conjugar o verbo to be, passou a vida tomando pastorzinho de mim no xadrez. Sério, eu passei uns dez anos fazendo a mesma jogada e o cérebro dele era incapaz de reconhecer aquilo. Mas quando o assunto é dinheiro, o cara vira um Einstein. É um verdadeiro fenômeno da natureza. Alguma coisa entra em ação no seu cérebro quando ele ouve a falar em dinheiro e tudo se transforma. Enquanto eu recebia as dicas, ele me disse que o seu sobrinho estava trabalhando como corretor de imóveis e marcou um encontro entre nós. Fomos numa padaria, ele me pagou um pão de queijo e começamos o papo. Ele queria me vender um imóvel na Vila Anastácio. Não lembro ao certo o porquê, mas eu conhecia aquela região em que o prédio seria construído. Não tem nada. A impressão que tenho é que é a única região do planeta que está intocada desde que a Terra surgiu. É outro conceito de nada. Segundo ele, o fato de lá não ter nada era um coisa boa, porque era um sinal de que algo iria ser feito por lá. Sim, o fato de não ter nada era uma qualidade. O preço do apartamento era algo do tipo R$ 400 mil. Um valor que eu, como engravatado que ia de vez em quando para Brasília fazer lobby a favor de uma mídia bandida, iria demorar tipo uns 30 anos para pagar. Ao ouvir isto, o sobrinho corretor riu e disse que todo mundo ficava assustado, mas que a maioria das pessoas conseguia pagar em 20 anos.
Vinte anos. Eu tinha 29 anos na época. Arredondei para 30. Terminaria de pagar aos 49. Arredondei para 50. Após a conversa com o sobrinho corretor, fui falar com o amigo burro gênio com dinheiro. Ele começou a me falar que valia a pena a compra e como, após terminar de pagar o imóvel, eu poderia usá-lo como entrada na compra de um outro imóvel. Na minha cabeça eu estava pensando, bom, se eu termino este aos 50, acabo o outro aos 70, é isto? Homem na minha família vive até, em média, uns 65 anos, então daqui pra frente minha vida vai se dedicar a isto? Pagar um imóvel? Eu tinha 29, arredondando 30. Então já acabou? Enquanto ele falava sobre o investimento que viria com o investimento e geraria mais investimento, comecei a me sentir pela primeira vez ao lado dele burro. Perguntei-me se ele não se sentia da mesma forma quando tomava um pastorzinho. Até que ponto, aliás, o fato de passar uma vida tomando pastorzinhos não o preparou para aquilo?
Mas bom, não desisti. Seguindo o conselho do meu amigo burro e gênio dos negócios, fui atrás de imóveis novos. Todos custariam ao menos 20 anos da minha vida. Mas todos deixaram claro que eu estaria tranquilo aos 50 anos. Uma coisa que me impressionou nesta época é que é impossível achar um apartamento simples nestes novos empreendimentos em SP. Quando digo simples, não me refiro a tamanho, porque eles são cada vez menores. Refiro-me ao fato de que eu queria simplesmente um apartamento para deixar minhas coisas e ficar lendo e ouvindo música. Só isto. Mas todos têm sauna, salão de jogos, quadra e piscina.
Piscina. Aí está a palavra que define a forma como classe média enxerga o que é sucesso na vida. Não há nada que dê mais status na vida do que desperdiçar dinheiro. “Veja, eu tenho tanto dinheiro que posso simplesmente jogá-lo pela janela”. Não há desperdício de dinheiro maior do que uma piscina. As pessoas que têm muito dinheiro têm tanto dinheiro que em algum momento da vida elas pensam que vale a pena abrir um buraco na terra e encher de água com cloro. E mais, elas têm tanto dinheiro que até contratam alguém só pra cuidar do buraco na terra cheio de água e cloro. Lembro-me que na escola eu tinha um colega rico e todo mundo sabia que ele era rico porque ele tinha uma piscina. Lembro-me que um dia ele marcou uma festa e estávamos todos animados porque seria na piscina. Pus uma sunga por baixo do short, passei protetor 50 na pele e fui animado. Chegando lá, vi que ninguém estava na piscina. Foi uma descoberta para mim perceber que a maior parte das pessoas que vão para piscinas nestas situações não entram na água. A festa era basicamente um monte de jovens brancos em torno da piscina conversando.
Fui a algumas outras festas em piscinas na vida e quase todas elas foram meio assim. Muito pouca gente entra na água. A piscina é apenas um cenário, quase o altar de um culto. Um buraco na terra cheio de água e cloro. O sonho da classe média é ser rica, afinal. O que estes condomínios novos fazem é permitir à classe média realizar o maior sonho que ela tem, desperdiçar dinheiro enchendo um buraco na terra com água e cloro. Como a maioria das pessoas não tem grana suficiente para isto, as pessoas de classe média se juntam numa comunidade de pessoas de classe média em que elas se unem para sustentar o buraco na terra cheio de água e cloro. Piscinas de condomínio estão quase sempre vazias. A maioria das pessoas que a frequentam não entram na água. Ficam do lado de fora tomando Sol, lendo, existindo. Coisas que poderiam fazer num gramado. Mas fazem na borda do buraco na terra cheio de água e cloro. Uma coisa que acho curiosa sobre pessoas que moram em condomínios com piscina é que ir à piscina significa algo. Tipo, o que você fez ontem? Resposta: fui na piscina. Então você não fez nada, certo?
Acabei não comprando o apartamento. Mas descobri coisas interessantes. Descobri que kitnet agora se chama Studio. Descobri também que vaga de garagem tem escritura. Lembro-me que achei isto bizarro quando fiquei sabendo. Sim, existe um documento dizendo que um pedaço de chão marcado com uma tinta amarela em que cabe um carro é seu. Descobri que você tem que declarar a vaga de garagem no Imposto de Renda. É que as pessoas acham isto normal.
 “A gente se habitua a tudo, até a não se habituar”. É uma das frases mais repetidas no meu livro favorito, A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Não acho que possa julgar as pessoas que passam vinte anos pagando pelo seu apartamento com um buraco na terra cheio de água e cloro ou com sua escritura de vaga de garagem. Também não me julgo por ter passado tanto tempo fazendo lobby em favor dos interesses financeiros de uma mídia podre. Como mostra o exemplo da minha amiga assaltada no táxi, as coisas não são tão fáceis. A sociedade nos engole. Enquanto escrevia este texto que boa parte das pessoas não lerá até o fim (é o texto mais longo deste blog) olhei duas vezes para o Whatsapp. Nada importante aconteceu.

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

O Bolsonaro soft



Uma chave para tentar entender o funcionamento da futura gestão federal de Bolsonaro talvez esteja na análise da gestão Doria em SP. Deixando bem claro que, obviamente, há diferenças entre os dois. Considero Bolsonaro uma figura mais ideologicamente formada do que Doria. Enquanto o futuro presidente realmente acredita no que diz, o futuro governador me parece ser do tipo que se adapta à vontade refletida em pesquisas. Ele está lá para dizer o que a maioria quer ouvir. E, obviamente, Doria nunca se disse abertamente machista, racista e homofóbico, nunca defendeu a tortura, embora esteja estimulando o lado psicopata da população ao propor que policial atire para matar.
As quatro principais características da gestão Doria em SP foram manipulação dos dados, controle da informação da mídia, uso excessivo de redes sociais e estímulo ao antipetismo. Nunca um gestor mentiu tanto e de forma tão consciente. A principal sacada de Doria foi perceber que as pessoas se informam mal e não perdem tempo para saber se a informação que lhes foi passada era ou não verdadeira. E mais, ele percebeu que, caso diga uma mentira na segunda, ela será descoberta apenas na terça ou na quarta, dias em que o ex-prefeito já havia criado um novo assunto, deixando a revelação da mentira em segundo plano. Há exemplos claros da forma como Doria usou a falta de memória e de interesse da população pela questão pública em seu interesse. Logo no começo de seu governo, Doria inaugurou um banheiro público no centro de SP e fez uma basta festa para isto. Criou até um nome para um programa de instalação de banheiros públicos em SP, com um nome do tipo “Tiramos você do aperto”. Após a festa, nenhum outro banheiro foi instalado e depois de alguns meses o único banheiro que tinha também foi desativado. Um outro caso claro foi o dos chamados “muros verdes” nas regiões em que grafites haviam sido apagados. Após a repercussão ruim da destruição dos grafites, Doria apareceu com um super projeto de criar estes muros verdes onde antes havia arte, que seriam segundo ele os maiores muros verdes do mundo. Viralizou entre seus seguidores. Um ano e meio depois, ninguém mais lembra deste projeto. Não importa, o ganho já havia acontecido.
Uma boa publicidade suplanta qualquer dado. O corujão da saúde foi um sucesso pela forma como foi divulgado, e não pelos dados. Ninguém quer saber muito de dados, afinal, e esta talvez tenha sido a grande sacada de Doria na Prefeitura. As pessoas não têm o menor interesse em se informar de verdade, o que torna o ambiente propício para a manipulação. Doria falsificou até a própria história na vida política. Sua fortuna é basicamente fruto de herança, seu pai era o maior publicitário do país. Mas Doria convenceu a população de que conseguiu sua riqueza trabalhando. Quando seu pai voltou do exílio e não podia ser registrado como trabalhador, seus amigos “empregaram” seu filho como forma de contratar na realidade o pai. Doria transformou isto em prova de que havia começado a trabalhar na adolescência. Sua vida profissional é um grande fracasso. Sua passagem na Embratur foi uma vergonha, seus programas de TV não chegavam a um ponto de audiência. Suas edições apresentando O Aprendiz foram as mais mal sucedidas. Conseguiu espaço no PSDB graças a uma empresa de lobby que aproximava empresários de políticos e ganhou a vaga para disputar a prefeitura de SP comprando votos nas prévias do partido e pagando a dívida que Geraldo Alckmin havia deixado em sua campanha para governador em 2014. Na Prefeitura, repetiu na gestão pública sua vida de fracassos na esfera privada. Não conseguiu privatizar nada que havia prometido, não resolveu as filas na saúde, não “resolveu” a cracolândia, nada.
Caso a simples propaganda não funcione para fazer a população acreditar naquilo que não foi feito ou não existe, Doria parte para o último subterfúgio, culpar o PT. Foi assim quando o seu “brilhante” plano de distribuir ração para alunos de escolas públicas naufragou. A culpa não era da tosquice da ideia, mas da esquerda que não o deixou vingar. A mesma coisa aconteceu na fracassada ação da cracolândia, que Doria disse que havia acabado no próprio dia da ação. Doria é totalmente incapaz de executar alguma ação. Não sabe, fruto de pura incompetência e afobação. Mas sabe fazer propaganda do que não fez como ninguém. Na sua campanha eleitoral, chamou até Paulo Skaf de comunista.
Doria fez sua gestão toda contrariando a opinião de especialistas. Percebeu que a população vê especialistas como “chatos que não conhecem a vida real”. A incapacidade e preguiça de procurar e analisar dados criou na população média a raiva a quem obtém e divulga estes dados. Logo nos primeiros meses do mandato, Doria disse que não fazia seu governo para istas, no que incluiu ativistas, especialistas e petistas. É a mesma coisa que Bolsonaro já anda dizendo, aliás.
Ainda está difícil imaginar o tamanho dos estragos que Bolsonaro fará em sua gestão. Embora completamente tosco e ignorante, já ficou claro que o presidente eleito não é burro. A forma como neutralizou Moro e trouxe para si a popularidade do “juiz super homem” mostra que ele tem uma capacidade grande de analisar o cenário político. Com certeza conseguirá fazer “mais” do que Doria, o que é ruim pela sua visão de mundo e também não é muito difícil, pois qualquer pessoa consegue fazer mais do que Doria. É aí que mora o perigo. O presidente eleito tem realmente um plano de poder, que já está incorporado aos interesses de igrejas evangélicas e das camadas mais reacionários do Exército e do Poder Judiciário. As duas instituições que poderiam controlar as ânsias autoritárias do presidente são parceiras dele na visão de mundo. As táticas utilizadas para distração e propagação de mentiras, porém, serão as mesmas de Doria. E são parte fundamental no avanço do projeto de poder. Afinal, como convencer trabalhadores que o fim do Ministério do Trabalho é algo bom? Gravando um vídeo falando mal do PT e falando bem da família. Vamos rezar.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

As razões de usarmos o termo fascista para Bolsonaro



Dediquei uma parte deste último fim de semana para tentar observar a forma como os bolsonaristas com os quais ainda tenho contato se comunicam sobre política em redes sociais. Na grande maioria das vezes, as opiniões são dadas através de memes ou de frases feitas com o objetivo de “lacrar”. Há muito espaço também para vídeos editados. É muito muito rara a existência de textos minimamente complexos ou que façam qualquer convite a reflexões. O site favorito de “jornalismo” deles é o Antagonista, que soube perfeitamente encontrar a forma de comunicação com este público. As “notícias” do site são compostas basicamente por um título sensacionalista, um parágrafo curto e uma conclusão “lacrando”, quase sempre de forma debochada. O contraditório deve ser ridicularizado e humilhado. Nas poucas vezes em que há debate, o objetivo é quase sempre deslegitimar quem dá a opinião e não a opinião em si. Por exemplo, se a Folha de São Paulo publica uma critica sobre Bolsonaro, a resposta dos bolsonaristas é criticar o jornal e não rebater de alguma forma a opinião que lá foi dada. Outra coisa que encontrei nesta busca é uma tentativa de ridicularizar quem usa o termo fascista para se referir a Bolsonaro e ao que acontece no Brasil atualmente. O objetivo deste texto é mostrar porque, na minha opinião, o uso do termo é aplicável ao governo eleito e refletir sobre isto.
Antes de tudo, é fundamental dizermos que é óbvio que teremos algumas características do fascismo europeu dos anos 30 que não encontraremos no fascismo tupiniquim do séc. XXI. Uma delas é o antissemitismo, característica básica do fascismo do séc. XX que foi substituído de certa forma pela islamofobia no fascismo do séc. XXI. Os muçulmanos representam a “minoria perigosa” deste momento nos países de primeiro mundo e de certa forma isto está contagiando o Brasil. Estas diferenças, porém, não são suficientes a meu ver para impedir que o termo seja usado com eficácia para determinar o que ocorre por aqui.
Algumas das características fascistas quem podemos encontrar em Bolsonaro são militarismo, glorificação da violência, obsessão por punitivismo, ideia de que a função da minoria é se adequar às vontades da maioria, ataques à imprensa livre, descrédito das instituições, autoritarismo, machismo e nacionalismo. Este último, porém, de uma forma inegavelmente mais vazia do que no século passado. Enquanto o nacionalismo do fascismo europeu era realizado através também da valorização cultural e histórica da pátria, o nacionalismo bolsonarista é muito mais bocó, baseado basicamente na ideia de hastear a bandeira do país e cantar o hino. É uma coisa muito mais ligada a símbolos, se tem uma coisa que Bolsonaro e seu séquito rejeitam é cultura.
Uma característica importante do fascismo é a forma como eles aplicam no governo aquilo que sempre criticavam. Por anos, por exemplo, disseram que o Brasil deveria evitar que ideologias interferissem em questões de relações internacionais. Antes mesmo de assumir o governo, Bolsonaro já disse que pretender romper relações diplomáticas com Cuba, mudar a embaixada brasileira para Jerusalém, provocando nossos parceiros árabes que são importantíssimos como compradores de produtos agrícolas e de carne daqui, e ameaçando a Venezuela, país com o qual temos superávit na balança comercial. Também criticavam paranoicamente as supostas tentativas petistas de aparelhar o Judiciário, mas eis que na semana da eleição Bolsonaro já atraiu Sérgio Moro para seu governo, controlando assim a Lava Jato e acabando com a independência do Ministério Público e da Polícia Federal, enquanto a mídia aplaude a entrada do juiz justiceiro no governo. Outra característica importante é a forma como o fascismo consegue se adaptar dizendo aquilo que um determinado grupo quer ouvir. Conseguem ser vistos como defensores dos trabalhadores pelos que trabalham e dos patrões para quem chefia, basicamente por dizer uma coisa para um e outra para o outro.
O avanço do fascismo no Brasil teve duas caras. A mais tosca e truculenta, representada por Bolsonaro, e a mais educada e bem vestida, representada por Moro. Não é à toa que as duas se encontram e veem na outra a possibilidade de implantar suas visões autoritárias no país. Bolsonaro precisa de Moro para que o Poder Judiciário legitime seus projetos autoritários, que é o que Poderes Judiciários fazem em todas as ditaduras no mundo, aliás. Não conheço nenhum caso em que Justiças tenham agido de outra forma. Moro vê em Bolsonaro a chance de colocar em prática para o país as medidas autoritárias que usou na Lava Jato, como abuso no uso de prisões preventivas, usadas como instrumento para obtenção forçada de delações muitas vezes sem provas e espetacularização do processo judicial. Não à toa a Lava Jato é dona do assustador projeto das “Dez medidas contra a corrupção”, algumas de tendência claramente fascistas, como o fim do habeas corpus, ampliação das possibilidades legais de prisão preventiva sem julgamento previsto e a legalização da ideia de “prova plantada” em delações. Com Moro, Bolsonaro controla a única força capaz de um dia suplantá-lo entre o eleitorado fascista e domina a Justiça, colocando os instrumentos do Poder Judiciário abaixo de alguém que é seu funcionário.
A minha leitura do momento é Psicologia das Massas do Fascismo, de Wilhelm Reich. O objetivo do autor do livro é uma análise da atração psicológica que o fascismo exerceu sobre a sociedade alemã e que o levou ao poder. Diz o autor que a principal ideia usada pelo nazismo para chegar ao topo foi a família. A instituição familiar, diz o autor, é a principal e mais querida instituição autoritária que conhecemos. A mais sagrada. O que o nazismo fez foi convencer a população a levar ao poder central uma organização governamental que lembraria muito o funcionamento de uma família, com um pai forte e truculento que movesse a família alemã em frente, conservando seus princípios e valores. Diz Reich que o principal mecanismo que faz o autoritarismo familiar funcionar é a opressão sexual feminina. É a forma como a sociedade e a própria mulher enxergam a sexualidade feminina como algo errado e pecaminoso, que deve ser combatido, que faz com que as próprias mulheres aceitem um papel submisso em relação ao homem na família tradicional. Trazendo para o Brasil, não é à toa que o nosso movimento fascista tenha verdadeira ojeriza pelo movimento feminista. Uma coisa inegavelmente diferente entre a família descrita por Reich e a atual família brasileira é que o autor descreve a família alemã dos anos 1920/30 como uma família numerosa que estava sempre em competição com as demais famílias da região. Através de riqueza e casamentos, uma família fagocitava a outra e o que Hitler fez, segundo o autor, foi levar este movimento de conquista de uma família sobre a outra para o cenário mundial. Foi o reconhecimento familiar deste movimento que fez com que a família tradicional alemã aprovasse os movimentos imperiais do seu ditador. Para quem tiver interesse em saber como isto ocorria na família alemã, recomendo o livro Os Buddenbrooks, de Thomas Mann, que mostra a ascensão e queda de uma família através dos mecanismos que seriam descritos posteriormente por Reich. Não acho que a família brasileira tenha esta característica atualmente. Talvez isto explique a ausência de imperialismos no projeto bolsonarista. Mas é fato que a tara de Bolsonaro em se apresentar como “defensor da família” mostra que o jogo psicológico é o mesmo. Mais do que isto, esta ideia talvez seja o foco da sua campanha. Como convencer um trabalhador a abrir mão de direitos como décimo terceiro, por exemplo? Convencendo-o de que o outro lado ameaça o laço social mais sagrado, a família.
Debater com fascistas é algo que beira o impossível. Fazemos uma análise e uma reflexão com base em clássicos das mais diversas disciplinas e recebemos como resposta um meme. É foda. Mas só nos resta tentar. Espero que algum deles consiga chegar ao final do texto. Acho difícil. Outra característica deles é a total mediocrização dos debates. Refletir e pensar já estão quase se tornando símbolos de resistência.

domingo, 4 de novembro de 2018

Bohemian Rhapsody e a morte do rock



Apesar do título, este texto falará muito pouco sobre o filme Bohemian Rhapsody, que retrata a vida de Freddie Mercury, vocalista do Queen. Como fã da banda, adorei o filme e recomendo a todos. Os realizadores do filme tiveram a brilhante e bem-sucedida ideia de focar mais no filme do que na vida pessoal de Mercury, causando uma verdadeira apoteose com a encenação quase total da lendária apresentação da banda no Live Aid. Uma banda como o Queen não teria menor espaço no rock hoje em dia. O motivo é simples, não apenas no Brasil, mas no mundo, o rock se tornou o som dos reacionários.
Não há público mais coxinha no mundo hoje, em geral, do que o roqueiro. Principalmente o fã de clássicos e de metal. No Brasil, o rock antigo, aliás, se tornou um escudo de arrogância e de sexualidade mal resolvida. Não há ser mais machista e homofóbico do que fã de Iron Maiden (deixando claro que é óbvio que há exceções), por exemplo. Não há no mundo hoje nenhum espaço para a experimentação musical ou para transgressões reais no rock. Com exceção do Radiohead, não creio haver neste instante nenhuma banda que experimente algo obtendo sucesso comercial. Bandas como Brian Jonestown Massacre, Kikagaku Moyo ou Jesus on Heroine estão completamente restritas a públicos minúsculos. O sucesso vem com bandas medíocres sem nenhuma espontaneidade como Killers ou Coldplay. Bandas que fazem músicas perfeitas para propagandas de margarinas ou de tênis. Que sabem fazer um show que sirva como bom pano de fundo para uma selfie.
Não que Queen não gostasse de fazer sucesso. Ou que não gostasse de ter músicas em comerciais de margarina e tênis. We will rock you que o diga. Mas também é a banda que fazia músicas de seis minutos que dificilmente tocaria em rádios e também era a banda que colocava todos os integrantes vestidos de mulher para tocar na MTV americana da era Reagan. O rock atual se tornou basicamente uma coisa de brancos ricos ou de classe média cantando sobre a vida vazia de brancos de classe média que têm como maior dilema a infelicidade com o emprego. Todo espaço para a real criação artística, para a experimentação e para a criatividade migrou para outros sons. O hip hop nos EUA, o eletrônico na Europa e o funk no Brasil. Do ponto de vista artístico, a Pablo Vittar é muito melhor do que qualquer banda de rock surgida no Brasil nesta década. É transgressora, provocadora e criativa. Já o rock brasileiro é medíocre e sem sal.
Nem sempre foi assim. Tirando os anos 80, a história do rock no Brasil foi brilhante. Um começo nos anos 50 com Cauby Peixoto seria a pré-história de um som que explodiria popularmente com a Jovem Guarda. Jovens que inicialmente se limitavam a copiar o Iê-Iê-Iê criariam a grande geração que comporia no futuro alguns dos maiores discos de nossa história, como Ronnie Von e Erasmo Carlos. Do lado menos popular e mais intelectual, surgiam nos anos 60 os Mutantes, talvez a mais experimental banda brasileira. Os anos 70 veriam surgir o que considero o melhor álbum da nossa história, Secos e Molhados e o maior nome do nosso rock, Raul Seixas. O final da década ainda veria aparecer o punk em SP. A onda criativa deu uma parada nos anos 80, com o surgimento de uma onda medíocre de bandas baseadas principalmente nas praias da zona sul carioca e da diplomacia brasiliense. Uma geração formada por jovens ricos que estimulavam o sentimento de vira-latas nacional, com péssimos letristas e instrumentistas ganhando tostões para agradar aqueles que basicamente gostavam de falar mal de tudo. Não há música mais vazia na nossa história do que Que País é Este, da Legião Urbana. O objetivo destas bandas era tirar qualquer componente nacional do nosso rock e fazer algo que ficasse o mais parecido e copiado possível das bandas internacionais. Deu bem errado, mas foi sem dúvida o início da centralização do rock na classe média branca privilegiada das grandes cidades. Nos anos 90, felizmente, o rock ganhou uma sobrevida, com uma geração brilhante de artistas e bandas que voltaram a tentar mesclar o rock com sons nacionais, enaltecendo as origens e criando algo verdadeiramente original. Para citar três nomes, falo de Raimundos, Planet Hemp e, principalmente, de Chico Science.
Não é à toa que no nosso momento atual, com o Brasil invadido por uma onda reacionária, as bandas mais populares do quase falecido estilo sejam as dos anos 80. É inacreditável imaginar que alguém ainda saia de casa e se disponha a pagar um ingresso para assistir a um show do Capital Inicial. Mas tem. Querem cantar algo que os impeça de pensar. Quando algo faz pensar, roqueiro chia. Não é à toa que parte do público vaiou Roger Waters porque ele disse não ao fascismo. Como que alguém que diz gostar de Pink Floyd pode ser fascista?
O rock envelheceu. Está quase morto. Perdeu espaço. Vive de lembranças de uma era gloriosa. Já foi vanguarda. Hoje é o que há de atraso. Coisa de jovens publicitários metidos a empreendedores. De quem vai em bares caros cantar Jota Quest bêbado com uma banda ruim. Poucas coisas são tão simbólicas disso quanto Florence que dá o nome à banda Florence and the Machine na capa da Vogue. Acabou. Quer procurar o espírito que antes era do rock? Está na hora de começar a ouvir funk.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

A queda do avião




“A eleição de Jair Bolsonaro é comparável à queda de um avião. Você não pode justifica-la apenas com uma razão”. Li esta frase em algum lugar e não me lembro quem a escreveu. Peço desculpas por não citar a fonte. O objetivo aqui é entender alguns motivos para a “queda do avião”. Já aviso aqui que quem se dispuser a ler esta análise não encontrará por aqui respostas clichês como “falta de autocrítica do PT”, “Ciro ter ido pra Paris” ou “busca pelo novo”. Resumir a eleição de Bolsonaro ao antipetismo é uma tentativa de, mais uma vez, reduzir o debate a esta verdadeira obsessão positiva ou negativa em relação ao PT. Havia várias opções não petistas nesta eleição, a única que era racista, machista e homofóbica era Bolsonaro. Ele venceu porque de certa forma conseguiu “libertar” essas pessoas, que por anos tiveram que esconder seus preconceitos e agora puseram livremente expor suas escrotices. Também não acho que sua vitória tenha sido a busca por algo novo, referindo-me exclusivamente à eleição presidencial. Bolsonaro é o que há de mais velho e tosco na política, tendo sido um deputado irrelevante por 28 anos e passado por diversos partidos corruptos. O objetivo aqui é fugir do clichê.
Algo como Bolsonaro não aparece do nada. É fruto de diversas mudanças, algumas imperceptíveis, que acontecem em nossa sociedade às vezes com o passar de muito tempo. A primeira destas mudanças, que eu enxergo como ganhando força já a partir dos anos 1990, é o crescimento da glamourização da violência. A partir dos anos 2000, ligar a TV à tarde basicamente é ver gente se matando. O discurso destes programas é quase sempre marcado por uma junção entre o incentivo à violência policial e o desrespeito à ideia de direitos humanos, interrompidos por propagandas de todo tipo, desde sistemas de proteção ao automóvel até pílulas que prometem a cura do câncer. Apresentadores charlatões ganharam fama e dinheiro mantendo um telespectador preso em frente à TV com medo, criando nele a percepção de que vivemos no mundo cão. Este processo explica a tara por segurança pública nas eleições estaduais deste ano. Doria ganhou em SP prometendo que, a partir do dia um do seu governo, policiais só atirariam para matar. Também disse que pagaria os melhores advogados para policiais que matassem bandidos. Witzel venceu no Rio colocando em seu plano de governo que a polícia teria o direito de “abater” qualquer pessoa suspeita, sem especificar suspeita de quê. No dia seguinte à eleição, apareceu com um projeto de contratar snipers para matar suspeitos, mesmo que estes não estejam oferecendo riscos à segurança pública no momento do “abate”. O uso deste verbo é importante para mostrar a tentativa clara de desumanizar o outro lado, de forma a ganhar apoio do cidadão de bem. Doria e Witzel propõe um estado psicopata, cuja principal função é matar bandidos. O que deveria ser a última opção do policial se torna a primeira, num processo que não leva em conta nem a segurança da vida do policial. Este processo não se reduz a SP e a RJ. Em SC, por exemplo, foi eleito um coronel da PM que parece com um xerife do Velho Oeste dos desenhos do Pica-Pau.
O processo de glamourização da violência sem dúvidas encontrou o seu símbolo máximo na figura de Capitão Nascimento. O personagem de Tropa de Elite é um psicopata que caiu nos gostos do público. É ele que está no subconsciente popular no momento em que Doria e Witzel fazem propostas que em qualquer lugar decente e civilizado do mundo seriam tratadas como apologia ao crime e que provavelmente seriam suficientes para colocar os dois na cadeia. Nascimento é o cara que resolve problemas matando, desrespeitando direitos humanos e a lei. Uma mistura de Bolsonaro com Sérgio Moro.
Um segundo ponto que indico é a espetacularização do tratamento midiático na Operação Lava Jato. A cobertura da operação para o grande pública foi feita de forma novelesca, dividindo claramente a história entre mocinhos e bandidos. Sérgio Moro descumpriu diversas vezes a lei e agiu de forma política, sem que houvesse quase nenhum tipo de crítica da grande mídia. Tudo valia para colocar “os bandidos na cadeia”. A parte mais tosca deste processo é a forma como condenação virou sinônimo de justiça e absolvição de impunidade. Toda vez que Gilmar Mendes mandava soltar alguém o objetivo era simplesmente ridicularizá-lo, sem que ninguém se preocupasse minimamente em entender os motivos que levaram o juiz a libertar o réu. Expedientes moralmente questionáveis como o abuso de prisões preventivas e de delações premiadas sem provas foram aplaudidas. Não tenho dúvidas de que as delações premiadas da Lava Jato estão incentivando a população a aceitar a forma como deputados bolsonaristas e o próprio presidente eleito estão incitando crianças a filmarem professores na sala de aula. Governos autoritários tendem a transformar a população civil em vigilantes. A mídia especializada preferiu defender um combate à corrupção seletivo feito de forma ilegal ao invés de defender as instituições que garantem o funcionamento da democracia.
Um terceiro ponto é a degradação do debate político e a transformação do político profissional em alvo de chacota. Neste processo julgo como fundamental a ação do programa CQC, que abordava políticos de forma agressiva e editava as matérias de forma a fazê-los parecer o mais ridículo possível. O argumento é que somos nós que pagamos os salários dos políticos, desta forma podemos trata-los mal. O que está por trás desta “ideia” é que basicamente o patrão pode tratar o empregado como bosta. As perguntas-ataques eram feita de forma a impedir qualquer chance de resposta do político, de forma que o repórter sempre “lacrasse”. O que o CQC fazia era basicamente o que o MBL passou a fazer, uma operação em que o político servia de escada para o herói-repórter, que saia como herói do conflito. Numa situação em que a mídia busca tratar políticos como idiotas, nada mais natural que se destaque o que é mais verdadeiramente idiota, no caso Bolsonaro. Ele sabia e sabe lidar bem em situações em que não tem tempo para falar nada porque não tem nada para falar. Bastava xingar alguém e aparecer como “mito” para a parcela da população que odeia tudo. Bolsonaro soube usar como ninguém o espaço dado por programas de subcelebridades dispostos a qualquer polêmica em troca de algum ponto de audiência.
O quarto ponto que eu destaco é um apontado por Wilhelm Reich em Psicologia de Massas do Fascismo que é a economicidade da vida. As pessoas passaram a ter como únicas preocupações na vida o emprego e a renda. Tudo vale para ter algum emprego e um salário. Usando a eleição americana como exemplo, o “cidadão de bem” americano não se importa em saber que uma família imigrante vai ser separada e destruída como uma expulsão do país desde que isto o ajude a arrumar um emprego. Economistas em geral não se envergonharam ao se juntar com um político com as características de Bolsonaro que, para conquistar ao mercado, adotou ideias neoliberais. Os possíveis ataques a gays, movimentos sociais e minorias em geral são coadjuvantes perto dos ganhos que eles podem obter com as privatizações de estatais. Parte desta enorme decadência moral é fruto da forma como a educação sempre foi vista no Brasil. A função da educação sempre foi mais formar mão-de-obra do que formar cidadãos pensantes. Desta forma, o brasileiro médio com diploma só acha que ele faz sentido se conseguir um emprego melhor e mais dinheiro com ele. O brasileiro com diploma e desempregado acha que a faculdade foi uma perda de tempo, uma vez que não cresceu absolutamente nada como pessoa. O governo do PT, embora tenha trazido avanços gigantescos nesta área, de certa forma incentivou esta ideia. O Ciência sem Fronteiras, por exemplo, abarcava apenas matérias de ciências exatas. O processo de desvalorização das ciências humanas ajuda a explicar a facilidade com que as pessoas desvalorizam a vida humana e buscam explicações simplistas para problemas complexos. O Brasil passa, a meu ver, por uma espécie meio tosca de Reforma Protestante, com o crescimento das Igrejas Evangélicas. Não há dúvida de que elas fazem sim um trabalho importante em dar um sentido à vida de muitas pessoas e em agir em regiões em que o estado está completamente ausente. É fato também, que elas têm um claro projeto de poder, especialmente a Igreja Universal. Não à toa, a TV Record já assumiu o papel de TV Oficial do novo regime. O que está versão tosca de reforma está trazendo de mais importante, porém, é a ideia de que o trabalho é o valor máximo, o único meio de se demonstrar caráter e importância social. Não à toa um dos xingamentos favoritos de todo bolsonete a seus adversários é "vagabundo".
Um quinto ponto que eu enxergo é a forma como todas as enormes evoluções sociais que passamos nos anos 2000 foram caracterizadas por uma maioria como “politicamente correto” e como o combate a este “politicamente correto” se tornou a prioridade, especialmente entre homens, brancos, héteros e ricos / classe média. Numa sociedade com uma quantidade enorme de problemas, uma parcela da população com muito espaço na opinião pública transformou o combate a uma ideia que tem no nome a palavra “correto” em prioridade. Deu certo. Tudo que tentou ou tenta combater desigualdades passou a ser visto como coitadismo.
Outros motivos podem existir, claro. Ainda estou, por exemplo, tentando pensar de forma mais clara numa teoria da infelicidade e do ódio que atinge atualmente pessoas de uma certa faixa etária, que não tiveram seus sonhos realizados na vida e que por isso querem basicamente que tudo se foda. Outro motivo é a forma como as redes sociais uniram pessoas idiotas, que anteriormente tinham suas opiniões absurdas refutadas e que agora veem seus egos aumentados a cada curtida em posts com preconceitos.  O fato é que o avião caiu. Os possíveis estragos são enormes. Cabe a quem enxerga isto tentar diminuí-los. E isto exigirá uma participação política e social que não pode mais ficar restrita apenas às eleições. Política, mais do que nunca, tem que ser feita no dia-a-dia.