domingo, 30 de junho de 2019

A distopia tropical, os aloprados e o dono do puteiro




Veio-me à cabeça nestes dias a ideia de escrever um conto distópico, passado ainda não sei exatamente em que lugar e que ainda não conheço ao certo o final. Eis o que tenho até agora.
Num grande país tropical, um ex-capitão fracassado e aloprado chega ao poder graças a uma aliança muito louca, que envolve grupos fanáticos de evangélicos manipulados por pastores charlatões, policiais desonestos que formam milícias que controlam o crime organizado, empresas fabricantes de armas e o dono do puteiro. Chegando ao poder, o capitão aloprado começa a atender os interesses de cada um destes grupos. Começa pelos pastores charlatões. Um deles é dono de um grande grupo de mídia de propriedade do pastor mais charlatão, que começa a receber milhões do governo do capitão em publicidade fajuta, recebendo uma cobertura de seus meios de comunicação que mais lembra uma assessoria de imprensa. Em segundo lugar, vem o agrado às empresas fabricantes de armas. Mas antes disto, é importante citar um outro personagem fundamental para o conto distópico.
A ascensão do capitão aloprado ao poder só foi possível graças à ação de um juiz aloprado. Sem provas, este juiz aloprado colocou na prisão o grande inimigo político do capitão aloprado e, como prêmio, tornou-se ministro aloprado do governo aloprado. Já no final do conto, um jornalista descobre que o à época juiz aloprado atuou como advogado de acusação no caso do inimigo do capitão aloprado, fraudou provas, fez o diabo. Para se defender das acusações, o ministro aloprado apoiou uma manifestação de aloprados que, entre outras coisas, pede a expulsão do jornalista do país tropical e o fechamento do poder judiciário. Mas me adiantei um pouco na história. Desculpa.
Já no começo do governo do capitão aloprado, o ministro aloprado foi o responsável por escrever um decreto que flexibilizava a posse de armas no país tropical. As ações das empresas fabricantes de armas explodiram graças a isto, para felicidades dos aloprados. Em outro decreto, o ministro aloprado quer praticamente permitir que forças policiais possam utilizar arma de fogo contra qualquer suspeito, sem risco algum de processo por isto, facilitando muito a ação dos policiais desonestos que montaram milícias criminosas.
Um grande aliado do capitão aloprado e do ministro aloprado é um outro ex-juiz aloprado, que se tornou governador graças à alopração tropical. Sua grande promessa de campanha era basicamente colocar as forças policiais para matar sempre que possível, recebendo para isto auxílio do outro ex-juiz aloprado que, agora como ministro aloprado, quer legalizar isto. Grande aliado das milícias, o grande feito do governador aloprado até o momento foi uma ação em que sobrevoou uma região pobre de seu estado de helicóptero apontando uma metralhadora contra inocentes. Bom, chegou a hora de entrar na história um personagem importante da aliança que levou o capitão aloprado ao poder e que é o primeiro a se foder na loucura toda, o dono do puteiro.
O país tropical realiza uma vez por ano uma importante e chata corrida de automóveis, sendo este evento o ápice do ano no setor da putaria. Pessoas ricas de todo o continente vêm de toda parte do continente para ver os carros correndo e organizar putarias. Acontece que as milícias policiais que financiam o governo do capitão aloprado estão investindo nos mais diferentes ramos de negócios na segunda maior cidade do país tropical, cidade-natal do capitão aloprado e governada pelo governador aloprado. Dois ramos em que a milícia começa a entrar são jogos de azar e putaria. Quanto ao primeiro, já há um movimento de deputados do partido do capitão aloprado tentando vender o Br..., desculpa, o país tropical como “a nova Las Vegas”. Quanto ao ramo da putaria, as milícias apostam na corrida de automóvel para expandir seus negócios e ganhar muito dinheiro com a putaria dos fãs de automobilismo. Do nada, o capitão aloprado, ao lado do governador aloprado, anunciou que a corrida de carros seria agora na sua cidade-natal, emputecendo o dono do puteiro, seu ex-aliado que vai perder uma fortuna ao não ter mais o grande evento da putaria continental próximo ao seu estabelecimento. Numa situação inexplicável, o Exército, sim, o Exército, decidiu doar um terreno gigante para o governador aloprado construir um local para a corrida de carros na cidade-natal do capitão aloprado. Às pressas, apareceu um grupo aloprado querendo construir o autódromo para esta corrida. Ninguém sabe direito quem é este grupo, nem como ele vai lucrar com a pista, mas talvez seja alguém que vai lucrar muito em outro tipo de negócio graças à corrida. Tipo algum grupo que anda investindo na putaria, sei lá.
O dono do puteiro está puto e se sente traído. Quando o grande inimigo do capitão aloprado foi preso pelo ministro aloprado, o dono do puteiro organizou putarias públicas em homenagem aos dois. Mostra-se arrependido e já começa a trabalhar para evitar a mudança do local da corrida de carros. Tem como principal aliado para isto o governador de seu estado, grande cliente dos estabelecimentos do dono do puteiro. O governador putanheiro, embora aliado, sonha em rivalizar com o capitão aloprado na próxima eleição presidencial e perder a corrida de automóveis significaria uma primeira derrota.
Todos querem o cargo do capitão aloprado. O ministro aloprado que defende o fechamento do Judiciário, o governador aloprado que comete genocídio em seus estado e o governador putanheiro que viaja o mundo enquanto governa. Quem vai mandar na putaria pelos próximos anos? Ainda não se sabe ao certo. Mas tenho medo (e muito!) dos próximos capítulos. A inocência do inimigo do capitão aloprado já está provada, mas mesmo assim ele segue preso. Não há imaginação capaz de lidar com o terror que este conto distópico pode significar.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Porta dos Desesperados - O ministro Mallandro e a histeria política



Quando eu era criança, meu quadro de TV favorito era a Porta dos Desesperados no programa do Sérgio Mallandro. Neste quadro, uma criança tinha que escolher entre três portas, uma repleta de brinquedos, uma com uma bicicleta e outra com um ator vestido de monstro que saia correndo se a porta fosse aberta. A grande estrela do quadro era Mallandro que, alucinado, tentava fazer a criança mudar de porta. Ele berrava, chorava, rolava no chão, tudo pra fazer a criança mudar de porta. Se a criança mudasse de porta, em seguida ele começava a berrar, chorar, rolar no chão, mas desta vez para fazer a criança voltar à porta que havia escolhido. A Porta dos Desesperados é uma boa metáfora para o que aconteceu no Brasil nos últimos anos. Uma pessoa histérica e alucinada berrando na orelha de uma pessoa e ela escolhendo no final a porta com o monstro.
Ao pensar neste texto, resolvi procurar no Youtube um vídeo da Porta dos Desesperados. Uma coisa que me surpreendeu nesta busca é que eu realmente não me lembrava de que o Sérgio Mallandro era um ator tão ruim. Ele já havia sacado, porém, qual era a principal arma para enganar, manipular e entreter uma pessoa, a histeria. A televisão nos anos 90 nos acostumou a algumas coisas. A ideia de glorificação da violência vem de lá, por exemplo. Mas uma pouco comentada é a forma como ela nos acostumou à histeria. Diversos atores e atrizes, muitas vezes profissionais, utilizam das armas da histeria para esconder o fato de que são péssimos atores e atrizes. O exemplo mais gritante disto, a meu ver, é Adriana Esteves. Ela ganhou fama e prestígio graças a pior interpretação da história da teledramaturgia mundial (ok, é exagero), que foi o papel de Carminha. Faça uma careta bem caricata, jogue os braços para o alto, grite, descabele-se. É isto que ela faz em basicamente todos os papéis que têm, sempre sendo premiada por isto. Uma eterna Carminha.
Atores não profissionais também utilizaram a histeria na arte de enganar. Todo programa sensacionalista da TV tem um apresentador histérico, que berra e bate na mesa. O povo gosta disto e identifica esta característica como sendo algo real. A histeria foi tratada como qualidade. São pessoas que dizem aquilo que “poucos têm a coragem de dizer”, mas que no fundo quase todo mundo diz. A histeria permite que este apresentador repita o senso comum como se aquilo fosse um ato libertador. Este tipo de programa sempre tem o histérico como estrela e ao seu lado um “especialista” calmo, normalmente um advogado canastrão que trabalha como figurante de um grande espetáculo circense.
A televisão nos acostumou e popularizou a ideia da pessoa chiliquenta e berrando, baseando suas opiniões em sensos comuns vazios e recusando qualquer tipo de reflexão. Jair Bolsonaro surge como um personagem perfeito para o tipo de papel que a televisão sempre vangloriou. O presidente levou à política o apresentador de TV sensacionalista. Bolsonaro não é especialista em nenhum assunto, sendo incapaz de falar sobre mais de um minuto sobre qualquer assunto. Suas opiniões são baseadas em achismos completamente descolados de qualquer estudo ou análise, resumindo-se a “ideias” fracas que geram bordões. Seus 28 anos de mandatos insignificantes como deputado federal foram premiados com inúmeras participações em programas popularescos em que ele era convidado a dar sua opinião “polêmica” sobre todos os assuntos possíveis.
Se Bolsonaro representou bem o papel histérico do apresentador de televisão sensacionalista, Sérgio Moro assumiu com esperteza o papel de auxiliar advogado canastrão. Assistindo a sessão de Moro no Senado na última quarta-feira, impressionou-me a forma como o ministro é mal preparado para mentir. Se Bolsonaro lembra Adriana Esteves interpretando a Carminha, Sérgio Moro lembra o Cigano Igor. Moro normalmente muda o tom de voz, começa a piscar mais rápido e gagueja quando está mentido. Dificilmente consegue olhar nos olhos do seu interlocutor quando vai inventar algo. Lembro-me dele no programa de Pedro Bial, quando o apresentador perguntou se ele gostava de ler. O ministro disse que sim, que gostava de biografias, e o apresentador perguntou qual a última que ele tinha lido. Moro olhou pro lado, piscou quinhentas vezes e disse gaguejando que não lembrava.
Na mesma resposta Moro disse, em sequência, que seu celular havia sido hackeado, que não usava Telegram, que as mensagens eram falsas e que não havia nada demais no que havia sido exposto. Sempre piscando e olhando para o horizonte. Suas respostas na sessão eram baseadas em quatro ou cinco bordões que havia decorado e que respondia independente da  relação que havia entre a questão e a resposta. Um deputado aproveitou a sessão para perguntar sobre a situação nas prisões em Amazonas e Moro disse que era vítima de uma mídia sensacionalista. Disse isso um dia depois de ir ao Ratinho, aliás. Lembrou-me muito o Dr. Farah, do antigo programa do SBT e que em um dado momento chamou Ratinho de Sr. Rato.
Não espaço para reflexão e pensamento no campo da histeria. Há somente o estímulo aos são instintos, neste caso quase sempre a raiva e o ódio. Toda a carreira de Bolsonaro e de seu assistente de palco Sérgio Moro são baseadas nisto. Foi muito fácil para a grande mídia nacional incorporá-los. Eles se adequaram perfeitamente à dinâmica da narrativa política adotada a partir de 2013.  Foi fácil para o público histérico aceitar o enredo tosco que construíram. É muito difícil escapar da narrativa que ela ajudou a criar sobre o ministro. Lembro-me quando ele se tornou ministro da Justiça e da Segurança Pública e foi apresentado por toda a mídia como um especialista sobre o assunto. Procurei para tentar achar alguma contribuição de Moro na área acadêmica sobre os temas. Não encontrei nenhum. A mídia vendeu Moro do mesmo jeito que Ratinho vendia o canastrão Dr. Farah. Nesta semana, Moro dá indícios de que vai colocar a PF para perseguir o órgão de mídia que está divulgando suas mensagens. A maior parte da grande mídia apoia o ministro, tentando desta forma recuperar o monopólio da informação. Todo mundo sabe desde sempre que o julgamento de Lula foi fajuto. Mas o show tem que continuar. O Brasil é vítima de uma grande pegadinha do Mallandro. E ela só tem graça enquanto aqueles que são as vítimas sigam sem perceber. O monstro saiu da casinha. Glu glu ié ié.

terça-feira, 18 de junho de 2019

Dostoievski, o Deus do Velho Testamento e o autoritarismo bíblico do séc. 21



O Grande Inquisidor é o capítulo mais famoso de Irmãos Karamazov, obra derradeira da carreira de Fiodor Dostoievski. O capítulo é uma grande digressão e não possui quase nenhuma ligação com o restante da obra. É comum inclusive encontra-lo nas coletâneas de contos russos lançadas por aqui, tornou-se quase que uma parte separada da obra que a contém. Quem praticamente narra o capítulo é Ivan, um dos três irmãos que dão título à obra e narra-se os efeitos de uma possível volta de Jesus ao mundo dos homens. Preocupada com o que isto pode acarretar, a Igreja logo o captura e o condena à morte. O Inquisidor vai então conversar com o condenado e explica o motivo de sua condenação. Diz o árbitro a Jesus que a principal função da existência da ideia divina e de seu filho é o controle que é exercido pela Igreja, detentora digamos que do monopólio dos direitos sobre a palavra divina. Uma volta de Jesus significaria, portanto, a quebra deste controle e causaria um caos social, com a destruição da instituição capaz de controlar e organizar a humanidade. Jesus acompanha toda a fala do Inquisidor em silêncio e com um sorriso. Há diferentes interpretações para este silêncio. É possível se acreditar que há uma anuência entre Jesus e seu algoz. No final, fica a reflexão, foi Deus que inventou o homem à sua imagem e semelhança ou foi o homem que inventou Deus à sua imagem e semelhança? São os homens que vieram à terra para atender os desejos de Deus ou é Deus que existe para atender aos interesses humanos?
Dostoievski sabia que Irmãos Karamazov seria sua última obra e a utiliza também para fazer um balanço reflexivo sobre sua existência. Cada irmão representa uma fase do autor. Dimitri, o mais velho, representa sua juventude, um personagem emotivo, quase um jovem irresponsável. Ivan, o irmão do meio, é o autor numa fase adulta mais madura, extremamente racional e amante das ciências. Aleksei, o mais jovem, representa a fase final da vida do autor, em que ele se entregou a fé cristã com devoção. Os três passam a obra em choque com o grande vilão da história, o pai Fiodor, que não à toa tem o nome de Dostoievski. Todos os defeitos possíveis e imagináveis do autor e de qualquer ser humano são encontrados no pai Karamazov. Não há na história da literatura mundial um ser mais mesquinho, egocêntrico, vaidoso, egoísta, sarcástico e vingativo do que o Deus do Velho Testamento. O Deus que vê tudo e está em todos os lugares te julgando, que criou uma lista de Dez Mandamentos que devem ser cumpridos e que, caso não sejam cumpridos, resultarão em punição eterna em um lugar que pega fogo e cheira a enxofre. Um Deus que manda seus filhos à morte em guerras pelo Seu nome e que chega ao cúmulo de exigir de um pai o sacrifício do próprio filho apenas para ver se aquele realmente está disposto a tudo para provar sua submissão. Em outras palavras, um Deus criado à imagem e semelhança dos homens que o veneram. Fiodor surge quase como um Deus cristão na obra e cada filho enfrenta esta divindade de uma forma. Dimitri, o irracional, busca sempre o choque. Ivan, o racional, busca negá-lo. Alioucha, o religioso, busca compreender a ele e a todos.
Não tenho a pretensão de achar que alguém vá ler Irmãos Karamazov a partir deste texto. Trata-se de um livro de 900 páginas e nas primeiras 300 páginas basicamente nada acontece. É literatura russa escrita no século XIX, um momento em que a literatura era basicamente uma das únicas formas de entretenimento realmente disponíveis e em que as pessoas tinham tempo para a leitura. Digo isto porque darei alguns “spoilers” da obra agora. Fiodor é assassinado e todos os indícios apontam Dimitri como autor do crime. Em um dado momento, descobrimos que o assassino na verdade é Smerdiakov, apresentado na obra como possível filho bastardo de Fiodor, fruto de um possível estupro do pai Karamazov em uma antiga funcionária com problemas mentais. Digo “possível” para os dois atos porque a obra não explicita se a situação é verdadeira ou não. Smerdiakov pratica o crime a partir de uma conversa com Ivan, o racional, em que o segundo irmão Karamazov questiona a ideia de culpa e diz que a racionalidade exige atitudes que enfrentem qualquer tipo de moralismo. Grandes homens são capazes de matar, argumenta Ivan, de certa forma argumentando com Rodion Raskolnikov, protagonista de Crime e Castigo. Smerdiakov se suicida após confessar seu crime a Ivan. Sem conseguir provar a inocência do irmão e vivendo o remorso do assassinato ocorrido por sua influência, Ivan enlouquece. Dimitri termina a obra preso pelo crime que não cometeu, principalmente graças ao trabalho da acusação e o único que consegue encontrar alguma paz no final é Alioucha, salvo pela fé e pela capacidade de compreensão que ela traz.
O evento-chave da vida de Dostoievski, e portanto de sua obra, é a prisão. O autor foi preso na metade do século XIX, no ápice da sua juventude, por participar de grupos liberais. Foi condenado à morte por conspirar contra o czar e chegou a ser posto à frente do pelotão que iria fuzilá-lo. O czar, porém, havia mudado de ideia e só queria na verdade “pregar uma peça”, dar um susto nos condenados. Nada mais similar ao Deus do Novo Testamento, não? No fundo, o objetivo de todo regime autoritário é representar na Terra este Deus antigo, seja se colocando como representante Dele na Terra, seja o substituindo. Não à toa vemos a aliança entre o atual regime autoritário brasileiro e as igrejas evangélicas, por exemplo. Pois bem, foi a experiência na cadeia que transformou Dostoievski de Ivan em Alioucha. Esta experiência, aliás, é narrada pelo autor no livro Memória da Casa dos Mortos, possivelmente um dos livros mais tristes já escritos.
Os dois grandes clássicos do autor russo vem desta fase pós-cadeia, sempre tendo a ideia de erro e redenção. Em Crime e Castigo, a redenção para o maior dos pecados vem através do amor. Rodion Raskolnikov mata para conquistar a grandeza, quer ser como Napoleão, mas tudo o que encontra é a culpa. O remorso o corrói e apenas o amor incondicional de Sonia é capaz de salva-lo. Em Irmãos Karamazov temos o conhecimento levando à loucura e apenas a compreensão levando à salvação. Se o pai Fiodor representa o Deus maligno do Velho Testamento, Alioucha representa a caridade divina do Novo Testamento. Este personagem não julga, não pune, apenas compreende. Todos encontram nele o apoio nos inúmeros percalços que a vida traz, culminando no extraordinário último capítulo em que o enterro de um personagem infantil leva os personagens a uma celebração da vida. É de certa forma o autor se preparando para seu fim e encontrando em Alioucha a sua calma derradeira.
O homem não criou apenas Deus a sua imagem e semelhança. Quase todas as crenças e mitos foram criados desta forma. Por trás de todo mito há um projeto de poder, alguma forma de se tentar justificar uma exploração. A principal função da religião é o controle e a opressão. O Ocidente se moldou com a ideia de que existe um homem invisível, que enxerga tudo que você faz, que sabe o que você pensa, ao qual você deve ser submisso e obediente sem questionamentos. Todo sistema explorador e opressor no Ocidente utiliza o cristianismo como base. É assim na família, na escola, no emprego e em quaisquer outros locais. A fé aliada à cobiça levou o ser humano aos maiores crimes de sua história. Os espanhóis dispostos a buscar ouro e prata executaram índios com a justificativa de salvar suas almas para o Deus que inventaram. Os alemães buscando recursos para sua guerra total praticamente eliminaram um povo do continente europeu porque estes haviam matado o filho deste mesmo Deus. “In God We Trust” está escrito nas notas de dólar usadas para a construção de armas que são jogadas em países miseráveis do Oriente Médio.
Não há sistema autoritário que funcione sem algum tipo de crença religiosa ou baseada nela. E a aposta dos atuais regimes que vem dominando o chamado Ocidente é no Deus do Velho Testamento. Onde há autoritarismo há Bíblia. Não há espaço para compreensão e tudo vale para as figuras que conseguiram o patamar divino. A fé que seus seguidores têm em seus ídolos divinos é cega. Não foi Deus que criou o homem, e sim o inverso. O mesmo serve para qualquer figura que se aproveitando de poderes míticos obtém algum tipo de poder. Não foi Hitler que criou a Alemanha nazista, foi a Alemanha daquele período que criou condições para que um monstro daqueles aparecesse. É a sociedade que pede um monstro que coloque em prática os planos que, em certa medida, vem desde o Velho Testamento.
Somos desde cedo acostumados à ideia de que o autoritarismo é uma coisa natural. Não à toa que a maior parte dos regimes autoritários é tão apegada à noção de família, apresentando-se como suas defensoras. Elas buscam na instituição mais antiga e a qual somos mais apegados as justificativas para seus projetos. Afinal, quem vai ser contra defender a família? O que estes governos propõem no fundo é a extensão do aparato autoritário familiar para o Estado, tendo o grande líder o papel de “pai” desta grande família. Bolsonaro, o grande símbolo de união entre discurso religioso e interesse financeiro do novo milênio, cortou todos os ministérios que pôde, mas criou o da família. O Deus do Velho Testamento, base intelectual destes regimes, nada mais é do que o pai enérgico que pune. 
O surgimento da ideia de estado democrático de direito na sociedade moderna surge ao mesmo tempo em que se pretende tirar da religião o poder de comando. Liberdade e cristianismo não andam lado-a-lado. O Deus cristão te quer obediente à sua invisibilidade. A era de ouro do cristianismo foi o feudalismo, em que o papa e o senhor feudal eram literalmente donos da vida dos servos. A era de ouro do cristianismo é a era da escuridão. Quando Montesquieu desenhou a separação de poderes, ele nada mais fez do que quebrar a Santíssima Trindade. Deus é o pai, o filho e o Espírito Santo porque legisla, julga e executa. Separar aquele que legisla daquele que julga e daquele que executa tem exatamente a função de quebrar o laço divino entre poder na vida terrena e a figura divina. Toda figura autoritária tem como objetivo juntar estes três poderes novamente.
É muito comum o apelo que figuras da Lava Jato fazem à Bíblia. Na semana passada, o juiz Marcelo Bretas questionou Montesquieu como idealizador da separação dos três poderes. Disse o Moro carioca: “A teoria da separação dos poderes foi mesmo idealizada por Montesquieu? Veja o que o profeta Isaías escrevera aprox. 2.500 anos antes dele (por volta de 750 AC): 'Porque o Senhor é o nosso juiz; o Senhor é o nosso legislador; o Senhor é o nosso rei; ele nos salvará.' (Isaías 33:22)”. Não vou entrar no mérito da assustadora incapacidade que um juiz de direito tem de interpretar um texto. Ser capaz de ler e entender o que está lendo é a qualidade básica de um juiz e Bretas não é capaz de entender algo que um pré-adolescente alfabetizado consegue. O que importa aqui é ver o uso explícito da religião por parte de um magistrado e a forma como ele enxerga no autoritarismo do Deus do Velho Testamento o tipo de governo ideal, e não na Constituição Liberal ou Social-Democrata. O mesmo Bretas já disse em entrevista que o livro que para ele a Bíblia é mais importante em seus julgamentos do que a Constituição. Bretas está longe de ser a exceção na Lava Jato. Deltan Dallagnol se apresentava no Twitter como um temente a Deus formado em Harvard. Com os escândalos de pessoas falsificando a presença em cursos de Harvard, o procurador resolveu apagar esta parte.
Para o Deus do Velho Testamento não há espaço para compreensão, apenas para julgamento. Embora este Deus seja onipresente, onipotente e onisciente, seus súditos acreditam que sua função na vida terrena é ajudar este Deus Todo Poderoso no Seu controle. Estão o tempo todo preocupados com aquilo que a outra pessoa faz. Estão prontas para denunciar. Para o Novo Testamento há apenas um crime quase imperdoável, a delação. A figura mais difícil de se perdoar na fábula bíblica é Judas. Para os amantes do Velho Testamento, porém, a delação é quase uma obrigação na sua relação de submissão a Deus e àqueles que eles julgam serem seus representantes na Terra.
Deus é uma figura invisível, mas que está em todos os lugares, vê tudo que você vê, sabe tudo que você pensa, sente tudo que você sente e que vai te punir dolorosamente a cada erro. Substitua a palavra Deus pela palavra mercado e você entenderá o fanatismo que as pessoas que nele e por ele trabalham sentem. Do mesmo jeito que o crente coloca o interesse da figura mítica do Deus do Velho Testamento acima de tudo, a pessoa do mercado coloca o interesse da sua versão de Deus acima de qualquer coisa. Não há problemas em se aliar, por exemplo, a uma figura que prega a execução de rivais políticos, a perseguição a pessoas de diferentes opções sexuais, o armamento da população, o racismo, o machismo e a ignorância em todos os sentidos. O mercado sempre atuou lado-a-lado da morte em nome de Deus. As Cruzadas abriram um novo mercado executando “infiéis”. A colonização nas Américas escravizou em nome do Senhor. No Brasil atual, vale tudo pela privatização. Os dois interesses se encontram na Reforma da Previdência. O mercado ganha a confiança dos investidores internacionais e novos clientes para o setor de previdência privada. Em troca, os seguidores do Deus cristão ganham a possibilidade de ocupar seis dos onze cargos no STF, com a mudança de idade da aposentadoria dos juízes deste órgão de 75 para 70 anos. O caminho está aberto para que a palavra de Deus substitua a Constituição.
Moro mentiu, fraudou e perseguiu. Manipulou uma eleição. Nada disso incomoda a bancada evangélica, que declarou apoio incondicional ao ministro. Identificam-se com o ministro, afinal. O que Moro fez nada mais foi do que levar ao centro do poder as mesmas táticas que fizeram a riqueza de boa parte dos pastores que hoje o apoiam. E, sim, podemos afirmar também que ele usa as mesmas táticas do Deus do Velho Testamento. O mesmo homem que criou Deus para atender seus interesses, também cria na sociedade moderna os seus mitos. Brasil acima de tudo. America’s first. Deutschland über alles. Deus acima de todos.
Dostoievski achou o caminho da salvação na compreensão. Sua versão jovem termina presa. Sua versão racional enlouquece. O conhecimento não lida bem com o mundo moderno. É difícil ver o que está acontecendo por aqui e conviver com isto sabendo o que está acontecendo. O único que se salva é aquele que compreende sem julgar. Para conseguir chegar a este nível, porém, Dostoievski precisou chegar ao fundo do poço. Enxergar a morte de perto e voltar para o mundo terreno. Ressuscitar no terceiro dia. Para ressuscitar é preciso chegar até o fim. É para lá que caminhamos.

sexta-feira, 14 de junho de 2019

A numerada bajulando o camarote e a submissão da classe média ao poder da elite




Poucas imagens são tão marcantes para demonstrar as relações de poder entre elite e classe média e a submissão desta em relação àquela quanto a obtida na última quarta-feira na partida entre CSA x Flamengo em Brasília. Buscando apoio após os vazamentos que comprovam os crimes que cometeu durante a Operação Lava Jato que o alçou à fama, Sérgio Moro foi com o presidente que se beneficiou dos seus crimes ao jogo do time de maior torcida do Brasil na capital. Constrangido, pois definitivamente lidar com pessoas não é sua maior habilidade, Moro vestiu uma camisa do Flamengo no camarote, para delírio do público da numerada que estava abaixo do ministro. A numerada sonha em ser o camarote e morre de medo de voltar a ser arquibancada. A classe média sonha em ser elite e morre de medo de ser confundida com povo. É através deste medo e deste sonho que ela é facilmente manipulada pela elite, que impõe a ela os valores que justificam sua exploração e sua infelicidade.
O Flamengo é atualmente o time mais rico do país. Sua folha de pagamento de salário para jogadores ultrapassa os R$ 3 milhões mensais, gastou aproximadamente R$ 50 milhões para a temporada e quer títulos. No começo deste ano, um grupo de garotos buscando o sonho de jogar profissionalmente na equipe morreu num incêndio nas categorias de base do clube. Dez garotos entre 14 e 16 anos perderam suas vidas enquanto dormiam em containers sem condições e sem alvará. A primeira proposta que o Flamengo fez para as famílias de cada um dos meninos mortos foi de R$ 400 mil por vida, provavelmente algo próximo do salário mensal do técnico português Jorge Luz, que acabou de contratar. As famílias que não aceitassem teriam que enfrentar o clube na justiça, onde a situação duraria anos. Algumas famílias aceitaram, outras não. O clube não sofreu nenhuma punição desportiva pela morte dos garotos e na semana passada o seu presidente foi indiciado criminalmente pelas mortes. Não sei se ele estava no camarote com Bolsonaro e Moro na partida. Acredito que não, mas também acredito que ninguém veria problemas na situação. Afinal, o que são dez vidas adolescentes perdidas perto do “Mengão”?
O apoio do pessoal do camarote foi fundamental para que Bolsonaro e Moro chegassem ao poder. Foram anos de revolta vendo pessoas “diferentes” saindo das arquibancadas e chegando ao camarote e aquilo precisava ser derrotado. Anos de frustração e infelicidade que encontraram sua voz numa pessoa frustrada e infeliz, o “mito”. Bolsonaro é a voz da classe média do camarote, que enxerga nele as mesmas características toscas que vê em si. Assim, como ela, o “mito” é ignorante, arrogante, preconceituoso, paranoico e mentiroso. Preguiçoso intelectualmente, rejeita qualquer tipo de conhecimento que julgue “inútil”, como a arte e as ciências humanas. O pensamento e a reflexão incomodam, o que vale mesmo é falar merda com base em nada. A falta de capacidade do atual presidente em falar por mais de um minuto sobre o mesmo assunto é plenamente compartilhada por esta turma. Bolsonaro chegou ao poder da mesma forma como a classe média do camarote vive a vida.
Defender os crimes de Sérgio Moro está longe de ser algo difícil para a classe média do camarote. Estas pessoas cometem delitos diariamente. Não pagam direitos trabalhistas, sonegam impostos, pagam outras pessoas para que assumam seus pontos na carteira etc. Descobrir que Moro é um criminoso que forjou um processo contra o cara da arquibancada que ousou pôr pessoas como ele no camarote apenas aumentou a admiração que esta turma tem por ele.
Para que uma pessoa enxergue a gravidade que é um juiz e um advogado de defesa atuam em conluio é necessário que ela tenha algum apego pelo estado democrático de direito e este definitivamente não é o caso da classe média do camarote. A tirania é a base da vida e da infelicidade destas pessoas que, incapazes de refletir, dedicam-se ao trabalho de defender até a morte o sistema que as mantêm aprisionadas. Não à toa, a maior defesa das elites é a transformação do setor público em setor privado, que é tirânico por natureza. “Precisamos de gestão”, repete o cara da classe média do camarote, que não percebe que a sua relação de trabalho é o que causa sua infelicidade.
Em geral, as pessoas da classe média do camarote odeiam quase todos os aspectos da sua vida. Odeiam o trabalho, odeiam o chefe. Odeiam o carro, odeiam o trânsito. Odeiam pagar contas, odeiam tudo. Estão dispostas a tudo para manter o emprego, adoram bajular o chefe. Entram na prestação de um novo carro assim que acabam de pagar o antigo, não cogitam usar transporte público. Não cogitam a ideia de defender que o serviço público funcione, contentam-se em buscar no setor privado a “solução” para tudo e assim a vida se resume a pagar contas. A frustração leva ao desespero, gerando medo e violência. O cidadão com medo e com raiva é facilmente manipulado. A elite do camarote está lá para fazer isto.
As revelações sobre os crimes de Moro dificilmente gerarão algo. No fundo, todo mundo já sabia que Moro havia cometido crimes na Lava Jato. Isto apenas está provado. Mas para a classe média do camarote, isto é o de menos. Quem aplaudiu uma condenação sem provas não terá problemas em aplaudir a absolvição do criminoso no caso em que há provas. Desde que o pessoal da arquibancada fique cada vez mais longe. “Força, Mengão”.

terça-feira, 11 de junho de 2019

A televisão sem som



A existência de televisores sem som em ambientes públicos é para mim um grande mistério. Nunca entendi muito bem a função deles. Outro dia fui numa UBS aqui no centro por um problema besta. Ouvido entupido de cera. Fui uma pessoa criada com todos os privilégios imagináveis e é um choque cair na real. Meu plano de saúde foi para o saco junto com meu emprego e chegou a hora de conhecer o SUS. A classe média em geral se apavora quando perde seus privilégios e não nego que foi um pouco assim comigo. Somos doutrinados a achar que vamos, sei lá, morrer se perdemos os privilégios. Basta falar com algum motorista que fica sem carro para ver o drama que ele faz. A primeira lição de vida que o SUS te dá é que você não é prioridade. As pessoas na vida real têm problemas mais sérios do que um ouvido entupido de cera e você vai ser atendido só quando essas pessoas com problemas de verdade forem atendidas. Não adianta surtar. No dia em que fui tentar desentupir meu ouvido, enquanto eu esperava, aconteceu um acidente perto da região e os feridos foram para lá. O médico que iria me atender foi deslocado para atender as vítimas deste acidente e tive que voltar no dia seguinte. Justo. Enquanto eu esperava, lidei com a televisão sem som. Eu e mais algumas pessoas assistíamos o programa da Ana Maria Braga. Muitas risadas, comidas, cores, mas nada de som. Mesmo assim, ficamos vidrados na tela. Em quase todo local público ela existe. A impressão que tenho é que as pessoas simplesmente precisam de algo para ficar olhando enquanto esperam. Uma distração qualquer. O celular provavelmente impactou muito o mundo da televisão sem som, mas ficou claro para mim naquele dia que nada superava a tal da televisão sem som.
Uma distração enquanto as pessoas vivem. Algo que ocupe nosso cérebro enquanto não pensamos. A Lava Jato sempre soube se apresentar como uma boa distração. Soube muito bem ler a linguagem do entretenimento. Eu demorei muito tempo para assistir a alguma entrevista com Sérgio Moro. Por muito tempo ele existiu só em foto ou em voz. As poucas entrevistas dele aconteciam ou em premiações ou para órgãos estrangeiros. Não conheço nenhuma pessoa que tenha ganho tantos prêmios fajutos num período tão curto de tempo como o ex-juiz. Em 2018, por exemplo, Moro ganhou da Isto É o prêmio de “juiz do ano”. Que porra de competição é essa? No mesmo ano, ele ganhou da empresa de João Doria Jr. o prêmio de “brasileiro do ano”. Duas coisas me chamaram a atenção neste prêmio. A primeira é que o prêmio de “brasileiro do ano” é entregue em Nova York. O segundo é que o vencedor do prêmio no ano anterior foi João Doria Jr. Basicamente João Doria Jr. se elegeu “brasileiro do ano” em 2017. Fora estes prêmios, o que existia de Moro eram as fotos de braços cruzados e a voz. A câmera em seus julgamentos estava sempre apontada para o réu e Moro surgia como quase uma figura divina, uma voz do além. Perfeito do ponto de vista do espetáculo.
Na época assisti a uma entrevista de Moro para a CNN. Moro não dava entrevistas para a mídia brasileira, mas estava todo felizão de apresentar a “Car Wash” nos EUA. Na época, achei a entrevista bizarra. Moro, num inglês sofrível, deu como principal fonte para sua forma de ação o filme “Os Imperdoáveis”. Anderson Cooper, o entrevistador, tratou o entrevistado como uma bizarrice típica de Terceiro Mundo, mas Moro não foi muito capaz de perceber isto. A primeira entrevista de Moro para a grande mídia brasileira aconteceu apenas em abril do ano passado. O então juiz aceitou participar do Roda Viva de despedida de Augusto Nunes, colunista de Veja e da rádio Jovem Pan, um ícone da extrema-direita. O foco de Moro naquela entrevista era o julgamento da prisão a partir da segunda instância, que seria julgado no Supremo naquela semana. O juiz aproveitou todo o momento para demonstrar sua visão um tanto quanto tosca de justiça e para pressionar Rosa Weber, juíza que estava indecisa e cujo voto iria decidir a questão. Justiça significa punição, deixou ele claro, para deleite dos jornalistas puxa-sacos que cumpriam a função de escada para a grande estrela da noite.
Sérgio Moro soube criar um espetáculo moderno. Eu ainda acho que em algum momento vamos descobrir que a Lava-Jato surgiu a partir de uma pesquisa de mercado. O que o público quer neste grande entretenimento? Assim como Moro, a maior parte da população brasileira teve um conceito de certo e errado criado a partir de obras televisivas e cinematográficas ruins. Se Moro vive citando filmes de heróis como base para seus julgamentos, a população brasileira em geral faz isso a partir de novelas, que tem quase sempre o mesmo enredo. Um homem rico, bom e trabalhado está noivo de uma mulher rica e vilã. Um pouco antes de casar, ele conhece uma mulher pobre, boa e trabalhadora e eles se apaixonam, mas são vítimas da mulher rica e vilã, que apronta horrores contra o casal, sempre com um aliado que tem como amante. No final, a vilã é desmascarada e tem como punição a morte ou a pobreza. Já a mulher pobre, boa e trabalhadora ganha como prêmio pela bondade a riqueza. A noção de justiça do brasileiro médio é essa. Não é, sei lá, a vilã indo para um julgamento justo com direito a defesa. Isto não tem graça no entretenimento.
“A fama e a riqueza são como a sede quando se bebe água do mar, quanto mais se bebe mais fome se tem”, disse o pensador alemão Arthur Schopenhauer. Duvido que Moro tenha lido algo deste tipo na vida. Talvez ele se interesse se sair um filme. Também não acho que ele tenha lido nada destes pensadores clássicos alemães, mas Moro inegavelmente entende de dialética. Ele sem dúvida percebeu que a lógica do sistema exigia a existência de um vilão para o surgimento de um herói. E quanto mais o vilão fosse derrubado, mais o herói subiria. A classe média e os privilegiados já tinham um vilão, aquele que odiavam desde sempre. O metalúrgico que virou presidente. O “analfabeto” que colocou pobres nas universidades públicas. O torneiro mecânico que ousou pôr pobre para andar de avião. Para estas pessoas Lula sempre foi “ladrão”. Você já viu onde o Lula mora? Pergunta a pessoa de classe média privilegiada revoltada porque o homem que presidiu o Brasil por oito anos tem um apartamento normal em São Bernardo e visitou um apartamento no Guarujá. Foi fácil se tornar o herói de uma parcela da população que já tinha o vilão.
Moro soube conduzir o espetáculo com apoio midiático. A cada ação circense da PF, sempre uma câmera ligada. Uma informação vazada aqui, outra lá. Pessoas sendo presas preventivamente de forma indevida e torturadas psicologicamente. “O Brasileiro do ano”. Delações sem provas sendo vazadas como verdades absolutas, destruindo reputações e gerando até mesmo suicídios. “Juiz do Ano”. Virou personagem de filme e de série. A prisão sem prova de Lula o transformou no herói que aquela parcela da população precisava. “Ganhar roubado é mais gostoso”, dizem na outra paixão nacional. Bolsonaro ganhou a eleição roubada de Lula e, como prêmio, chamou o herói para um ministério. O “herói” não se choca tanto com os defeitos do “mito”. A defesa da tortura, o machismo, a homofobia, os elogios à ditadura. Nada disso incomoda o “herói”.
A imprensa que serviu de escada para Moro na Lava Jato tentou servir de escada novamente no ministério. Apresentou-o como especialista na área de segurança pública. Curioso, fui procurar qual contribuição de qualquer tipo que o já ex-juiz havia dado na área, seja como ação ou como produção intelectual. Não existia nada. Tudo que a imprensa sabia dizer era que o agora ministro iria levar para o governo as táticas usadas na Lava Jato. Inegavelmente, prisões preventivas absurdas, tortura psicológica e desrespeito à lei são “qualidades” que agradam muito a alguém como Bolsonaro. Como ministro, porém, Moro não pôde mais ser apenas a foto ou a voz divina. Teve que começar a aparecer e a participar de entrevistas minimamente verdadeiras. O resultado foi assustador. O herói da classe média e da elite tosca e medíocre surgiu como alguém que, afinal, é tosco e medíocre. Moro é incapaz de passar mais de um minuto falando sobre qualquer assunto e muito raramente consegue desenvolver uma frase com início, meio e fim. Gagueja e não consegue olhar no olho de quem fez a pergunta. Não consegue citar um livro que leu. Como ministro, mostra-se incapaz de dialogar com a classe política que demonizou. Tudo que conseguiu até agora foi assinar o decreto que flexibilizou a posse de armas, iniciar um estudo para diminuir os impostos sobre o cigarro e lançar um pacote anticrimes de inclinação fascista, que basicamente libera o assassinato de pessoas suspeitas (quase sempre pobres e negras) por forças policiais.
Aparentemente a mídia tradicional vai até o fim com o herói que ajudou a construir. O site The Intercept divulgou uma série de conversas vazadas do “herói” em que fica basicamente claro que ele manipulou todo o processo que gerou seu “heroísmo”. Foi tudo uma farsa. Transformar o “herói” em vilão, no entanto, significará transformar o “vilão” em herói, e isto é tudo que a parcela da população que clama por Moro não quer. As conversas do Intercept mostram as relações mais do que indevidas que Moro tem com membros da imprensa. Os cúmplices do espetáculo. Mesmo a Globo, com sua postura crítica a Bolsonaro e em guerra com a Record, porta-voz oficial do capitão fracassado, segue idealizando o ministro. Evitam entrevista-lo ou perguntar coisas difícoeis. Já perceberam as limitações do “herói”. Hoje passei meia hora assistindo a Glbo News. O assunto era a dificuldade que a classe média carioca está encontrando para manter o ar condicionado. Um assunto leve num dia tenso. Algo que permite desligar o som da TV.
A Lava Jato é uma farsa. As eleições de 2018 foram uma farsa. As pessoas vivem farsas e se identificam com elas. O mal seduz com tolices para depois enganar. É uma frase de Macbeth. Em quase todas as obras de Shakespeare são os vilões que se apegam ao moralismo. Moro é clichê. Basta abrir um livro. Ou ligar o som da TV.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Bolsonaro, o trânsito e a sociedade de patetas malucos




O paulistano médio tem algumas paixões. As padarias com catraca, as academias espelhadas e a selfie no elevador estão entre elas. Mas nenhuma delas supera o carro e todo tipo de infelicidade e reclamações que ele permite. Nada no planeta, por exemplo, é mais chato do que paulistano falando sobre trânsito. As lamentações sobre a demora de duas horas para chegar ao trabalho, quase sempre causada pela “imprudência de algum motoqueiro”, o grande inimigo do motorista paulistano médio na guerra do trânsito. É lá também que o paulistano gosta de mostrar sua “esperteza”. Ver paulistanos falando sobre qual caminho fizeram para fugir do trânsito é um verdadeiro teste para qualquer tipo de paciência. “Ao invés de pegar, sei lá, a Marginal, eu entrei à direita na rua tal, virei à esquerda na avenida outra, segui reto num beco lá e consegui chegar... ufa, se não fosse isso, não sei que horas que eu chegaria”. O colega que seguiu na Marginal demorou mais cinco minutos.
O carro de certa forma simboliza e incentiva tudo que há de pior na nossa sociedade. É um símbolo da prisão em uma vida infeliz, abastecida através de stress, consumismo e status. Em geral, o motorista de carro é individualista, estressado, egoísta, irresponsável e incapaz de fazer uma autocrítica. Isto fica claro quando assistimos ou ouvimos a mídia voltada para o trânsito. Não sei como é em outros lugares, mas as informações da manhã do paulistano se resumem ao trânsito. “Marginal Pinheiros parada para resgate de um motoqueiro”. O foco não é na perda da vida, e sim no fato de que o trânsito está parado. Tem sempre um helicóptero voando e mostrando o trânsito parado do alto. Nas rádios são constantes aqueles barulhos da hélice de helicóptero noticiando a mesma notícia todo dia. Os repórteres sempre falam com pressa, sem que eu saiba muito bem a razão. Os seus ouvintes estão parados e a notícia é sempre a mesma. De certa forma eles incorporam o stress dos ouvintes e tem como função estimulá-lo. Stress vicia e um cidadão estressado é mais facilmente manipulado, especialmente para o consumo e para o ódio.
Para uma parcela significativa da população paulistana, a vida gira em torno do carro. O stress do trânsito no dia da semana se converte em stress procurando vaga de estacionamento no shopping no fim de semana, passando pela fuga das batidas policiais que procuram motoristas bêbados aos sábados à noite. Sim, o paulistano criou um aplicativo em que se compartilham informações sobre onde estão as blitz e fala sobre isto abertamente. O motorista paulistano está sempre certo. Há algum tempo, a mídia do trânsito cunhou o termo “indústria da multa” para falar sobre a ação “covarde e arbitrária” dos governantes que, olha só, buscavam punir os “bravos e valentes” motoristas que praticam infrações no trânsito. O mesmo cidadão “de bem” que reclama que a polícia não faz nada e pede leis mais duras contra todos os crimes enxerga de outra forma a situação quando a infração é cometida por ele. Numa situação bizarra, um motorista em alta velocidade diz que a culpa pela sua infração não é dele, e sim do radar que captou o momento. “Ele estava escondido”, “argumenta” o motorista, com o uso das aspas na palavra argumenta mais do que justificado. O mesmo paulistano que pede cadeia para tudo e para todos quer destruir o sistema que no trânsito pega e pune os infratores. Há na cidade um verdadeiro comércio de transferência de pontos entre motoristas. O mesmo cidadão de “bem” que pede responsabilidade aos crimes não pensa duas vezes antes de pagar alguém que aceite ficar com os pontos da infração.
O motorista paulistano é uma versão moderna do Pateta maluco. Neste episódio, o Pateta simplesmente se transforma ao entrar dentro de um automóvel, deixando de se tornar um dócil cidadão comum para se transformar num fera quando está atrás do volante. Mas na vida moderna a versão maluca do Pateta venceu. Ao ser uma das principais fontes de infelicidade na vida do paulistano médio, é também uma das suas maiores paixões e este cidadão está disposto a passar por cima de tudo para manter-se parado no trânsito e surtando. O primeiro político a perceber isto com maestria foi João Doria Jr. Nas eleições de 2016, Doria tinha como principal promessa de campanha o aumento da velocidade nas Marginais e a desinstalação de radares de velocidade. Seu antecessor, Fernando Haddad, havia reduzido de 90 para 70 km/h a velocidade permitida nestas vias e instalou radares para pegar quem não cumprisse a nova lei. As medidas de Haddad resultaram numa queda no número de acidentes, com redução no número de mortos e impacto positivo no trânsito. Embora a velocidade máxima tenha sido reduzida, a redução no trânsito em razão da queda no número de acidentes elevou a velocidade média da via, isto não segundo a gestão Haddad, mas segundo o órgão fiscalizador do governo do Estado, gerido pelo partido de Doria. Este não quis saber destes dados, disse que sua impressão era outra e, com base neste “argumento” maravilhoso, conquistou os corações dos paulistanos médios, sendo eleito no primeiro turno. Sua primeira ação no governo foi, como prometido, rever as medidas. Como resposta ao aumento no número de acidentes e mortes na via, a gestão Doria apostou na distribuição de panfletos e na colocação de duas ambulâncias no acostamento da via para, segundo palavras do prefeito, “atender as vítimas com maior agilidade e liberar o trânsito o mais rápido possível”.
O carro se sobrepõe à vida no conceito tosco de existência do paulistano médio. Durante as eleições de 2016, era quase impossível convencer motoristas paulistanos de que a redução de velocidade era algo bom com base no argumento da redução do número de mortos. Ninguém estava nem aí para isto. Passei a notar então que todas as campanhas de conscientização sobre o assunto não se baseiam na ideia de empatia pura e simples com o outro, e sim em fazer com que o “cidadão de bem” enxergue que ele pode ser a vítima que hoje ele despreza. Só há efeito se o motorista enxergar a “si” como vítima, enquanto for o “outro” a possibilidade de conscientização é mínima. Durante a mesma eleição, li uma análise que mostrava que um paulistano a velocidade de 90 km/h demoraria aproximadamente 2 minutos a menos para percorrer a Marginal se comparado a um paulistano a 70 km/h. Entre dois minutos e a vida de “outro”, o paulistano optou pelos dois minutos. “Acelera, São Paulo”.
O eleitor de Doria em 2016 votou em Bolsonaro em 2018. Os números dos dois na capital paulista são bem parecidos, embora eu ache que a comparação entre os dois não deve ser tão radical. Bolsonaro consegue ser muito pior do que Doria. Mas em alguns aspectos a gestão Bolsonaro leva ao país métodos que Doria tentou implantar na gestão paulistana e um deles é, sem dúvida, a completa ausência de preocupação com dados e com a opinião de analistas no momento da implantação de políticas públicas. Assim como Doria privilegiou seus achismos frente aos dados que comprovavam a eficácia da redução de velocidades na Marginal, Bolsonaro os ignorou completamente na sua nova empreitada a favor da matança nas estradas. Ignorar o conhecimento, aliás, é uma das marcas desta nova gestão. É assim no pacote anticrime do ministro Moro, nas “ideias” educacionais etc. Contrariando qualquer lógica e bom senso, Bolsonaro quer, entre outras coisas, aumentar o número de pontos na carteira que proíbem um motorista de continuar conduzindo, tirar a obrigatoriedade da cadeirinha de criança no banco de trás e acabar com a necessidade de exame toxicológico para motoristas profissionais. De verdade, basta pensar um pouco, bem pouquinho mesmo. Refiro-me com isto a pessoas que não são apoiadoras do atual governo, seria impossível exigir de quem ainda apoia algo tão difícil quanto o pensamento. Quem se beneficia com este tipo de medidas? Aumentar o número de pontos, os únicos beneficiados são aqueles que cometem muitas infrações e poderão cometer mais, certo? Retirar a obrigatoriedade do exame toxicológico só beneficia quem não passaria neste exame, certo? Mas podemos ficar “tranquilos”, uma vez que o caminhoneiro que não passaria neste exame também poderá portar uma arma.
Não há espaço para empatia na “nova política” de Doria e Bolsonaro. Nenhum de seus eleitores está preocupado com o óbvio aumento no número de acidentes e de mortes que as novas medidas do presidente vão ocasionar. Isto porque a morte e os acidentes impactam o “outro”, enquanto o benefício aparente é individual. “Posso tomar mais multa”, pensa o paulistano médio que, indiscutivelmente, conseguiu expandir sua visão de mundo para o restante do país. A “nova política” representa a ausência de empatia. Toda a sua plataforma é baseada no incentivo ao individualismo, algumas vezes travestido da palavra empreendedorismo, e na rejeição a qualquer coisa que pense no coletivo. O exemplo mais extremo é o do Rio de Janeiro, em que a sociedade aceita com um silêncio aprovador a matança que vem sido organizada pelo governador Wilson Witzel nas regiões mais pobres do estado. São Paulo “acelerou” e deixou alguns mortos no caminho. Agora é o Brasil que “acelera”. Em marcha ré.