segunda-feira, 25 de março de 2019

A insignificância do "eu avisei"



Eu tenho um tio que tem uma bem-sucedida fábrica de vidros. Ele chegou do PR em SP sem absolutamente nada há aproximadamente 45 anos e construiu sua vida a partir dessa fábrica. Há mais ou menos cinco anos, uma das suas filhas, formada na ESPM, foi fazer um estágio na fábrica e tentou implantar algumas mudanças. O meu tio trabalha da mesma forma há 45 anos. Isto quer dizer, por exemplo, que ele controle estoque e faz toda a contabilidade a mão em folhas de papel sulfite. Minha prima tentou mostrar o maravilhoso mundo do excel para ele. Não deu certo. Meu tio ainda faz todos os pagamentos a fornecedores e funcionários em dinheiro. Isto quer dizer que ele vai ao banco todo dia, fala com o seu gerente, pega o dinheiro físico e anda com ele para lá e para cá. Mais ou menos como a Nina naquele episódio de Avenida Brasil em que ela é roubada por um motoqueiro. Minha prima tentou ensiná-lo a utilizar as transferências bancárias. Não deu certo. Após outras tentativas, minha prima e meu tio desencanaram do estágio em menos de três meses. Disse meu tio, “faço as mesmas coisas há 45 anos e veja aonde cheguei”. Não há por que mudar, pensa ele, uma vez que ele é bem-sucedido no negócio.
Jair Bolsonaro é uma pessoa bem-sucedida nos negócios. Ninguém se torna presidente da República sem ser de certa forma bem-sucedido. Para entender a presidência de Bolsonaro, é fundamental vermos a forma como ele alcançou o sucesso.
Bolsonaro jamais produziu nada. E quando eu digo nada, não quero dizer algo importante ou grande, refiro-me mesmo a coisas pequenas ou insignificantes. Bolsonaro nunca produziu um parafuso que seja ou escreveu algum pequeno texto relevante. Sua existência é um enorme vazio. Aposentado de forma compulsório pelo Exército após um fracassado atentado, Bolsonaro ingressou na política e conquistou uma vaga de deputado como representante de uma categoria, a dos militares. A incapacidade de produzir ou criar qualquer coisa de relevante que ele já havia apresentado na vida anterior à política foi levada ao Congresso. Durante os 28 anos de mandato, não produziu e não participou de nada minimamente importante. E olha que muita coisa importante aconteceu enquanto Bolsonaro nada fazia no Congresso. Tivemos o Plano Real (ele votou contra), o Bolsa Família (que ele combateu), o Prouni (também combatido por ele), entre outras mudanças significativas. Bolsonaro encontrou outra forma de alcançar fama e sucesso na vida política, algo que pudesse mantê-lo no Congresso levando a vida de vagabundo que sempre gostou: falar merda. Falando em termos econômicos, havia uma grande demanda não atendida em parcela significativa da população disposta a consumir merda. Bolsonaro preencheu este vácuo. Foram anos aparecendo em programas de TV de merda com o objetivo de falar merda. O esquema era sempre o mesmo: algum assunto “polêmico” e Bolsonaro opinando. O então deputado não é especialista em nenhum assunto. Os programas de TV não queriam alguém que entendesse do assunto, o que queriam era alguém que falasse merda, e ninguém de adequa melhor ao papel de espalhar merda do que Bolsonaro.
De certa forma, Bolsonaro foi o precursor da grande era de distribuição de merda que viria com o desenvolvimento das redes sociais. Não é à toa que ele foi quem melhor conseguiu se adaptar a este novo momento. Na comunicação via Twitter não há espaço para ideias e reflexão, apenas para “lacrações”. E nada lacra mais do que falar merda. E foi assim, não produzindo nada, sem criação intelectual alguma, apenas falando muita merda, que Bolsonaro chegou ao topo. Do mesmo jeito que meu tio não vê sentido em mudar sua forma de trabalhar, uma vez que ela o levou ao sucesso, é impossível pedir agora a Bolsonaro que ele pare de falar merda e efetivamente produza algo real e concreto. Ele alcançou o sucesso sendo vagabundo e falando merda.
Ser improdutivo e falar merda não exigem diálogo ou companheirismo. Sendo assim, Bolsonaro passou os 28 anos no Congresso dialogando basicamente apenas com seus filhos, tão improdutivo e faladores de merda quanto ele. Desta forma, não vai se acostumar agora à ideia de que deve negociar com o Congresso, ceder e escutar. Tudo que o levou ao sucesso foi o inverso. Por que ele iria escutar especialistas ou estudar qualquer assunto se a sua fama veio exatamente do fato de que ele é o cara que fala merda para os especialistas e é incapaz de estudar qualquer coisa?
Com raras exceções, Bolsonaro chamou pessoas exatamente como ele para o ministério. Na Justiça, temos a turma da Lava Jato. Esta turma se tornou bem-sucedida realizando prisões ilegais, utilizando prisões preventivas como forma de tortura psicológica e quebrando todo tipo de lei possível. Não é agora que vão se “submeter” à lei, afinal.  Moro passou anos sendo aplaudido por descumprir a lei.  Destruir instituições estimulando o revanchismo e o populismo penal. Foi assim que esta turma subiu, é assim que ela quer manter o topo. “Derrubem o Supremo”, eles dizem. Onde já se viu impedir que a operação abra uma fundação privada com o dinheiro que foi supostamente roubado da Petrobrás? No ministério do meio ambiente, temos um Bolsonaro com grife. Nunca produziu nada, a não ser um diploma falso de Yale. Na educação, Ricardo Velez, indicado de Olavo de Carvalho, trava a grande luta contra tudo que Bolsonaro não representa e detesta: conhecimento e pensamento.
A primeira coisa para se enfrentar um regime como o que Bolsonaro e Moro tentam impor ao país é ser diferente deles. Estude, reflita e pensa. Produza reflexão e conhecimento. Pare de dizer “eu avisei”. Ninguém se importa com isso, apenas o seu ego. As pessoas que você avisou votaram neste governo que aí está. Ele está sendo exatamente do jeito que elas queriam. Ao invés de avisar, tente dialogar (uso “tente” porque tenho plena noção de que há casos em que é impossível). E não comemore cada vez que um eleitor de Bolsonaro se ferrar. Defenda as causas humanitárias e de defesa das minorias. Combata as opressões. Lute contra o pacote fascista de Moro. Lute contra a visão tosca de geopolítica mundial de Ernesto Araújo. Lute contra a destruição educacional da turma de Olavo. Defenda as instituições democráticas, mesmo que isto signifique defender alguém claramente filho-da-puta como Temer. O que você avisou já não nos interessa mais. O que interessa é a luta. Há uma vida real acontecendo enquanto você comemora o fato, por exemplo, de produtores rurais gaúchos, quase todos eleitores de Bolsonaro no ano passado, terem perdido 48% das suas exportações porque o governo em que eles votaram está arrumando brigas com a China e com os países árabes. Aproveite as brechas que o vendedor de merda dá para uma aproximação com aqueles que compraram a merda no ano passado. E isto não se obtém falando “Eu avisei”.

quarta-feira, 20 de março de 2019

Justus, a falsa grávida e a geração do julgamento




Não sei exatamente em qual temporada do Aprendiz aconteceu esta prova. Eram três mulheres, as três finalistas. Elas tinham ido para Santiago e de repente apareceu o Roberto Justus num helicóptero, usando óculos escuros, acompanhado de uns seguranças. Uma aparição meio divina. Na prova que ele anunciaria a seguir, as três mulheres teriam que arrumar um jeito de voltar de Santiago para São Paulo sem dinheiro. Teriam alguém da produção acompanhando só pra pagar as refeições e a hospedagem. Ganharia quem chegasse  primeiro. Não lembro exatamente o que aconteceu com a mulher que terminou em segundo. O que me recordo é da primeira e da terceira. A terceira colocada foi correndo para a rodoviária dizendo simplesmente que queria voltar para o Brasil e que estava sem dinheiro. Implorou e conseguiu convencer o dono da empresa rodoviária a dar-lhe um lugar num ônibus que estava meio vazio. A primeira colocada foi até o aeroporto, inventou que havia sido assaltada, estava grávida e tinha que voltar pro Brasil para ver um parente doente. Conseguiu rapidamente doações que lhe permitiram comprar a passagem de volta. Enquanto ela já estava no Brasil, a terceira colocada cruzava os Andes, maravilhada com a paisagem e sem saber que estava prestes a ser humilhada em rede nacional pelo julgador supremo do programa, Roberto Justus.
Por algum motivo, enxergo neste momento sinais da transformação que acontecia em minha vida. Fazia faculdade de economia naquela época e praticamente toda sala assistia ao programa. No dia seguinte a esta prova, todos, menos eu, estavam tirando sarro da mulher que foi à rodoviária. Eu disse que teria feito a mesma coisa. Acho mais legal viajar de ônibus e a experiência que a terceira colocada deve ter tido foi mais engrandecedora do que a da primeira colocada. Também disse que eu provavelmente teria ficado mais tempo por lá e que nem sempre o caminho mais rápido para as coisas é o mais legal. Vencer é ter a experiência mais enriquecedora. Isto sem contar no fato de que a primeira colocado havia claramente enganado os outros, mas não há espaço para este tipo de reflexão no “mundo dos espertos”. Meus colegas perguntaram se eu estava fumando maconha.
Realities shows criam uma identificação entre o público e o opressor. Talvez não criam, mas explicitam a forma como este laço existe. Na faculdade, éramos jovens de classe média que se humilhavam em dinâmicas de grupo ridículas assistindo a um programa em que jovens de classe média se humilhavam numa grande dinâmica de grupo filmada para tentar um emprego. A bizarrice era que não nos identificávamos com as pessoas que passavam pela mesma situação que nós, mas sim com aquela que as humilhava e as julgava, no caso Justus. Comentávamos os erros dos participantes com a mesma empáfia do empresário. Assim age a inversão de valores. A reação que meus colegas tinham sobre a mulher que pegou o ônibus para vir de Santiago foi a mesma que Justus apresentou na reunião.
A grande sacada de Realities shows é que de certa forma eles transformam o público em “Deus”. Somos onipresentes, oniscientes e, em alguns, onipotentes. É assim no Big Brother, em que vemos, julgamos e punimos quase como no Velho Testamento. Num Reality como O Aprendiz, falta-nos a onipotência, exercida pelo apresentador. Há uma correlação entre este programa e o desenvolvimento da ideia do empreendedor como o salvador da modernidade,  a figura dotada da máxima admiração. Não é à toa que o cargo mais importante do mundo hoje é ocupado pelo apresentador da versão americana do programa, Donald Trump. Ele é o cara que na TV valorizava o bem-feito, punia o mau-feito e julgava pela população. O “Deus” dos telespectadores. Na época em que eu assistia, Roberto Justus apareceu numa pesquisa como a pessoa mais admirada entre jovens brasileiros.
Tenho a impressão que ninguém sabe ao certo o que Justus faz. Sei que o pai dele foi o empreiteiro que construiu Brasília. Tudo nele me parece meio falso. É uma pessoa que se transformou num produto. Sei que ele ficou famoso namorando mulheres famosas e que tem uma das profissões mais inúteis do planeta, publicitário. A parte mais curiosa dos publicitários é que eles realmente acreditam nas mentiras que contam. Eles realmente não sabem que não servem para nada. Lembro-me de debater um dia com um, sem utilizar estes termos, claro, mas ele me perguntou o que seria do mundo sem os publicitários. Eu disse que seria ou a mesma coisa, ou melhor. Ele disse que eu não tinha entendido nada. Sigo sem entender.
A minha ficha sobre o meu papel no mundo como público deste tipo de porcarias veio na edição seguinte. Lá estava eu fascinado novamente com o super empresário humilhando jovens de terno e gravata sonhando com um emprego. A equipe vencedora teve como prêmio pela vitória na prova uma viagem de navio em que teriam que assistir a um show de Roberto Justus. Poucas coisas no mundo são piores do que Justus cantando. Lá estavam os jovens na beira do palco ouvindo Justus cantar I’ve got you under my skin se esforçando ao extremo para fazer caras de que estavam adorando. Um dos rapazes merecia inclusive um Emmy pela atuação neste episódio. Ele deveria abandonar o papo furado de empreendedorismo e partir pra vida artística. Exatamente no dia seguinte meu chefe me chamou para conversar. Ele havia viajado no final de semana e havia comprado um jet ski. Não há, na minha opinião, nada mais imbecil no mundo do que jet ski na praia. Nada. Talvez golfe, mas no golfe não há risco de contusão de inocentes. Mas acho uma babaquice pegar um terreno gigantesco e colocar pequenos buracos no chão para ricos tentarem colocar uma bolinha como entretenimento. Se eu virasse presidente, meu primeiro ato seria a desapropriação de todos os campos de golpe e a transformação deles em terrenos para moradia popular. Mas não ganharia com esta proposta. Afinal, ganhou o cara que como primeira medida facilitou a posse de armas. Mas voltando ao jet ski, eu passei uns longos 10 minutos ouvindo meu chefe se vangloriar pelo assunto que acho o mais babaca do mundo, jet ski. Quando saí da reunião pensei, bom, eu sou um dos jovens sorrindo ouvindo o Roberto Justus cantar.
Quase duas décadas depois dos realities shows, de certa forma nossas vidas se transformaram em um. Estamos sempre julgando e sendo julgados. Acho que não passo dois ou três dias seguidos sem avaliar alguém. Pode ser com uma nota de 0 a 10 ou com carinhas. Como foi sua experiência? Como foi sua compra? Julgar enche o saco e nos impede de pensar. Respondemos “como foi sua viagem?” sem ter ideia de como é a vida do motorista. Julgar menos e pensar mais é o caminho. Ou deveria ser,  mas de certa forma Justus nos doutrinou. Os jovens metidos a empreendedores da década passada são os adultos de hoje. E eles estão fazendo muita merda. A mulher que simulou a gravidez para enganar os que passavam no aeroporto já era um prenúncio do que viveríamos uma década depois. Não tinha como uma geração formada por admiradores do Roberto Justus dar certo, afinal.

segunda-feira, 11 de março de 2019

Bolsonaro não enganou seus eleitores



Bolsonaro não enganou seus eleitores. Não sei se um bom texto começa com a repetição do seu título, mas sinceramente não consigo pensar num começo melhor. Bolsonaro se apresentou como candidato tendo como “currículo” vinte e oito anos de um mandato como deputado federal completamente insignificante, em que se “destacou” graças a bizarrices espalhadas na mídia sensacionalista. É o político que ia no Superpop ou no CQC falar merda, gerando um ou dois pontos a mais de audiência. Não entende absolutamente nada sobre nenhum assunto, aproveitou seu mandato para ofender o maior número de pessoas possíveis, lutou contra o conhecimento, o respeito e a inclusão. É como presidente aquilo que foi como deputado.
O presidente Bolsonaro não tem nenhuma qualidade. Nenhuma. Tanto pessoal quanto profissional. Profissionalmente, é um ex-militar vagabundo e preguiçoso que saiu do Exército porque planejou um atentado malsucedido. Como pessoa, as principais “qualidades” que seus súditos adoram espalhar são que ele é “bom pai, autêntico e fala o que pensa”. Sobre ser bom pai, criou uns filhos de merda. Todos os seus filhos são brucutus ignorantes e insignificantes. Nenhum presta para nada ou é capaz de produzir algo minimamente relevante. Sobre ser autêntico e falar o que pensa, isto não é uma qualidade se você só pensa bosta. Aliás, se você só pensa bosta, não seja autêntico.
Muita gente pensa bosta. E votou neste imbecil. Este é o problema real. Numa eleição com trocentos candidatos preparados, a maioria da sociedade se identificou com o autêntico que só fala bosta. O ex-ministro da Educação que colocou milhares de jovens na Universidade não foi páreo para o imbecil que acha que o problema da Educação é a “mamadeira de piroca”. A ex-ministra do Meio Ambiente, autoridade mundial no assunto, que enfrentou todo tipo de dificuldade e preconceito, não foi páreo para o babaca que disse que teve uma filha mulher porque deu uma fraquejada. O ex-ministro da fazenda do Plano Real não conseguiu conter o avanço do idiota que acha criança gay deve apanhar dos pais. O ex-governador médico de SP com seu governo fiscalmente respeitável não conseguiu deter a besta que quer impedir que jovens tenham acesso a educação sexual. Tínhamos muitas opções, à esquerda e à direita. As pessoas escolheram a que tinha como “qualidade” falar bosta.
É complicado convencer alguém que se destacou falando e fazendo bosta a de repente parar de falar e fazer bosta. Coloquemo-nos no lugar de Jair Bolsonaro. Um ex-capitão rejeitado que ganhou fãs e notoriedade falando e fazendo bosta. Chegou assim ao topo. Como manter-se lá? Falando e fazendo ainda mais bosta, ora pois.
Quem acha que o eleitor de Bolsonaro está arrependido da escolha que fez vive fechado numa bolha e/ou é muito inocente. Ele está sendo exatamente o que prometeu. Um culto ao preconceito, à ignorância, à violência, ao machismo e à repressão sexual. Cada frase ou gesto seu que incentive estes cinco temas gera verdadeiros orgasmos em seus seguidores. O problema não é apenas Bolsonaro, é sim principalmente a sociedade que o elegeu.
Assim como seus eleitores, Bolsonaro adora acusar os adversários (vistos como inimigos) daquilo que faz. Chama todos de mentirosos enquanto espalha fake news. Faz pose de vítima enquanto chama tudo de vitimismo. Assina a posse com uma caneta Bic para mostrar humildade, enquanto eleva em sei lá quantos porcento os gastos com cartão corporativo. É uma das táticas típicas do fascismo.
Bolsonaro e seus eleitores não gostam de especialistas. Passaram anos sucumbindo às vontades daqueles que entendem. Paulo Freire não entende de educação, dizem eles. Quem entende é o Frota. Marina Silva não entende de meio ambiente. Quem entende é o rapaz do Partido Novo que inventou um diploma falso em Yale. Somos um país de Damares. De pessoas lunáticas e ignorantes querendo impor sua ignorância de forma truculenta. Bolsonaro evita debates. É incapaz de passar mais de um minuto falando sobre um assunto. Já tinha deixado isto claro na eleição. Segue a fórmula que deu certo agora. Seus eleitores também são incapazes de passar mais de um minuto prestando atenção, afinal. A comunicação deles é toda feita por memes.
A sociedade é a culpada. A sociedade que aceitou cegamente a forma como a Lava-Jato atropelou a lei. A sociedade que viu o juiz que prendeu o presidente virtualmente eleito e ganhou como prêmio um ministério. A sociedade que aprova o projeto deste mesmo ministro de legalizar os crimes cometidos por agentes do estado. A sociedade que aprova a facilitação do posse de armas. Numa eleição com tantas opções decentes, quem votou em Bolsonaro está tendo exatamente o que queria. Um imbecil truculento e preconceituoso. Somos uma sociedade truculenta e preconceituosa. 

quarta-feira, 6 de março de 2019

Sobre mentiras e má memória para nomes




Eu confesso que acho criança mentindo uma coisa legal e bonitinha. Quando a mentira é inofensiva, claro. Poucas coisas são tão divertidas do que deixar uma criança mentindo só pra ver onde ela é capaz de chegar. Conheço uma criança que, por exemplo, vai mentindo até chegar um momento em que ela diz “agora não sei mais o que inventar”, simplesmente sorri e sai andando.
Eu tive algumas mentiras engraçadas na minha infância, quase sempre quebrando coisas. Lembro-me que uma vez destruí a cortina do quarto dos meus pais brincando de Tarzan. A minha desculpa nesta situação era sempre que eu estava no meu cantinho quieto quando de repente, “puf, caiu”. A mesma brilhante desculpa usei quando quebrei uma lâmpada usando uma raquete de madeira vagabunda. Nunca dava muito certo, mas torço muito para, se um dia eu tiver um filho, ele tente usar comigo as mesmas mentiras toscas e mal preparadas. Vou me divertir muito.
Talvez por isso que eu esteja longe de ser o que chamo de “ditador da verdade”. Mentiras inofensivas são necessárias no meu dia-a-dia. Nunca direi a verdade se ela for desnecessária e tiver como único intuito a agressão. Pessoas que se dizem extremamente “verdadeiras” costumam ser hipócritas e agressivas. Não tenho muito saco para elas. Costumam ser também pessoas perigosas, uma vez que realmente acreditam no que dizem. Quando eu digo que realmente acreditam quero dizer que elas estão prontas para ofender por qualquer motivo. São as que mais mentem e estão dispostas a tudo para manter uma mentira de pé.. Repetem coisas do tipo “digo mesmo” e acham que as pessoas são obrigadas a ouvi-las quando elas têm “verdades a dizer”. Ninguém é obrigado a te escutar. Em situação alguma. Em nenhuma mesmo. Lembre-se sempre que as pessoas têm todo o direito de não querer saber o que você acha ou pensa. Pense se ela realmente precisa ouvir o que você tem a dizer antes de dizer algo. 
Decore nomes de pessoas. Esta é uma dica importante para a vida. Sempre que você conhecer alguém, preste realmente atenção no ato da apresentação. Somos extremamente seletivos no momento em que fazemos isto. Outro dia descobri uma mentira que contava para mim mesmo e que nem de longe é bonitinha ou inofensiva como as que contava na infância. Eu passei 34 anos da minha vida dizendo para mim mesmo que era ruim com nomes. Não sou, nunca fui.
Toda escrotice social pode ser verificada na relação que nosso cérebro tem com nomes de pessoas. Escolhemos quais nomes vamos decorar a partir de interesses pessoais. Normalmente quando vamos conhecer alguém que julgamos “importante” inclusive já sabemos o nome desta pessoa antes de conhecê-la. O nome surge neste caso como forma de submissão. Minha relação com nomes mudou há duas semanas, quando fui conhecer algumas pessoas para um projeto educacional em que estou começando a trabalhar. Cumprimentei as pessoas e fui conversar com uma delas. Ela estava de mau humor, provavelmente um pouco cansada de jovens de classe média chegando naquela região metidos a donos de todo conhecimento e querendo “salvar o mundo”. Falei sobre meus planos e ela me respondeu que achava curioso que eu tivesse tantos planos sem conhecer a realidade da região e sem saber nada sobre os alunos. Concordei e, na despedida, perguntei novamente o nome dela, pedindo desculpa por ser “ruim com nomes”. Ela respondeu, de forma irônica, que não havia problemas, eles já estavam acostumados com pessoas “ruins de nomes”. Era algo que eu precisava ouvir. Fui lá para ensinar, aprendi uma lição pra vida.
Tenho excelente memória. Sei o nome de todos os campeões brasileiros, da Libertadores e da Copa dos Campeões. Sei os campeões paulistas desde 1959, por algum motivo meu cérebro travou com o ano de 1958. Não sou ruim de nomes. Passei 34 anos achando isto. Uma mentira que servia para disfarçar minha escrotice. Recordando minha vida, sempre fui muito seletivo nesta “escolha”. Na empresa, por exemplo, sabia o nome daquele diretor que havia cumprimentado uma vez na vida, mas não sabia o nome da senhora que vinha todo dia no mesmo horário passar um pano na minha mesa. Nome é visibilidade. Temos que parar de tratar pessoas como seres invisíveis. Não é algo insignificante que pode ser esquecido. Há um significado social para este esquecimento.
O Brasil vive um dos momentos mais bizarros da sua história. Há um claro processo de destruição da verdade. Reinterpretação cafajeste de fatos. Compulsão mentirosa. E não é uma que se assemelhe àquelas que cometemos em nossa infância. Compulsão porque ela não acaba nunca. Marielle Franco foi vítima de mentiras mesmo depois de morta. Jean Wyllys segue sendo vítima de mentiras mesmo depois de ter saído do Brasil. Na semana passada, espalhou-se a notícia de que Lula, quando presidente, teria vetado a distribuição pública de vacinas contra a doença que viria a matar seu neto. Trata-se de uma mentira. A nossa sociedade é incapaz de não mentir mesmo em momentos que envolvem muito sofrimento pessoal.
As pessoas sabem que estão mentindo. Quem espalha este tipo de mentira sabe que está mentindo. Do mesmo jeito que eu sabia que mentia quando dizia que era ruim de nomes. Ao contrário do que é dito, não acho de verdade que há inocência entre as pessoas que espalham notícias falsas. Elas simplesmente não se importam. O atual presidente da República não se importa em espalhar notícias falsas, assim como seus filhos. Seus adoradores sabem que ele está mentindo e se identificam com ele em parte por isso. As pessoas em geral vivem mentiras. Empregos maçantes, casamentos infelizes, competição desmedida, puxa-saquismo, tudo isto fantasiado de fotos felizes em redes sociais. Muito tempo da vida fingindo. Bolsonaro é apenas o assustador símbolo disto. O tipo de monstro que uma sociedade viciada em mentiras cria. Tornamo-nos uma sociedade de falsos profetas da verdade. Não é à toa que Bolsonaro, o mais mentiroso de todos, adora acusar o mundo de “fake News”. O mesmo ocorre com muitas pessoas que são tão doentes quanto ele.
A cura só pode vir com a reflexão. As semanas após uma conversa me fez ver como passei anos mentindo sobre a má memória com nomes. Reflexão. O único jeito de sairmos desta maluquice em que vivemos. Somos todos vítimas e culpados na sociedade que gerou o monstrengo. O simples fato de não ter votado nele e ter compartilhado a #elenão não te torna inocente. Não será fácil sair disto. Mas o caminho é conversar. Prestar atenção no nome das pessoas é um bom começo. Ninguém vai te escutar seriamente se você não estiver disposto a dedicar um espaço do seu cérebro para seu nome.