terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Dilma Rousseff e o triunfo através da resistência

 



Domingo, 17 de abril de 2016. O grande momento chega para o deputado insignificante. Sua aposta no caos finalmente dá resultado. Os 26 anos de mandato inútil e de polêmicas seriam finalmente premiados com um palco em rede nacional. Cercado por seus colegas, o deputado enaltece a tortura e o golpe militar no Congresso Nacional. As TVs transmitem seu voto ao vivo. Festa nas ruas. O deputado é ovacionado por seus colegas, sai quase carregado após o voto. “Perderam em 1964, perderam em 2016”. Quem é este sujeito oculto? Eles? Vocês? Nós, que perdemos. O único deputado que pessoalmente fez algo contra o deputado torturador naquela sessão foi Jean Wyllys. O mesmo Jean que teria que fugir do Brasil dois anos depois por causa das ameaças dos seguidores do já presidente torturador. Bolsonaro se tornou naquele dia o protagonista do Brasil. Onde você estava naquele dia? Este inferno em que vivemos nasceu lá. Se você não percebeu isto, provavelmente estava abraçando o deputado torturador.

A característica que mais me impressionava em Dilma já na época do impeachment era a sua capacidade única de resistir. Dilma era atacada, humilhada, ridicularizada pela grande mídia basicamente 24 horas por dia. Atacar Dilma era basicamente o único requisito para ter acesso aos meios de comunicação. Foi graças a isto que gente como Constantino, Ana Paula do Vôlei, Escosteguy, todos estes malucos ganharam palco. Se o maluco-mor ganhou protagonismo no Congresso, espalhou seus mini-maluquinhos por aí. Mas Dilma estava lá. Resistindo. Foi até o fim. Enfrenou mais de doze horas de interrogatório no Senado. Olhou na cara dos seus acusadores.

A história de vida de Dilma é a da resistência. E se tem uma coisa que a elite brasileira não aceita é gente que resiste. Ela valoriza a traição. Valoriza a delação premiada. Transforma em herói o juiz que tortura e prende sem provas. Dilma é o oposto disto. Dilma não deveria ter sobrevivido às torturas. Sobreviveu. Dilma deveria ter delatado seus companheiros enquanto era torturada. Não delatou. Dilma não deveria ter concorrido à presidência. Não tinha “experiência”. Ela foi por seis anos a ministra mais importante do governo mais relevante da nossa história recente. Mas a mídia a desqualificava. Chamava-a de poste. Concorreu. Não deveria ter vencido. Venceu. Não deveria exigir ser chamada de presidenta. Exigiu. Não deveria ter sido reeleita. Foi. Não deveria ter ido ao estádio na abertura e na final da Copa, seria vaiada. Mas Dilma suportou as vaias. Do mesmo jeito que suportou a tortura. Suportou as humilhações, enfrentou seus algozes de frente, olhando em seus olhos.

Nesta semana, 4 anos e 8 meses depois da fatídica sessão do impeachment, o agora presidente Bolsonaro voltou a debochar de sua tortura. Dois motivos. O primeiro é que Bolsonaro precisa deste tipo de atitude para chamar a atenção. Bolsonaro chegou aonde chegou escolhendo figuras para antagonizar e falando merda. Passou 28 anos no Congresso sendo o tiozão inútil que só fala merda e não ia mudar agora que chegou ao topo. Vai continuar sendo isto. O segundo, é porque ele enxerga em Dilma o seu oposto. Bolsonaro sabe que Dilma possui todas as características que ele não possui. Ele não consegue esquecê-la. Não importa que ele tenha “vencido”. Seu ódio não passa, pois isto é tudo que ele sabe sentir.

Em sua despedida do Congresso uruguaio neste ano, o ex-presidente José Mujica disse: “Triunfar não é ganhar, é ter a capacidade de se levantar e recomeçar após cada derrota”. Dilma triunfa. Triunfou ao suportar a tortura. Triunfou em 2016. Triunfa em 2020 e seguirá triunfando, para desespero de Bolsonaro e seus apoiadores. Quem perdeu  e segue perdendo é Bolsonaro e seus apoiadores. Não há derrota maior do que a perda da capacidade de empatia. São as pessoas que não mostraram empatia pela vítima de tortura em 2016 que hoje não têm empatia pelo sofrimento das pessoas que morrem ou que perdem entes queridos na pandemia. Estas pessoas são sempre as derrotadas. Não importa se são ricas, a cara delas é de derrota. Perceba que mesmo quando acham que vencem estão com ódio no olhar, estão sempre gritando e xingando. Resistir é triunfar e não há exemplo maior de triunfo no Brasil de 2020 do que Dilma Rousseff.


segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Pitacos que ninguém pediu sobre a eleição para prefeitura de SP

 Há 85 anos, mulheres conquistaram direito ao voto no Brasil | PSOL-SC

1) Não acho que Guilherme Boulos tenha chance de ser eleito prefeito. Imaginar que uma cidade que deu mais de 60% dos votos há dois anos para um capitão genocida, torturador e que representa o que há de pior na humanidade vá dar mais de 50% a alguém como Boulos, que representa o oposto de tudo que é o capitão, me parece ilusão. Mas ao mesmo tempo acho justo que as pessoas curtam ilusões. Elas nos ajudam muito em momentos horrorosos como o que vivemos. Independente disto, seria muito muito importante que Boulos tivesse uma quantidade razoável de votos e, quem sabe, fosse ao segundo turno. Isto daria um grande espaço ao assunto habitação no debate público. A falta de habitação e a especulação imobiliária são dois dos maiores problemas que temos na cidade e a grande mídia não conseguiria mais esconder estes assuntos do noticiário com Boulos no segundo turno. Seriam obrigados a dar a ele o espaço que nunca dão para falar sobre este assunto. Além disso, respeitando o enorme legado de Lula, o maior líder popular da história deste país, não podemos nos esquecer que ele é um senhor de 75 anos sobrevivente de um câncer. Lula mostra uma força e uma dignidade gigantescas após viver enormes dramas pessoais com sua prisão injusta e com a perda de familiares próximos. O presidente é um exemplo a ser seguido. No entanto, a esquerda precisa que surjam novos nomes para o futuro e Boulos e Freixo são as duas melhores opções. Um bom desempenho agora significará mais força em eleições futuras (se elas acontecerem);

2) Bruno Covas fez uma boa gestão, principalmente se pensarmos que a cidade ficou um ano e quatro meses completamente parada na piada que foi a gestão de João Doria Jr. Covas foi também o líder que mais se destacou positivamente na pandemia. Mostrou enorme coragem e força ao enfrentar a tragédia pública ao mesmo tempo em que enfrentava um câncer, sempre colocando a vida em primeiro lugar e enfrentando os interesses do empresariado. Isto dito, seus números nas pesquisas são preocupantes. Embora esteja liderando, 16% para quem é o ocupante atual do cargo, conhecido por todo o eleitorado, é um número muito baixo. O eleitorado paulistano é um eterno descontente. Contrariando o que acontece no estado e no país, é rara uma vitória da situação na cidade. Das nove eleições desde a redemocratização, apenas em duas o candidato da situação venceu (Pitta em 1996 e Kassab em 2008). Também pesa contra ele a forma como a Lava Jato passou a focar suas ações no PSDB para tentar conquistar o que restou do eleitorado tucano. Embora todos saibam que eu tenho muitas divergências ideológicas com o atual prefeito, acredito que sua reeleição seria uma boa notícia. A democracia brasileira precisa do ressurgimento de uma centro-direita e de uma direita civilizadas, ela funcionará melhor se um líder deste campo tiver características que permitam classificá-lo como um ser humano, e Covas provou que se encaixa neste grupo. As pessoas dizem que Bolsonaro e a Lava Jato acabaram com a esquerda, mas isto não é verdade. Bolsonaro e a Lava Jato acabaram mesmo foi com a direita civilizada.

3) Eu acho inimaginável um segundo turno na cidade de SP sem um candidato de extrema-direita. Lembremos que a cidade foi fundamental para a ascensão de Sérgio Moro e de Jair Bolsonaro. Os dois grupos fascistas, Lava Jato e bolsonarismo, se separaram e terão candidatos separados na capital paulista. Falemos dos dois separadamente.

4) No campo lavajatista, a candidata será Joice Hasselmann, a meu ver a candidatura com maior potencial de crescimento na cidade. Joice é a personificação da maior parte da classe média paulistana. Ignorante, preconceituosa, agressiva, arrogante, egocêntrica, com enorme facilidade de comunicação e boa conhecedora de redes sociais, Joice é quase uma versão atualizada de João Doria Jr. Totalmente sem escrúpulos e sem ética, já se mostrou capaz de tudo por poder. É uma das precursoras da onda de fake news no Brasil, produzindo-as desde a época em que era jornalista da revista Veja. Sabe ler e entender o eleitorado como ninguém e, assim como Doria fez em 2016, terá uma campanha voltada para a pesquisa de marketing, ou seja, dirá aquilo que o eleitor paulistano quer ouvir. Este eleitor sempre quer “novidade” e não tenho dúvidas de que cairá no papo de Joice. Além disso, Joice é extremamente próxima de Sérgio Moro e da Lava Jato, tendo escrito uma das primeiras biografias enaltecendo o “herói”, já em 2016. É muito possível que a Lava Jato se empenhe em ajudá-la para criar na prefeitura de SP um trampolim para a candidatura presidencial de Moro em 2022. Joice é o espírito do tempo, tem a mediocridade para representar uma geração;

5) No campo bolsonarista, é muito provável que o candidato seja Celso Russomano. O “defensor dos consumidores” da TV tem o ambiente propício para finalmente chegar à prefeitura, mas enfrenta uma verdadeira tradição paulistana. Assim como o pão com mortadela, a padaria com catraca e o shopping center, já podemos classificar como tradição paulistana a desidratação da campanha de Russomano na semana da eleição;

6) O segundo candidato com mais potencial de crescimento é Jilmar Tatto. Deve conquistar uma boa parte dos votos de Boulos, uma vez que muita gente ainda acha que Boulos é o candidato do PT. Foi secretário de transportes nas gestões de Marta Suplicy e Fernando Haddad, participando da criação do bilhete único e das implantação das faixas de ônibus que tanto ajudaram a melhorar o fluxo de transporte na cidade. A eleição de 2018 mostrou que o PT recuperou boa parte dos eleitores na periferia e Tatto tem sim chance de ir para o segundo turno. A maior parte da direita focará os ataques em Boulos e boa parte dos votos que este perder em razão destes ataques irão para Tatto;

7) Em 2018, o Patriota apresentou ao país Cabo Daciolo. Mantendo a linha de apresentar candidaturas absurdas, o partido lança neste ano Arthur Mamãe Falei, o mais aloprado membro do aloprado MBL. Após tentar reposicionar sua marca com um discurso mais “sereno”, o MBL vem se radicalizando novamente e é bem possível que Mamãe Falei faça muita baixaria nesta eleição. Não acho que tenha chance alguma, acredito que o empresariado que tanto financiou o MBL entre de cabeça na candidatura de Joice ou de Russomano.

8) Ex-governador, Márcio França vem apresentando números paupérrimos nas pesquisas e pode ver esta eleição significar o fim de sua ascensão política. Faria mais sentido esperar mais dois anos para tentar o governo. A seu favor conta o fato de ser um dos melhores debatedores da geração.

9) É certo que um dos focos da campanha serão os ataques a Covas. A maior cagada que a esquerda pode fazer neste momento é participar deles. Ninguém deixará de votar em Covas para votar em Boulos ou em Tatto. Todos os votos que Covas perder irão para Joice, Russomano ou França. Em agosto de 2018 focamos os ataques em Alckmin e uma semana antes da eleição lá estávamos nós tentando convencer nossos tios a votarem nele e não em Bolsonaro. Não vamos repetir o erro em 2020. O caminho para a esquerda é propor e aproveitar o tempo para expor os problemas que a elite insiste em esconder. Boulos deve aproveitar todo o tempo possível para falar do horror que é a situação da habitação. E sim, muito provavelmente na primeira semana de novembro tentaremos convencer nossos tios a votarem em Covas e não em Joice.


quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A Lei da Ficha Limpa e o fim da democracia

 


Uma lição que o processo de destruição democrática vivido pelo Brasil deixará a quem estuda o assunto é a fragilidade da estabilidade de regimes democráticos em países que não têm esta tradição. Mais do que isto, a forma como o moralismo é sempre usado por forças imorais para a instalação do autoritarismo. Aqui no Brasil, sem dúvida um falso combate à corrupção foi o mecanismo para a destruição das instituições democráticas. A grande maioria das pessoas, em determinado momento, se preocupou muito mais em apoiar o combate à corrupção do que em defender princípios democráticos, e desta forma o monstro autoritário foi crescendo. Basta um vacilo no processo histórico e começa a tragédia. Ela pode começar pequena e despercebida, mas está lá. O primeiro passo neste processo brasileiro foi a Lei da Ficha Limpa. Foi ela que deu a membros do poder Judiciário o direito de tirar do processo eleitoral candidatos que ainda não são considerados constitucionalmente culpados. Deu a esta camada da elite o direito de decidir em quem o povo pode ou não votar. A maioria da população achou lindo este mecanismo de impedir que “bandidos” pudessem ser eleitos. Era o início do fim.

Na era da aparência, em que o ser e até mesmo o ter perderam espaço para o parecer, as novas ditaduras não necessariamente terão tanques nas ruas. Elas fazem o possível para ter uma aparência democrática, e em um país como o Brasil isto se manifesta através da realização de eleições. Não deixaremos de ir às urnas por nada, pelo simples fato de que a maior parte da população, com pouca educação democrática, acha que votar é o único requisito necessário para se determinar se um país é democrático ou não. Não importa se, por exemplo, o candidato que estiver liderando a eleição for preso e censurado, ganhando em seu lugar um outro que coloca o juiz que manipulou o processo eleitoral como ministro. O importante é ir às urnas.

A Lava Jato é o grande símbolo da nossa decadência. Quem comandou o processo de destruição democrática foi ela, e não Bolsonaro. Este apenas aproveitou o bonde e lhe tomou o protagonismo. A operação de Curitiba prendeu sem provas, manteve pessoas presas preventivamente por tempo indeterminado como instrumento de tortura para a obtenção de delações muitas vezes forjadas, condenou pessoas sem que elas tivessem direito de se defender de todas as acusações, destruiu o preceito de presunção de inocência, criou no imaginário da população a ideia de que o trabalho do juiz é ser inimigo do réu. No Brasil da Lava Jato, inverteu-se a lógica. Se no mundo legal a delação deveria ser o início do processo, cabendo à acusação investigar e obter provas a partir desta delação, no novo Brasil da Lava Jato a delação passou a ser a prova, suficiente não apenas para iniciar o processo e condenar, cabendo à defesa tentar provar a inocência do réu. Quase nunca dava certo. A condenação passou a ser vista como símbolo de justiça e a absolvição como símbolo de impunidade. Muitas vezes, membros da Lava Jato, em suas ações publicitárias, usavam o alto número de condenações como sinal de produtividade da operação. Uma verdadeira máquina de prender pessoas, quase uma linha de produção de fabricação de prisões.

A operação de Curitiba transformou grandes órgãos de imprensa em aliados. Escolheu um grande órgão em cada meio de comunicação e os transformou em cúmplices de seus crimes. A TV Globo era a aliada televisiva, a Revista Isto É no meio impresso e o site O Antagonista no meio virtual. Todos tinham Moro como informado e ajudaram a transformar o combate à corrupção em espetáculo midiático, impedindo qualquer tipo de análise mais crítica da população. E desta forma o direito à defesa e a presunção de inocência foram descartados pelos mesmos jornalistas que na matéria seguinte falavam da “importância do voto”. A sacada de Moro foi que transformar estes meios em cúmplices, além de impedir uma análise crítica dos meios utilizados pela operação, impediria a divulgação de notícias negativas. A TV Globo, por exemplo, até hoje abafa o gigantesco escândalo da gravação de conversas entre Moro e Dallagnol, em que conversas mostram o juiz e a acusação combinando as táticas para condenar um acusado. Estas conversas foram suficientes para acabar com boa parte do apoio internacional que a operação recebia, mas nada mudou aqui dentro. Após sair do governo, inclusive, Moro ganhou uma coluna no site do Antagonista. Moro não é mais apenas a fonte deste órgãos, transformou-os em cúmplices.

Nesta semana tivemos dois exemplos de como a grande mídia segue servindo de porta-voz para os crimes cometidos pela operação, com as perseguições políticas contra Paes, hoje grande obstáculo do programa bolsonarista no Rio de Janeiro, e contra os advogados de Lula, o que incluiu inclusive a obtenção de conversas ilegalmente gravadas pelo então juiz Sérgio Moro contra os escritórios que defendem o ex-presidente. Um país minimamente preocupado com processos democráticos ficaria horrorizado ao saber que um juiz grampeou um escritório de advocacia. Por aqui, ele segue tratado como herói.

O Brasil passou os últimos anos preparando uma barbárie. Sem dúvida, o grande motivo para o nosso fracasso na luta contra o coronavírus é a precariedade das relações de trabalho. Boa parte do nosso estado de proteção social é voltado para proteger apenas o trabalhador formal, ao mesmo tempo em que todo o esforço das políticas públicas tem sido para facilitar a informalização. Os especialistas do mercado, os mesmos que financiaram a barbárie que vivemos, chamaram isto de “produtividade”. Mais da metade do país não tem proteção social alguma e ficou a deriva durante a tragédia. O governo federal fez tudo que pôde para atrasar e barrar o auxílio emergencial, que só conseguiu ir em frente graças ao trabalho da oposição. Em qualquer lugar sério, a pandemia geraria um debate sobre como ampliar o nosso estado de proteção social. Não é o que acontece por aqui.

Punitivismo e individualismo. O Brasil focou os últimos anos em estimular estes dois valores. Os direitos sociais vão se convertendo em serviços a serem fornecidos pelos deus-mercado, o que inclui o trabalho. O antigo trabalhador organizado em sindicatos vai sendo substituído pelo trabalhador-empresa precarizado, sem nenhum tipo de associação com outros trabalhadores, pelo contrário, enxergando-o como seu concorrente. Neste novo mundo, a elite e a mídia incentivam este novo trabalhador-empresa a enxergar os direitos sociais como privilégios e a ter ódio daqueles privilegiados. É desta forma que o serviço público vai sendo destruído. O trabalhador-empresa enxerga o empresário como seu igual e o funcionário público como inimigo. A sociedade individualista enfrentou uma doença que precisava de ação coletiva para ser enfrentada. Não deu certo. Foi cada um por si.

Quem iniciou o nosso processo de destruição democrática não foi Bolsonaro, foi Moro. Aquele simplesmente usa os métodos popularizados por este. Não há saída democrática para o Brasil sem combate ao punitivismo. Se o fim começou com a Lei da Ficha Limpa, o recomeço se dará com o fim deste lei. Mas não esperemos isto desta geração. Ela está mais preocupada com outras coisas. E ficará contente em votar uma vez a cada dois anos em eleições fajutas. 

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Tropa de Elite, CQC e o Brasil da barbárie

 

Algumas obras definem gerações. É assim com Tropa de Elite, aquele que, chego a afirmar, é o mais importante e influente filme de nossa história. É óbvio que há milhares de filmes nacionais melhores do que aquela porcaria, mas nenhum foi tão influente. Nele, o herói é um psicopata deprimido, o Capitão Nascimento, que usa sua farda para espalhar a barbárie em regiões pobres do Rio de Janeiro. Pouco importava que Nascimento fosse o maior criminoso do filme. Sim, ninguém comete tantos crimes no filme quanto ele. Nascimento mata e tortura sem nenhum medo de punição. O público brasileiro lotou os cinemas e as bancas de camelôs, urrando de alegria cada vez que Nascimento espancava um jovem negro em busca da “verdade”, culminando com a cena em que ele enfia um saco plástico na cabeça de um suspeito. A cena tem um realismo chocante, mas ninguém fechou os olhos. O público sentia prazer vendo a tortura. Tudo vale pela “verdade”, inclusive o crime. O maior dos criminosos se tornou o exemplo a ser seguido pelo público médio brasileiro.

O personagem principal do filme, a meu ver, não é o herói criminoso, mas o aspirante Matias. Matias é um de nós, um cidadão esforçado que só quer fazer o bem. Cansado das injustiças da sociedade, é facilmente atraído pelo herói psicopata (eles são sedutores, afinal) até se transformar em um. A cena final, em que Matias coloca uma arma na cabeça de um bandido, não aceitando seu pedido de clemência e estourando seus miolos, completa o processo de desumanização do personagem e do público. Nascimento venceu. O estado criminoso é glorificado. Não é apenas Matias que foi transformado em psicopata por Nascimento, mas também o público. Aquele que aceita que um funcionário do estado pratique crimes é criminoso. Nascimento nos tornou cúmplices da barbárie. Um pouco depois do lançamento do filme, Luciano Huck escreveu um texto em algum jornal em que era colunista (não me lembro se na Folha ou no Estadão, acho que na Folha) em que reclamava da sociedade porque tinham roubado seu relógio. Huck escreveu que tudo o que queria era um Capitão Nascimento que resolvesse seu problema. Naquele dia, Huck, o cidadão normal, deixou claro que não via nada de errado em um membro do estado enfiar um saco na cabeça de uma pessoa para que ela devolvesse o seu relógio. Huck estouraria os miolos do ser humano que roubou o seu relógio.

Nascimento não realiza nenhuma prisão legal em todo o filme. Todas as suas ações são baseadas na truculência, no assassinato e na tortura. Assim nascia o herói, assim nascia o mito. O público de Tropa de Elite, nove anos depois, aplaudiria outro torturador nas telas. Quando Jair Bolsonaro dedicou seu voto ao torturador Carlos Ulstra na trágica sessão de impeachment de Dilma Rousseff, o então deputado sabia que a população já estava desumanizada a ponto de não achar que a tortura seja um crime. Não há erro em torturar bandido e se a mídia passou anos repetindo “o PT é bandido, o PT é bandido, o PT é bandido”, eles merecem ser torturados. O urro por Nascimento em 2007 foi o urro por Bolsonaro em 2016. Bolsonaro, porém, não é Nascimento. Bolsonaro é o miliciano picareta. Aquele que entra na favela depois que Nascimento matou para tomar conta da distribuição de gás e de luz. É o que transforma o trabalho assassino de Nascimento em lucro. O papel de Nascimento na história é de Moro. Era ele quem prendia e deixava preso de forma ilegal até que a delação montada se convertesse em “verdade”. Era ele quem não se precisava se preocupar com a lei. Era ele que combinava a produção de provas com a acusação. Ele se tornou o verdadeiro guia dos Matias da vida real. Não há nada mais perigoso do que o criminoso agente do Estado liberado para cometer crimes.  Nascimento e o miliciano picareta se encontraram em 2018, com Bolsonaro presidente e Moro ministro. A união durou pouco. Assim como na segunda parte do filme, o miliciano logo arrumou um jeito de se livrar do capitão psicopata.

A vida imita a arte. Menos de um ano depois que Tropa de Elite preparou o grande público para a psicopatia, um grupo de jovens de classe média vestindo terno conquistou a TV brasileira com frases vazias, arrogância, agressividade e provocações em vídeos, tudo isto patrocinado por grandes marcas. O caro leitor pode pensar que estou falando do MBL, mas não, estamos falando do CQC. Mas sim, a estética é a mesma. O CQC apresentou para o brasileiro de classe média aquelas que seriam suas grande armas na guerra contra todos aqueles que não concordavam e que passaram a chamar de “bandidos”: o celular e a agressividade. Não importa se a outra pessoa não quisesse dar a entrevista, na era do celular ela é obrigada. A outra pessoa não tem mais o direito de não ser humilhada, ela é obrigada a isto pelo repórter, quase sempre com o argumento de que “eu pago seu salário”. A partir do momento em que uma pessoa paga seu salário, argumentava o programa, ela tem o direito de fazer e falar o que quiser. Não à toa, embora a audiência do programa não fosse exatamente estrondosa, sua repercussão era gigantesca e a publicidade o adorava. Quer mensagem melhor para a elite do que esta? “Eu pago seu salário, então cala a boca”.

 A edição era a alma do negócio e o foco não era o entrevistado, mas sim o entrevistador. O entrevistado, muitas vezes forçado a isto, era convertido em escada para a ascensão do entrevistador, que ganhava muito dinheiro como garoto propaganda. Este entrevistador que lacrava passou a ser o exemplo a ser seguido pela classe média consumidora. Danilo Gentili e Rafinha Bastos se tornaram fenômenos em redes sociais e criaram a estética da “inteligência” dos anos 2010. Se antes a inteligência era fruto do conhecimento adquirido no mundo acadêmico, nos livros ou na experiência de vida, a “nova inteligência” dos anos 2010 era fruto de séries, viagens para a Europa, cerveja artesanal, vinho, investimento em bolsa de valores e reclamações. Muitas reclamações, principalmente contra o politicamente correto. Num país em que temos um milhão de coisas incorretas, o principal alvo da “nova inteligência” era algo que tem o termo “correto”. É o politicamente correto que ainda impedia, por exemplo, uma parcela da população de enxergar o heroísmo de um psicopata com uma metralhadora e fardado matando pobres na favela, por exemplo.

Numa geração com cada vez mais pressa, o tipo de comunicação do CQC foi muito atraente para a juventude das redes sociais. Eles faziam o que o Datena faz, mas sem ser popularesco. Se Moro quis passar uma lei que permitia ao estado fazer “pegadinhas” contra investigados, em que uma pessoa ofereceria propina a um servidor público apenas para saber se ele é honesto, filmando tudo isto, o CQC já fazia isto há muito tempo. Políticos eram convidados para falsas entrevistas, em que eram ridicularizados sem saber o que estava acontecendo. “Eles são nossos funcionários, afinal”. Mais do que ser inteligente, o que importa neste mundo da classe média é parecer inteligente. Não à toa o líder desta “turma da pesada de jovens mudando tudo” é Marcelo Tas. Nenhum nome na história da TV brasileira ganhou tanta fama com pose de intelectual, com falsas provocações e denúncias que tem como principal foco valorizar o jornalista. Em busca de audiência, o CQC foi o programa que possivelmente mais deu espaço ao então deputado Jair Bolsonaro para que ele falasse suas asneiras. A principal arma do programa era ridicularizar os convidados e impedir eles convidados falassem algo útil. Num ambiente deste, ganhou destaque o convidado mais ridículo e que não tinha nada útil para falar.

Como dito, toda a estética da direita fanática de classe média foi trazida pelo CQC. Se hoje temos pessoas ligando aparelhos celulares em aviões para xingar políticos, devemos isto aos jovens uniformizados de Tas. Mais do que isto, a forma como a mídia tradicional passou a cobrir política mudou muito a partir deste programa. Nas entrevistas dos presidenciáveis do JN de 2018, por exemplo, William Bonner falou mais do que todos os candidatos. E mais do que isto, o foco passou a ser totalmente nos defeitos dos candidatos, sem que houvesse nenhum espaço para que eles apresentassem suas qualidades. Marina Silva não pôde falar sobre meio-ambiente, Ciro Gomes não pôde falar sobre economia, Fernando Haddad não pôde falar sobre educação. Num cenário em que ninguém pôde falar sobre suas qualidades, ganhou aquele que não tinha qualidade alguma. Ter qualificação é coisa do politicamente correto, e no mundo em que ele é combatido, vence aquele que não tem qualificação nenhuma.

Kim Kataguiri, líder do MBL, se encaixaria perfeitamente como repórter do CQC. Isto porque a estética do grupo é a mesma do programa. Classe média revoltada falando para classe média revoltada, para alegria da elite pronta para manipular esta classe média. Não à toa, Kataguiri ganhou espaços em todos os tipos de mídia, mesmo sem qualificação alguma. Em uma entrevista, afirmou que havia abandonado a faculdade pois “sabia mais que o professor”. Isto foi um pouco antes de dizer que Marx havia se arrependido do comunismo ao ver a Primeira Guerra Mundial. Marx morreu 30 anos antes da guerra começar. Mas não importa. A inteligência para seu público vem da estética e não do conhecimento. Vídeos curtos e editados, buscando ridicularizar o oponente, com poucas informações e muitos slogans, frases que nem sempre dizem algo, mas que ficam. “Just do it”. “I am loving it”. “Muda Brasil”. “Vem pra rua”. Apenas faça o que? Você está amando o que? Mudar o Brasil em que direção? Ir para a rua fazer o quê? Não importa. Nada importa no mundo dos slogans. Temos até um partido cujo nome é um slogan, o Novo. Marcelo Tas, apresentador do CQC, disse hoje em entrevista que é um “radical do contra. Um polemista, um cara que nasceu errado”. O que isto quer dizer? Absolutamente nada. O CQC é a estética do nada. Digo no presente porque, embora o programa tenha sido encerrado, sua influência ficará por muito tempo. Pelo tempo da barbárie.


quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O guarda-sol

 

“A empresa escravista, fundada na apropriação de seres humanos através da violência mais crua e da coerção permanente, exercida através dos castigos mais atrozes, atua como uma mó desumanizadora e deculturadora de eficácia incomparável. Submetido a essa compreensão, qualquer povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro, para ser ninguém ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente, como um animal de carga” (Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro)

Moisés Santos, 53 anos, funcionário de uma loja do Carrefour em Recife, morreu vítima de um infarto fulminante durante o expediente de trabalho. Enquanto o corpo não pôde ser removido, a gerência da loja teve uma ideia que condiz bem com a forma como lidamos com as tragédias de nossa história: cobriu o corpo com um guarda-sol. A preocupação é manter a loja funcionando, pensou o gerente. A preocupação é manter a economia rodando, pensaram os empresários brasileiros.

Enquanto mais de mil pessoas seguem morrendo por dia em razão da Covid-19, vamos cobrindo os corpos com guarda-sóis. A história do Brasil é uma grande sequência de desumanizações. O que não vemos não nos incomoda. O morto é apenas um transtorno, algo passageiro que deve ser tirado o mais breve possível do caminho daqueles que vivem.

Uma coisa que a tragédia que vivemos explicitou é a completa falta de empatia social que temos. É impossível convencer boa parte das pessoas a qualquer tipo de sacrifício se elas não acham que serão atingidas pessoalmente pela tragédia. Vemos parcela significativamente grande de pessoas jovens e ricas simplesmente desconsiderando que a epidemia existe e tocando a vida como se nada estivesse acontecendo. O fato de que elas não são do grupo de risco já é suficiente para que elas achem que o assunto não lhes toca. E mais do que isto, estas pessoas não se preocupam com o fato de que, embora muito provavelmente não desenvolvam a doença com maior risco, podem transmitir o vírus a pessoas que correm risco. O máximo que conseguem é se preocupar com alguém da família. De resto, basta o guarda-sol.

Num belo editorial feito durante a pandemia, o Jornal Nacional disse que a história cobraria aqueles que hoje estão sendo omissos enquanto vivemos a nossa maior tragédia coletiva em cem anos. Por mais que o editorial tenha sido bonito, ele está errado. Diversos escravagistas, por exemplo, são homenageados pelo Brasil. Os torturadores da ditadura foram restabelecidos pelo presidente genocida. Achar que nossa história é marcada pela justiça e pelo acerto de contas é desconhecimento. Quando houve as manifestações que derrubaram estátuas de escravagistas nos EUA, a primeira preocupação do governo de SP foi colocar a polícia para proteger as estátuas daqui. Em janeiro deste ano, uma ação da polícia de SP resultou na morte de nove jovens negros e pobres na favela de Paraisópolis. Três dias depois, o governador do estado, chefe desta polícia, recebeu o prêmio de brasileiro do ano da revista Isto É. Nossa história é marcada por mortes e pelo guarda-sol. E mais do que isto, pela proteção ao guarda-sol.

No começo da pandemia, o empresário Roberto Justus criticou duramente as medidas de prevenção adotadas pelos governos dos estados. “Não podemos sacrificar a economia por causa de 10, 15 mil vidas”, disse o empresário. Cem mil mortos depois, o empresário anunciou que seu reality show seria adiado em razão da pandemia. Mas disse que estava tranquilo, todas as cotas de publicidade já estavam vendidas. Nenhuma empresa ficou com vergonha de ligar seu nome a um apresentador que acha que 10 ou 15 mil vidas não valem nada.

O grande guarda-sol vai sendo aberto não apenas para esconder os mortos, mas também para esconder os culpados. Com sempre. E toda vez que alguém tenta arrancar o guarda-sol, tudo é feito para desacreditá-lo. Tivemos nas décadas de 2000 e 2010 o único momento em nossa história em que houve alguma força governamental tentando tirar o guarda-sol. Mesmo que a brecha tenha sido bem pequena, já foi suficiente para causar muito incômodo. Mantê-lo de pé é fundamental para manter a engrenagem funcionando. Os defensores do guarda-sol inventaram um mito, colocaram-no no poder e agora estão se armando para defender o guarda-sol.

Do ponto de vista pessoal, nunca tinha sentido tanto que o Brasil tinha fracassado como nação quanto neste período da pandemia. Eu realmente achava que, sem querer romantizar a tragédia, que isto de certa forma criaria algum tipo de sentimento coletivo que nos faria sair da barbárie que vivemos. Eu estava errado. Quanto maior a tragédia, maior o guarda-sol. E continuará assim. Até um dia em que o guarda-sol não der conta. 

Uma nação é aquela em que seus habitantes se cuidam e se preocupam entre si. Cada pessoa é um mundo e cada morte é o fim deste mundo. Perdemos mais de cem mil mundos na tragédia. Perderemos mais muitos outros. Moisés e as vítimas da Covid são vítimas da mesma tragédia. A tragédia de uma sociedade que se esforça para não enxergar. O Carrefour lamentou a morte de seu funcionário e disse que vai “rever os protocolos”. Possivelmente a loja entrará em promoção. Nada acontecerá com o Carrefour. Nada acontecerá com Justus. Nada acontece enquanto tudo acontece. “Moinhos de gastar gente” é o nome do capítulo do livro de Darcy Ribeiro cuja citação dá início ao texto. É a melhor definição do Brasil. O Brasil é uma empresa, um moinho que mói pessoas. Não é uma nação.

 

Momento num café [Manuel Bandeira]

 

Quando o enterro passou

Os homens que se achavam no café

Tiraram o chapéu maquinalmente

Saudavam o morto distraídos

Estavam todos voltados para a vida

Absortos na vida

Confiantes na vida.

 

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado

Olhando o esquife longamente

Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade

Que a vida é traição

E saudava a matéria que passava

Liberta para sempre da alma extinta.


sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Cemitérios, finados, pai e Vitória 2x3 Corinthians

 


Eu sempre achei que uma das coisas mais feias que existe nas cidades grandes são estes cemitérios de pedra. Eles contam muito sobre o que nos tornamos. Não basta mais os esforços para nos diferenciarmos em vida, passamos a buscar a diferenciação na morte. Isto, claro, sempre existiu. Basta ver as pirâmides do Egito, afinal. Mas desde o século XIX, possivelmente, houve uma massificação deste processo. Algumas pessoas constroem verdadeiros mini templos em seus jazigos. Acho brega e prepotente.

Meu pai faleceu no dia 02/11/1998. Todo ano meu pai me levava ao cemitério no feriado de Finados, era um feriado sagrado para ele. O túmulo da família dele fica no cemitério São Paulo, que é um deste cemitério de pedra feios que existem espalhados por aqui.  Na entrada, temos os túmulos das pessoas mais importantes, com seus pequenos templos de gesso feito por artistas talentosos, mas de mau gosto. O túmulo da família do meu fica um pouco depois do centro do cemitério. Você sobre, entra a esquerda num corredor que não sei se tem nome, em dado momento entra à direita, sobre mais um pouco, e chega. Fica ao lado de uma pia, que sempre foi o meu ponto de referência naquele labirinto.

Eu tinha 14 anos quando meu pai morreu de câncer, o que quer dizer que ele esteve doente basicamente em todo período que convivemos neste planeta. Eu era completamente adaptado ao fato de ter um pai doente e achava totalmente normais as idas e vindas do hospital. Não sei se toda pessoa é assim antes de perder alguma pessoa próxima que ama, mas eu achava completamente impossível que meu pai morresse. Mesmo com câncer, esta ideia nunca tinha me passado pela cabeça. Coisas claras indicando que ele estava partindo aconteciam sem que eu me ligasse disso. 02/11/1998 foi uma segunda-feira e na sexta-feira todas as irmãs dele que moravam no interior vieram visitá-lo. No sábado ele foi para o hospital e no domingo um tio me levou para aquela que seria minha última visita a ele. Meu pai ainda não havia sido sedado e nossa última conversa foi sobre o jogo Vitória 2x3 Corinthians pelo Campeonato Brasileiro de 1998. Às vezes eu acho que sou a única pessoa no mundo que lembra que este jogo existiu.

Meu pai era corintiano fanático. Em 1977, por exemplo, ele simplesmente não conseguiu assistir ao terceiro e decisivo jogo da final contra a Ponte Preta. Trancou-se no cinema e se isolou do mundo numa sessão do filme O Inferno na Torre. Ele faz parte daquela geração que chamo de corintianos azarados. Até 1998, o Corinthians era basicamente uma porcaria. Era campeão de vez em nunca. A juventude dele foi vivida nos 23 anos de fila. Foi neste ano que o Corinthians ganhou o segundo título brasileiro, já sem ele vendo. De lá para cá, o Corinthians ganhou tudo. Penso nele cada vez que o Corinthians ganha algo, aliás.

A grande marca deste Vitória 2x3 Corinthians pelo Campeonato Brasileiro de 1998 é que o segundo tempo foi até os 60 minutos. Não lembro por quê, só lembro que foi até os 60 minutos porque esta foi a última coisa que disse a meu pai. Ele acordou, sorriu, perguntou quanto tinha sido o jogo, eu respondi “3x2, e o segundo tempo foi até os 60 minutos” e ele voltou a dormir. Ele já estava respirando por aparelhos, mas isto não foi o suficiente para me tirar da bolha. Eu só percebi que meu pai estava morrendo quando encontrei a minha irmã no mesmo dia. Ela tinha ido viajar com a equipe de basquete da universidade e voltou ao saber o que estava acontecendo. Assim que ela voltou, olhei nos olhos dela e a abracei, e neste abraço minha ficha caiu. Fui com ela ao hospital e bateu o desespero quando soube que meu já estava sedado e não acordaria mais. Um dos motivos deste desespero era ter que conviver com o fato de que minhas últimas palavras a ele não seriam “eu te amo”, mas “o jogo foi até os 60 minutos do segundo tempo”.

Minha relação com a morte foi totalmente moldada por este evento. Se antes eu achava que ninguém do meu mundo iria morrer, a partir daquele momento eu passei a achar que elas iam morrer a qualquer momento. Na semana passada, por exemplo, liguei para minha irmã e ela me respondeu que tinha ido dar uma volta de bicicleta, que me ligava na volta. Eram 18:00 e ela me ligou às 20:00. Eu passei estas duas horas com o telefone em cima da perna. Deixei de morar com a minha mãe há 5 anos e pelo menos uma vez a cada seis meses eu faço uma visita surpresa porque ela não atendeu ao telefone. Uma característica minha, por exemplo, é que muito raramente uma briga comigo dura mais de um dia. Para que eu não peça desculpas, mesmo estando certo, é necessário que o assunto seja muito importante e que eu esteja muito certo. E política é um destes assuntos importantes, para deixar claro. No momento atual, em que somos governados por um genocida lunático cercado de um grupo de fanático, não apenas se pode como se deve brigar por política. É um dever moral. Se estas duas características não estiverem presentes na briga, eu peço desculpas em umas duas horas, mesmo estando certo. Não há nada pior, aliás, do que quando peço desculpas para uma pessoa, mesmo sabendo que eu estava certo, e esta pessoa não as aceita.

Quando eu ia ao cemitério com meu pai no dia de Finados, uma das coisas que me fascinava naquele labirinto de pedras era ver as plaquinhas dos mortos, especialmente quando aparecia alguém que tinha nascido em mil oitocentos e bolinhas. Achava fascinante que pudesse ter havido vida cem anos antes de eu nascer. E começava a achar fascinante que haveria vida cem anos depois de eu nascer. Eu sempre tive noção de que ia morrer, apesar de achar que meu pai nunca morreria. Foi no dia 02/11/1998 que eu passei a ser confrontado com o dia 07/05/2024. Meu pai morreu de câncer de próstata, meu avô morreu de câncer de próstata e, a partir deste dia, o conselho que mais recebi na vida foi: “Não se esqueça que você precisa começar a fazer os exames aos 40 anos”. Achava este conselho uma bobagem quando tinha 14 anos. Agora tenho 36. Quando eu tinha 14, parecia que o dia em que eu teria 40 estava muito longe. Me aproximo dos 40 e agora acho que o dia em que eu tinha 14 está tão perto.

Cada uma daquelas plaquinhas tem uma vida repleta de acasos. Sou do tipo que acha que é ele que rege nossas vidas, antes mesmo de nascermos. Por exemplo, um dos grandes acasos da minha vida aconteceu trinta anos antes de eu nascer, quando meu pai ganhou na loteria. Não era o prêmio de loteria de hoje, claro, mas garantiu uma série de regalias a ele e boa parte dos privilégios da minha vida. Com este dinheiro, meu pai comprou uma casa no Cambuci, para a qual eu, minha mãe e minha irmã nos mudamos nos anos 1990 e que vendemos em 2011, comprando o apartamento em que minha mãe mora. Parece simples, mas demorei muito tempo para perceber o papel da sorte e do privilégio na minha vida. Defendia com unhas e dentes a meritocracia, gostava de pensar que tinha “direito” as coisas que tenho porque trabalhei muito por elas. Bobagem gigantesca. Boa parte delas veio por um golpe de sorte.

Meu pai tinha duas famílias. Não vou entrar no mérito de como isto aconteceu, mas entre estas duas famílias rolou aquela briga quase clichê que acontece quando alguém nesta situação morre. Para quem gosta de brincar com o acaso, como eu, esta briga foi determinada lá em algum ano dos 1950, quando cinco bolinhas determinaram o futuro de um ser que nasceria em 1984. Uns dez anos depois da morte do meu pai, eu percebi que ele tinha sido um filho da puta na história. Lembrem-se que claramente sou uma pessoa que demora muito para perceber as coisas. Descobri isto convivendo com uma pessoa que tinha vivido uma situação inversa à minha. Eu sou fruto da segunda família e esta pessoa era da primeira. Até aquele dia, eu nunca tinha me posto no lugar da família que tinha sido enganada. Foi uma merda de período que durou uns dois anos. Passou numa conversa aleatória. Nunca toquei neste assunto com ninguém, até um dia em que numa viagem de carro com minha irmã resolvi mencionar algo do tipo com a minha irmã. Perguntei, sem usar estes termos, claro, se ela não achava que meu pai tinha sido um filho da puta na história. A resposta da minha irmã foi: “Não vale a pena pensar nisso”. Foi libertador. Nem sempre vale a pena pensar nas coisas, afinal. Se meu pai foi um filho da puta, ele pagou por isto tendo filhos que se odeiam e que entram em guerra por causa de imóveis. Deve ser a pior sensação do mundo.

Na época em que meu pai morreu, eu era viciado em comprar CDs. Era minha paixão, usava todo meu dinheiro nisto. Na semana de 02/11/1998, comprei dois CDs. Uma coletânea dos Ramones e um CD especial que o U2 lançou exatamente naquele dia. Era uma coletânea com as músicas deles dos anos 1980, com numeração especial. Meu pai faleceu na noite de 01 para 02/11 e minha irmã resolveu me levar neste lançamento como primeira tentativa de tocar a vida. Foi uma enorme bobagem. Eu nunca consegui ouvir estes dois CDs direito na vida e passei a relacioná-los diretamente ao evento da morte do meu pai. Em 2018, resolvi me livrar destes CDs. Isto aconteceu assistindo ao programa Gol, o Grande Momento do Futebol. Eu sempre saía aos domingos, gostava de curtir a Paulista aos domingos. Naquele dia choveu e eu estava de ressaca, resolvi ver TV. Bem naquele dia, por algum motivo X, a Bandeirantes resolveu passar os gols daquele jogo. Fazia uns 15 anos que não chorava por aquele assunto, e lá estava o Corinthians x Vitória de 1998 arrancando as lágrimas de um assunto que eu julgava cicatrizado. Naquele momento, estava decidido que ia me livrar dos CDs. Na segunda de manhã, atrasei no trabalho porque passei num sebo do centro. Recebi R$ 5 pelos CDs. Comprei dois pães-de-queijo. De certa forma, eu achava que manter aqueles CDs era uma obrigação, que eu precisava me manter preso àquele momento, que precisava me punir por não ter tido uma última conversa decente com meu pai. Me libertei. Senti que o acaso me libertou. A chuva do domingo, o produtor do Gol, o Grande Momento passando estes gols de um jogo que não significou nada para ninguém bem naquele dia, na minha cabeça tudo aquilo foi um sinal. “Não vale a pena pensar nisso”.

Superar não é esquecer, é aprender a conviver com as lembranças. Nunca vai cicatrizar. Toda vez que o Vitória é rebaixado no Campeonato Brasileiro sinto um enorme alívio. Um ano sem o jogo. Mas por mais que venda os CDs no sebo, o 02/11/1998 estará sempre na minha vida. Como o sentimento triste no dia dos pais. E seguirá sendo assim, para o bem e para o mal. Saber que a pessoa que amamos não era perfeita, mas que isto não é motivo para deixarmos de amá-las. Saber que cada plaquinha do cemitério de pedra ainda vive em alguém e que daqui a cem anos eu viverei em alguém. A vida é um ciclo regido pelo acaso. Um ciclo de aprendizado e de traumas. Vivemos a maior tragédia coletiva da nossa geração, com mais de 100 mil mortos de Covid nos últimos cinco meses e com mil pessoas morrendo por dia. Enquanto há um esforço para naturalizar a tragédia, para seguir a vida como se isto fosse uma “gripezinha”, só consigo pensar no meu pai. Colocar-se no lugar do outro é uma forma de entender a dor. A minha dor é a dor do outro. A dor do outro é a minha. 


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Ozônio no rabo dos outros é refresco


Em um novo capítulo deste conto que mistura surrealismo, tragédia e comédia pastelão que se tornou o Brasil, ganhou espaço nesta semana um novo “tratamento” para a Covid-19: enfiar ozônio no cu. Embora ainda não tenha ganho o apoio oficial do governo e do presidente, os defensores do ozônio no cu já foram recebidos pelo atual eterno provisório ministro da Saúde. Parece ser questão de tempo para que o presidente embarque na campanha pelo ozônio no cu.

Eu não sei vocês, mas às vezes eu fico pensando se é a mesma pessoa que cria estas histórias e que de certa forma fica se divertindo ao ver até onde elas podem ir neste manicômio que virou o Brasil. Tipo, será que um dia um cara não pensou: “vamos inventar que o PT quer criar uma mamadeira no formato de piroca para ver se as pessoas acreditam”, rindo e se animando ao ver que as pessoas acreditaram? Será que este mesmo cara depois não inventou “vamos dizer que querem mudar o sexo das crianças nas escolas para ver se eles são imbecis o suficiente para acreditar” e mais uma vez viu sua história ir para frente? Agora este mesmo cara pode ter decidido “vamos dar um passo além, vamos ver se as pessoas estão dispostas a enfiar ozônio no próprio cu se a gente inventar que, sei lá, cura o coronavirus?” Já consagrada, a ideia ganhará o sucesso final com o apoio do presidente, o Messias da imbecilidade.

A porcentagem de pessoas que se cura da Covid-19 é algo em torno de 95%. A porcentagem de pessoas que se cura da Covid-19 usando cloroquina é de 95%. Já para o ozônio no cu, também deve ser de 95%, isto considerando que não haja algum efeito colateral que reduza esta taxa e que, sei lá, mate a pessoa. Não deve fazer bem, afinal, enfiar ozônio no cu. O fato é que a maioria das pessoas com Covid-19 que enfiarem ozônio no cu se curarão da doença, obviamente não graças ao ozônio no cu, mas apesar dele. Mesmo assim, porém, elas realmente acreditarão que foi este produto que salvou suas vidas. Elas dirão aos conhecidos: “fiquei doente, mas foi só colocar ozônio no cu que melhorei”. A pessoa que ouvir a história correrá aos conhecidos dizendo “conheço um cara que teve Covid-19, enfiou ozônio no cu e melhorou na hora” e assim uma verdadeira corrente de ode ao ozônio no cu tomará conta do manicômio. É provável que em poucas semanas já veremos Osmar Terra com espaço na Globonews e na CNN defendendo o uso do ozônio para cu, para desespero de algum especialista em medicina que verá sua opinião igualada a de um fanático imbecil.

Pode ser ignorância minha, mas eu não sei nem onde vende ozônio, se é fácil comprar e se existe um ozônio específico para cus. Mas se eu tivesse loja de alguma coisa, já estaria estocando o produto para atender esta nova demanda. Não sei se tem empresa que comercializa ozônio para cu na Bolsa de Valores, mas se houver, minha dica é que os investidores corram em busca destes valiosos papéis, especialmente se o presidente embarcar na campanha. Quem fizer isto ganhará mais dinheiro do que no boom dos bitcoins. Ozônio para cu e armas, os dois produtos que mais valorizaram no governo Bolsonaro.

Há umas duas ou três semanas, aconteceu aquela que eu achava que seria a cena mais bizarra deste manicômio que é o Brasil durante a pandemia. Numa quinta-feira ensolarada, lá estava o presidente do país correndo atrás de uma ema que o havia bicado, mostrando uma caixa de remédio que, embora já tenha a ineficácia para o tratamento da Covid mais do que comprovada, ele jura que é a cura para a pandemia. Eu estava errado. A história do ozônio no cu consegue ser ainda mais bizarra do que isto e não duvido nada que em duas ou três semanas veremos o presidente correndo atrás da ema para aplicar um pouco de ozônio no cu dela. Eu tenho estado errado há muito tempo, aliás. Achava que era impossível que o Brasil elegesse um completo imbecil insignificante como presidente, que o país se uniria contra ele caso esta possibilidade existisse. Eu estava errado. Achei também que esta enorme tragédia, sem querer romantizá-la, iria de alguma forma restaurar algum espírito de coletividade em nossa sociedade individualizada, que todos veriam como ações individuais podem trazer consequências negativas, achei que o conhecimento seria valorizado, que todos faríamos uma autocrítica sobre nossos comportamentos nos últimos anos. Eu estava errado. Ao invés disso, estamos reabrindo lojas, escolas e voltando partidas de futebol enquanto mais de mil pessoas morrem por dia. Eu achava que a pandemia seria uma chance de humanizar uma sociedade que se desumanizou pelo ódio da última década, processo este que chegou ao ápice na eleição de 2018, com a vitória de um candidato que possui todos os preconceitos possíveis, que ameaçou guerra contra vizinhos que não nos ameaçam e que prometeu matar ou expulsar do país aqueles que não concordassem com ele. Eu estava errado. Ao invés disso, estamos enfiando ozônio no cu. Talvez já façamos isto deste outubro de 2018. Naquele momento tínhamos duas opções, a civilização e a barbárie, representada dois anos depois pelo ozônio no cu. Venceu o ozônio no cu.





quarta-feira, 1 de julho de 2020

Bonde do Mengão Sem Freio



Os últimos anos têm me mostrado que eu sou a pessoa mais otimista e ingênuo do mundo. A tragédia que vivemos na pandemia é a prova disto. Eu juro que, sem querer romantizar a enorme tragédia, achava que de certa forma sairíamos mais forte como sociedade após viver esta enorme tragédia coletiva. Eu realmente acreditava que esta tragédia criaria uma rede de solidariedade e que entenderíamos que somos a mesma coisa. Que sentiríamos como nossa cada perda humana que ocorresse e que entenderíamos que a vida é mais importante do que o trabalho ou do que qualquer mercadoria. Achei realmente que a sociedade iria debater de forma séria a situação dos trabalhadores precários, rever nosso programa de proteção social e rediscutir o papel do estado no processo de reparação de desigualdades históricas e distribuição de riqueza. Isto claramente não vai ocorrer. O cada um por si vai até piorar depois da pandemia. Além das enormes vidas humanas perdidas, nossa sociedade perdeu qualquer vestígio que restava de humanidade e trucidou qualquer tipo de esperança que eu ainda tinha. O Brasil lida com a pandemia da mesma forma que lidou com todas as suas mazelas em sua história. Chegamos a um ponto em que de certa forma vamos fingir que ela não existe. A tragédia entrou no Brasil através da elite que trouxe a doença da Europa e, enquanto ela estava concentrada nesta classe social, havia o consenso de que era necessário fechar tudo. A partir do momento em que a elite e classe média se salvaram e a doença se espalhou entre a camada mais pobre, acabou o consenso. Os grupos dominantes agora pressionam pela abertura do comércio. Enquanto os pobres literalmente se matarão, pegando transporte público lotado, para garantir o seu sustento, elite e classe média ficarão em casa aproveitando os benefícios do home office. O número de mortos nunca foi tão alto. Recordes a cada dia. Mas a galera cansou de ficar em casa. Salvar vidas não é tão importante quanto curtir uma festa ou uma praia. Formamos uma classe média que, em geral, é totalmente incapaz de fazer qualquer tipo de sacrifício em nome do bem estar social. 
Cometi o mesmo erro em 2018. Passei a eleição inteiro tranquilo, achando impossível que Jair Bolsonaro e seu projeto fascista recebessem mais de 50% dos votos. Qualquer um que for para o segundo turno com ele, pensava este inocente eu, venceria. Formaríamos uma frente ampla contra o fascismo. Isto se ele for para o segundo turno, pensava o inocente eu. Na hora do vamos ver, pensava o inocente eu, a galera vai votar no Alckmin. Quando eu abri os olhos, Bolsonaro quase ganhou no primeiro turno e levou com facilidade no segundo. Abri os olhos não só para isto, mas para o fato da minha vida ser rodeada de Bolsonaros. Os parentes racistas que diziam que bandido bom era bandido morto. Os colegas da faculdade de economia que defendiam a unhas e dentes seus privilégios. Os colegas de trabalho que possuíam asco pelo conhecimento e que passavam o dia fazendo piadas homofóbicas. Bolsonaro já havia ganho antes mesmo de existir. Ele foi a personificação de um Brasil que cansou de fingir que tinha algum tipo de civilidade. Não é à toa que o elogio que alguns eleitores faziam a Bolsonaro é que “ele diz umas verdades”. A verdade se tornou um conceito aberto e, sem dúvida, no mundo destas pessoas, Bolsonaro realmente diz umas verdades. Quem vivia numa mentira era eu. Numa bolha de inocência. E continuei nela em 2020.
São vários os símbolos da era que vivemos. A ignorância, o ódio, o preconceito e, sem dúvida nenhuma, o Flamengo. No ano passado, morreram no clube nove jovens da categoria de base, queimados enquanto dormiam dentro de containers. O clube não foi punido e faz o possível para adiar o pagamento de indenizações às famílias das vítimas, indenizações que não chegam a ser igual ao salário pago ao técnico Jorge Jesus. No mesmo ano desta tragédia, o Flamengo se orgulha daquele que seus torcedores chamam de “melhor ano da história do clube”. Liberta e brasileirão no mesmo fim de semana! Sobre a tragédia, a torcida se acostumou. No meio desta enorme tragédia coletiva que vivemos, a prioridade do Flamengo foi a volta do futebol. Não tenho conhecimento de nenhuma contribuição que o Flamengo tenha dado à sociedade neste período. A prioridade é voltar a jogar bola. O argumento é que eles, o Flamengo, garantiram todo o protocolo de segurança. Foda-se que os outros clubes não tiveram a mesma oportunidade e foda-se que à volta do clube centenas de pessoas morrem diariamente. “Não temos nada a ver com isso”, diz a mensagem implícita do clube. Passou por cima das leis municipais, voltando a treinar antes do permitido, forçou a volta do campeonato mais insignificante do mundo, o carioca, e se aproximou do presidente facínora para obter uma melhor negociação nos direitos televisivos. Pressiona também para a maluquice final, a volta do público aos estádios. Quem pegar pegou. O Flamengo tem como proteger seus atletas. Embora não tenha protegido os nove do ninho.
O futebol nos idiotizou. Isto foi fruto de um trabalho mercadológico que enalteceu a idiotice futebolística. Toda vez que vemos uma matéria de alguém fazendo algo idiota por “amor ao clube” somos direcionados a achar aquilo demais. Lembro das matérias de corintianos vendendo tudo para ir ver um jogo no Japão e a galera pensando “uau, que demais”. Hoje chegamos a um novo momento, em que estes idiotas são completamente manipulados por todo tipo de interesse. O Flamengo formou um verdadeiro exército de imbecis, cuja noção de felicidade é baseada única e exclusivamente nos interesses do clube, mesmo que isto signifique risco à saúde pública e união a um projeto de governo fascista. O Flamengo não é o único time a fazer isto, aliás. O Palmeiras, por exemplo, conta com a anuência de sua torcida num estranho projeto de uma esquisitíssima instituição financeira que também puxa o saco do governo facínora. O problema é que nenhum clube o faz de forma tão desumana e forte como o Flamengo e nenhum tem a força que o Flamengo tem demonstrado. O Brasil se transformou no Bonde do Mengão sem Freio. Um bonde que vai, sem freio, rumo ao abismo. É uma distopia digna dos piores filmes de terror o que virou o Brasil e o papel do futebol neste horror. Enquanto o Flamengo reestreava num jogo sem público e sem transmissão pelo campeonato carioca no Maracanã, quatro pessoas morriam de corona no hospital de campanha ao lado. Mil e duzentas pessoas morreram apenas ontem na pandemia. Sessenta mil morreram no total. Quantas mais vão morrer? Não sabemos. Em agosto, volta o Brasileirão.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Você é pessoa física ou pessoa jurídica?



A principal causa do fracasso brasileiro no combate ao coronavírus é o culto ao individualismo. Num momento em que enfrentamos uma pandemia que exigia trabalho em equipe e preocupação com o outro, fomos, em geral, simplesmente incapazes de realizar este  grande esforço coletivo. Cada um por si e todos se fodendo. Não à toa o único país que foi mais incompetente que o Brasil no combate à pandemia, os EUA, é o único que consegue ser ainda mais radical nesta ode ao individualismo. Como, num país como o Brasil, convencer milhões que seria necessário fazer sacrifícios pelo bem coletivo? Como convencer milhões que foram completamente abandonados pela sociedade e cujo dia a dia é um combate pela sobrevivência a lutar uma luta por aqueles que nunca se importaram com eles? Não rolou. Ou então rolou do jeito que estamos acostumados, de forma tosca.
A grande tragédia brasileira exposta pela pandemia é a informalização do trabalho. Mais da metade dos nossos trabalhadores está jogada no mercado de trabalho sem nenhum tipo de apoio ou proteção social. Sempre foi assim, mas a partir da Reforma Trabalhista passamos, como sociedade, a enxergar nisto uma qualidade. Ao invés de combater a informalidade e trazer as pessoas para a proteção da formalidade, passamos a facilitar a informalização. A isto deu-se o nome de produtividade. O empresariado brasileiro, em boa parte formada por empresários que incentivam a população a furar a quarentena, pois para eles a morte de milhares de pessoas não justifica o fechamento da economia, foi bem sucedido em fazer crer que contrataria mais se pagasse menos tributos trabalhistas. Não contratou. Provavelmente pôs este dinheiro no mercado imobiliário de Miami.
Um dos absurdos com os quais nos acostumamos é com a ideia de que o trabalhador é uma pessoa jurídica. Abandonamos o CPF para nos tornarmos CNPJ. Ao nos convertermos em empresa, desumanizamo-nos. Passamos a nos enxergar como empresa e a ver no outro trabalhador não mais um colega, com lutas e dilemas semelhantes, mas como um concorrente. Não queremos mais nos unir a este outro trabalhador na luta por melhorias de trabalho, queremos ver esta outra “empresa” falida e fora do mercado. A instituição que servia para unir os trabalhadores, o sindicato, passou a ser demonizada. Perdeu sua função de existência. O trabalhador, que antes ficava enfurecido de ter que pagar a contribuição sindical, agora é uma feliz empresa que paga sorrindo um contador. Ao invés de holerite, emitimos uma nota fiscal. Toda esta transformação rompeu os laços que ligavam os trabalhadores e, mais do que isto, eles passaram a se enxergar como uma empresa que negocia em pé de igualdade com o patrão. Se ele passou a ver o antigo colega trabalhador como inimigo na concorrência, o patrão passou a ser visto como o cliente a ser bajulado. Aquele que nos trocará em qualquer situação de discordância e que poderá achar um concorrente disposto a me substituir de um dia para o outro. Tudo isto foi chamado de produtividade.
No mundo econômico em que as empresas foram convertidas em clientes e em que os trabalhadores foram convertidos em pequenas empresas fornecedoras não mais de mão-de-obra, mas de um “serviço”, os grandes aplicativos de entrega se tornaram uma verdadeira vitrine. A partir destes serviços, um grupo de investidores converteu milhares de jovens (ou não tão jovens assim) pobres em fornecedores de serviço, sem nenhum tipo de direito e concorrendo entre si. Recebem cada vez menos e trabalham cada vez mais, o mundo dos sonhos dos defensores desta visão de “produtividade”. Deu certo. O cliente adora uma promoção de entrega grátis. É muito bom receber um sanduíche sem ter que pagar o trabalho do entregador de bicicleta, afinal. Enquanto a classe média fica em casa pedindo sanduíche, esta galera está na rua arriscando suas vidas. O nome disso? “Produtividade”.
A eleição de alguém como Bolsonaro é como uma queda de avião. São vários motivos e vários culpados. E ela é um sintoma de uma grave doença social, a desumanização. Somos completamente incapazes de fazer algo pensando no próximo e isto foi desenhado nos últimos anos. Como pedir ao homem convertido em empresa que se preocupe com algo diferente do que sua taxa de lucro? Empresa quer mais é que seu concorrente se foda. Parte deste processo explica a força de um discurso de sucateamento e destruição dos serviços estatais. Cada serviço estatal significa uma chance a menos de lucro para o homem-empresa. Ontem passou no Senado o projeto de privatização do sistema de saneamento. O homem-empresa não se importa com o fato de que este sistema não será universal. No mundo em que até o homem se transformou em empresa e tem como função gerar lucro, fazer o mesmo com a água é detalhe. É produtividade. O Brasil não aprendeu porra nenhuma com a tragédia.
A chegada da pandemia no Brasil se deu pela elite que trouxe a doença da Europa. Com as mortes concentradas neste extrato social, resolvemos fechar tudo. Três meses depois, a doença parece controlada entre a elite, mas dizimando as comunidades mais pobres. Fechamos quando a doença matava 50 por dia. Estamos reabrindo com a doença matando 1300 por dia. A morte está chegando àqueles que a sociedade se habitou a ver mortos. Àqueles que a sociedade já naturalizou a morte. Eles já não têm água limpa. Continuarão não tendo. Mas desta vez o homem-empresa ganhará mais dinheiro ainda com isto. O homem-empresa está com pressa. A economia não pode quebrar. Definitivamente, somos uma experiência humana que deu muito errado. Normalizamos todos os tipos de absurdo.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

A sociedade de costumes




O Brasil possui uma característica própria de lidar com seus problemas e tragédias, o tornar-se acostumado. Nós não resolvemos quase nada. Acostumamo-nos aos problemas de tal maneira que em determinado momento paramos de enxergá-lo. É o que está acontecendo com a questão da Covid-19. Ficamos acostumados à ideia de que morrem mais de mil pessoas por dia da doença. O que outrora nos comovia, deixou de nos comover. E o fim da comoção tornou desnecessários para uma boa parte das pessoas os sacrifícios da quarentena. Esconder os problemas, apagá-los, é uma forma de evitar os sacrifícios para suas reais resoluções, especialmente para a classe média e para a elite.
Numa sociedade que escolheu ignorar problemas para impedir a solução, aqueles que os apontam são logo marginalizados ou convertidos em “terroristas”. Temos um grave problema de terras. O maior produtor de alimentos do mundo possui gente passando fome. Um grupo surgiu e apontou a existência deste problema, o MST. Logo foi marginalizado. Chamado de radical. Impedir que eles cheguem até as pessoas é uma forma de impedir que o problema seja percebido pela massa preocupa em trabalhar, consumir, pagar contas e dormir. A existência do sistema requer que estas pessoas estejam preocupadas com isto e façam tudo para manter esta roda do trabalhar, consumir, pagar contas e dormir rodando. O mesmo acontece com a questão da gentrificação e da especulação imobiliária. Temos um grave déficit habitacional em SP, preços explodindo de tal forma que uma pessoa de classe média precisa de 30 anos para comprar um apartamento pequeno. O MTST aponta este problema e logo recebe a mesma taxação que o MST. É importante impedir que aqueles que enxergam o problema tenham algum acesso aos meios de informação para continuar no mundo de fantasias em que o problema não existe, condição fundamental para aqueles que se beneficiam deste problema.
O Brasil nada fez por mais de um século para corrigir os efeitos nefastos de sua maior tragédia, a escravidão. Apenas nos anos 2000, governos estaduais e federal adotaram medidas de ações afirmativas que criara cotas em universidades públicas para enfrentar este problema. A classe média e a elite branca logo se escandalizaram, e  o principal argumento que elas apresentaram era que o problema não existia, estava sendo inventado. O Brasil, diziam eles, é uma democracia racial. A classe média e a elite brasileira são verdadeiramente incapazes de realizar qualquer tipo de sacrifício para solucionar qualquer problema e para isto é fundamental sua negação. Somos uma democracia racial justa e feliz, e nela impera a meritocracia, dizem eles. A mesma coisa acontece quando se fala de qualquer medida de distribuição de renda. Classe média e elite surtaram quando surgiu o Bolsa-Família, que salvou milhões de brasileiros de fome nas últimas duas décadas. O argumento era sempre meritocrático, do tipo temos que dar a vara e ensinar a pescar, e não dar o peixe. Argumento típico, aliás, de quem não sabe nem pescar nem o que fazer com o peixe. Argumento de gente que paga alguém para pescar e para cozinhar o peixe. A elite e a classe média brasileira resolveram construir prédios cada vez mais altos, com cada vez mais grades e cercas, com cada vez mais seguranças, normalmente pessoas pobres, exatamente para continuar a não enxergar os problemas. É mais fácil tomar uma taça de vinho e fazer um churrasco na varanda olhando de cima.
A quarentena no Brasil foi um fracasso. Há dois motivos principais para isto. O primeiro foi o boicote da elite empresarial e do presidente da República que a representa. Eles fizeram tudo para causar o caos. Como dito em parágrafo anterior, são pessoas incapazes de realizar qualquer tipo de sacrifício. Quando eles falam sobre o impacto da economia, eles estão falando do próprio bolso. Eles estão se lixando para o resto. A primeira coisa que farão quando isto acabar é ir embora para Miami ou para a Europa. A segunda causa é a precarização do trabalho. Passamos os últimos quatro anos fazendo o possível para destruir o sistema de proteção social ao trabalhador. Quase todo nosso sistema de proteção é voltado ao trabalho formal. É ele que tem aposentadoria, INSS, seguro-desemprego e que pode ficar em casa nesta situação. Nada fizemos, nada, para criar algum tipo de proteção às pessoas que perderam a formalidade. Empurramos milhões para a tragédia dizendo que isto era produtivo. Como cobrar de uma pessoa que precisa trabalhar de dia para jantar à noite que ela fique em casa? O governo federal e a elite fizeram tudo para boicotar o pagamento da renda emergencial. Isto feito, estão desesperadas para parar de pagar. Já reduziram pela metade para os próximos dois meses e, em seguida, como num passe de mágica, o problema mais uma vez deixará de existir. É gostoso pagar pouco para receber o almoço pedido no Ifood, afinal. Quando não tem taxa de entrega, melhor.
Uma das principais causas da tragédia que vivemos é que a elite e classe média conseguiram nos últimos anos empurrar para a sociedade que tudo pode ser feito, menos aumentar impostos. A solução para todos os problemas está apenas nos gastos e não na receita, então vamos cortando tudo. Investimento em saúde, em educação, em moradia. Tudo isto explodindo agora. Tudo isto sem ser falado. Mais do que o cansaço pela quarentena, o que classe média e elite não aguentam mais é fazer sacrifício. Três meses já foi tempo de mais, encheu o saco. Eles querem consumir e explorar. Uma das primeiras coisas que vai abrir em SP serão os shoppings centers. Não há nada mais inútil e perigoso neste momento do que abrir os shopping. Mas foda-se.
Sou uma pessoa branca de classe média e conversar com as pessoas que fizeram parte do meu mundo até 2016 é desesperador. Principalmente porque me enxergo nelas. Eu fui por muito tempo aquilo que critico. O emprego de merda para financiar as bebedeiras nos fins de semana e viagens cada vez mais caras, os olhos fechados. Frequentava lugares em que toda a clientela era branca e em que todos os atendentes eram negros. Dizia que racismo não existia. Trabalhava num ambiente em que basicamente só havia pessoas brancas, apenas o pessoal de limpeza e de segurança era negro. Dizia que racismo não existia. Uma conversa em 2014 abriu meus olhos. Conversava com um amigo parecido comigo num bar, numa mesa com outros amigos. Ele contava, rindo, que um colega iria pagar sua empregada doméstica para que ela votasse em Aécio. Todo mundo riu. Eu não. Não dormi duas noites. O problema passou a existir e minha vida mudou. O que eu seria sem este momento? Isto me assusta.
Todos nós perderemos pessoas próximas nos próximos meses. E tudo começou lá atrás, na eleição do genocida. E quando podíamos impedir a concretização da tragédia, resolvemos abrir os shoppings. Os três meses não parecerão nada quando a pessoa próxima partir. Esta é a única dor que mesmo uma sociedade de merda como a nossa não consegue se acostumar. Podíamos evitar. Mas ficar em casa encheu o saco. E a economia precisa rodar. A Bolsa de Valores está animada com o reaquecimento da economia. É fundamental para esta turma que os problemas sigam sem existir. Está triste? "Faça terapia, vai resolver." 

sexta-feira, 29 de maio de 2020

A falsa simetria




Nada no mundo é pior do que Bolsonaro. Ele se tornou a referência do que é ruim. Toda vez que alguém fala alguma merda ele logo é comparado ao presidente. “Ele é tipo Bolsonaro”. Mas, repito, não há nada pior do que Bolsonaro. Nada. Este tipo de comparação é muito comum entre as pessoas que estão arrependidas por terem votado no capitão ou que optaram pelo voto nulo no segundo turno em 2018. Como uma tentativa de aliviar a mente da culpa que sentem (ou que ao menos deveriam sentir se tivessem vergonha na cara), elas vibram quando alguém do PT fala alguma bobagem comparável às inúmeras ditas por Bolsonaro. Foi assim com Lula na semana passada. Lula disse uma grande bobagem e merece ser criticado por isto. Reconheceu o erro e inegavelmente tem crédito para que as desculpas sejam aceitas. Mas não adianta. Para boa parte dos “arrependidos” ou “nulos”, isto foi suficiente para tentar aliviar a mente. “Viu, eles são a mesma coisa”, eles disseram. Não são.
A seita dos “arrependidos e nulos” gosta de classificar o mundo a partir da palavra seita. Há uma seita lulista e uma seita bolsonarista, segundo eles. Não entrarei no mérito do termo escolhido. Inclusive os aceitarei nesta análise com o objetivo de torná-la mais fácil. Sim, a seita lulista ama Lula. E o principal motivo para isto é a melhora que o seu governo trouxe para a vida dos integrantes desta seita ou para a vida de pessoas próximas. É a senhora que passou a vida lavando a roupa no tanque e conseguiu comprar uma máquina de lavar. O garoto que nos anos 2000 se tornou o primeiro integrante da família a fazer faculdade. É a empregada doméstica que teve seus direitos reconhecidos após décadas de abandono. A família da pequena cidade que teve a luz elétrica chegando em seu município. O pedreiro que, graças ao Bolsa Família, não precisou mais se sujeitar a aceitar qualquer trabalho para não passar fome. As pessoas que puderam ir de avião visitar seus parentes em cidades distantes, não precisando mais ficar três dias dentro de um ônibus. Milhares de pessoas excluídas que tiveram no governo Lula a primeira chance de colocar a cabeça para fora d’água. Que ganharam voz. O sentimento que nutre a seita lulista é a gratidão.
O mesmo não acontece na seita bolsonarista. Bolsonaro sempre foi a figura que berrava contra tudo isto. Bolsonaro deu voz à patroa que ficou puta em ter que pagar FGTS para a empregada. À elite que não gostou de dividir avião com a ralé. O mercado financeiro que não aguenta mais direitos trabalhistas. Toda a linguagem de Bolsonaro era destrutiva. O Bolsa Família era coisa de vagabundo, as cotas deveriam ser abolidas (em um dado momento ele disse que brasileiro tinha que acabar com esta tara por faculdade), os direitos trabalhistas abolidos. Ele nunca propôs construir nada. Repito, toda sua linguagem era voltada para a destruição. Deputado insignificante, ganhou fama em programas de subcelebridades e de “humor”, aqueles em que normalmente pessoas de classe média alta saíam por aí apavorando pessoas pobres (Lembro de um quadro do Pânico em que um cara ia na praia tirar sarro de pessoas que ele julgava feias). Bolsonaro estava sempre bravo e humilhando. Lutava contra o “politicamente correto”, termo criado por pessoas escrotas para justificar a própria escrotice. Encontrou eco em milhões de pessoas frustradas e rancorosas. Pessoas que não tiveram suas vidas materiais pioradas no governo petista, mas que se incomodaram em ver os pobres se aproximando. Bolsonaro deu voz a todos os preconceitos não muito escondidos em nossa sociedade. Racista, homofóbico, machista. “Tudo mimimi”. Desvaloriza a ciência e o conhecimento. Enxerga a própria burrice como qualidade. Exalta a tortura. Lembra da classe média vibrando com Capitão Nascimento colocando uma sacola na cabeça de negro pobre na favela? Ninguém fechou os olhos vendo aquilo na tela grande. A morte sempre foi a principal promessa de Bolsonaro. Desde antes da campanha, aliás. Enquanto Lula organizava as greves que representaram no fim dos anos 1970 o início da mobilização que resultaria no movimento pelas Diretas-Já, Bolsonaro organizava atentados nos quartéis. Diria anos depois que o maior erro da ditadura foi não ter matado pelo menos uns trinta mil. Suas maiores promessas de campanha foram metralhar a oposição, expulsar os descontentes e liberar o porte de armas. Se o sentimento que move a seita lulista é a gratidão, o que move a seita bolsonarista é o rancor. É o ódio. Notem que seus eleitores fiéis seguem furiosos. E continuarão assim. Este ódio é a única coisa que os move, sua razão de existir.
Críticas podem sim ser feitas ao governo de Lula. É fato que foram inúmeros os escândalos de corrupção, frutos principalmente de alianças que tornaram possíveis a governabilidade. Se a corrupção é a maior crítica que podemos fazer ao governo Lula, ela é a menor das críticas que podemos fazer ao atual governo. Bolsonaro seria um monstro mesmo se não fosse corrupto. Numa sociedade com o mínimo de decência, não precisaríamos nem ter que mostrar que Bolsonaro é corrupto. E é. Desde sempre. Quem diz que não sabia que Bolsonaro é corrupto é alienado, burro ou cínico. Ou mais de um destes adjetivos ao mesmo tempo. É bandidinho. Roubava o salário dos próprios funcionários no gabinete. Isto deveria ser irrelevante.
Durante a Lava Jato, criou-se uma narrativa em que a corrupção era a pior coisa do mundo e tudo valia a pena para combatê-la. Assim a sociedade aplaudiu as inúmeras agressões da operação contra o estado democrático de direito, o direito à defesa e a presunção de inocência. Conduções coercitivas transformadas em shows televisivos, prisões preventivas convertidas em instrumentos de tortura para obtenção de delações, nem sempre verdadeiras. O movimento de rancor e ódio encontrou na Lava Jato o seu instrumento de “justiça”. Completou o processo com a eleição do idiota.
Lula nunca chegou perto de representar os riscos de ruptura democrática que Bolsonaro representa. Não só ele, mas ninguém. Sempre lutou dentro das regras. Lutou contra o impeachment de sua sucessora, mas aceitou o resultado, mesmo que o processo tenha sido completamente fajuto. Aceitou sua prisão injusta e lutou contra ela sempre dentro da lei, nos tribunais. Passou mais de um ano preso, foi impedido de ver o enterro de seu irmão e quase não pôde se despedir de seu neto. Saiu e mesmo assim não prega o ódio. Não vai ser um “ainda bem” mal dito que vai estragar isto. E também não é este “ainda bem” que o tornou comparável ao monstro que foi eleito. Quem ajudou a elegê-lo é cúmplice, pois todos os crimes já estavam anunciados. Todos os arrependidos são bem-vindos, desde que honestos na luta.
Em 2019, a Argentina viveu uma situação até que parecida com a do Brasil de 2018. Não digo que muito parecida porque Macri é muito melhor que Bolsonaro. Mesmo assim, Macri aceitou uma posição submissa a Bolsonaro e não recusou seu apoio. Assim como no Brasil, a Argentina teve alguém classificado como “poste” como adversário destas forças reacionárias. Assim como no Brasil, o “poste” era um professor. A Argentina escolheu o professor. Durante a pandemia, morreram por lá 508 pessoas. No Brasil, o país que escolheu o capitão genocida, morreram 26.704 pessoas. E contando. Cada país fez sua escolha. Enquanto o professor uniu o país, apostou na ciência e prioriza salvar vidas, o capitão espalha notícias falsas, minimiza a dor daqueles que perderam entes queridos e estimula as pessoas a arriscarem a vida com o apoio de empresários igualmente imbecis. O que esperar de um cara que teve como momento mais famoso uma homenagem a um torturador em rede nacional? Igualar Bolsonaro a qualquer coisa é normalizá-lo. Ele não é normal. É pior que tudo. É o triunfo do ódio. Parar de normalizá-lo é o primeiro passo para tentarmos sair deste abismo em que caímos.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

ME AJUDA, LUCIANO!



Há uma classe de pessoas denominada isentões. Ser isento é um adjetivo, por si só, definidor, porém eu acho que o termo isentão foi criado para destacar pessoas que evitam escolher um lado mesmo que motivos para o contrário caiam em suas cabeças. É muito complicado manter um pé em cada canoa na descida do rio, você quer os bônus de cada lado e também que se julgar livre para criticar ambos.
Um caso que se tornou chacota, embora eu tenha extremo respeito pela figura na história, é o de Marina Silva. Marina foi declarada de extremo centro, tamanha a isenção em suas falas e dubiedade nas suas ações. Marina é incapaz de responder uma questão diretamente, parece a todo momento navegar nas duas canoas. Uma vez perguntada se era de direita, de esquerda ou de centro, Marina respondeu que estava à frente.

Uma marca de todos os isentões envolvidos na política dos últimos anos é colocar Bolsonaro e Lula como iguais de lados opostos, bem como seus apoiadores. O jornal O Estado de São Paulo publicou em 2018, pouco antes do segundo turno, o editorial mais vexatório possível e que até hoje é revisitado. O texto UMA ESCOLHA MUITO DIFÍCIL queria demonstrar como seria complicada a decisão do eleitorado nacional ao escolher entre Fernando Haddad, professor universitário, advogado, mestre em economia e doutor em filosofia, e o deputado Jair Bolsonaro, militar. Um ano e meio depois do editorial jornalistas do Estadão foram agredidos em um ato pró Bolsonaro em Brasília.
Colocar Bolsonaro e Lula no mesmo balaio é sempre uma tática para dizer não possui lado, de que o seu partido é o Brasil, que não tem político de estimação. Chegamos, então, ao personagem principal do texto. O apresentador Luciano Huck tuitou nessa semana o seguinte:

“Assustador. Duas das principais autoridades do país seguem frias na semana que vms chegar a 20 mil mortos. Sensibilidade zero. Nenhuma palavra de carinho c/ as famílias vítimas da pandemia. Um preocupado c/ o tamanho do Estado. O outro c/ a tubaína. O Brasil está descoordenado”.

Bolsonaro fez uma piada com cloroquina e tubaína, seguida de riso frouxo. Lula quis dar ênfase à importância do Estado para a população. Luciano Huck tratou de colocar esses dois aspectos no mesmo tuite. Assustador mesmo, Luciano.

O apresentador global está há anos construindo a sua imagem pública baseado no assistencialismo televisivo. Ele foi muito bom em construir a imagem de que ajuda as pessoas, quando na verdade compra histórias de pessoas paupérrimas para garantir 30, 40 ou 60 minutos de audiência, dando em troca uma reforma no carro, na casa, ou um prêmio qualquer em dinheiro. Eu costumo dizer que é muito difícil encontrar a caridade pura, já que se você faz o bem mas o conta para uma pessoa sequer estará tentando lucrar algo com aquilo, mesmo que seja apenas afeto ou reconhecimento. O Caldeirão do Huck possui dois objetivos: gerar lucro e criar a imagem perfeita do apresentador caridoso. No caso de Luciano é assim, lucro e caridade cabem sim no mesmo tuite.

A abordagem de Lula sobre a importância do Estado é necessária simplesmente pelo fato de estarmos em uma pandemia, e de que 75% da população depende exclusivamente do SUS. O Sistema Único de Saúde é realmente singular, já que está pronto para atender 210 milhões de habitantes, bem como qualquer estrangeiro em nosso território. Isso é incomparável no mundo.
A afirmação da saúde como primordial para a população brasileira na Constituição de 1988, com a posterior criação do SUS, é uma conquista de importância incalculável para o bem estar social. Estamos em um momento de avanço dos serviços privados sobre os públicos. Seja na saúde, na educação, nos bancos ou na segurança, o sucateamento do Estado é o objetivo dos conglomerados para empurrar goela a baixo a solução particular. Luciano é um liberal convicto, pensa que o Estado exige demais das pessoas através da cobrança de impostos, assim como eu penso. No meu caso, entretanto, acredito que os impostos sobre o consumo devem ser mitigados em prol dos impostos sobre fortunas e grandes heranças. Luciano é contra mais impostos sobre grandes fortunas e sobre heranças, afinal é herdeiro e rico. O pensamento liberal do apresentador é de tornar o Brasil um grande Caldeirão, onde os ricos ficam com as grandes receitas de publicidade enquanto os pobres recebem migalhas, após concluírem alguma gincana pitoresca.

Huck tem realmente uma relação de amor e ódio com o Estado. Em 2003 a sua pousada em Fernando de Noronha foi interditada pelo Ibama. Em 2007 foi acusado de outro crime ambiental pela prefeitura de Angra dos Reis e foi obrigado a paralisar a construção do seu deck, da sua garagem de barcos e da sua praia artificial, porém um ano depois foi beneficiado por um decreto do Sérgio Cabral que alterava a legislação ambiental, decreto que ficou conhecido como “Lei Luciano Huck”. Os advogados de Huck trabalhavam no escritório de Adriana Anselmo, esposa de Cabral. Em 2013 o liberal Huck adquiriu um empréstimo de 17 milhões de reais do BNDES, com juros de 3% ao ano, para comprar um jatinho particular. Está aí o Estado criando problemas e soluções para a vida do pobre milionário.

Até os isentões precisam se posicionar algumas vezes. Marina Silva declarou voto em Haddad na escolha muito difícil de 2018, já Luciano Huck, no mesmo cenário, disse: “Eu não voto no PT, eu nunca votei no PT e eu não vou votar no PT”.

Qual será o plano de saúde da família Huck?