domingo, 14 de abril de 2019

A grave situação da "Venezuela"



A situação está cada vez mais dramática na “Venezuela” e sinto que a mídia e as pessoas de certa forma normalizaram a situação. No relato a seguir, descreveremos alguns dos últimos eventos que servem para mostrar o tamanho do drama vivido pelos “venezuelanos”.
Na semana passada, em “Maracaibo”, segundo maior cidade do país, membros do exército executaram, com oitenta tiro, isto mesmo que você leu, oitenta tiros, o carro de uma família que foi considerada suspeita. Questionados sobre o assunto, o presidente da “Venezuela” disse que não houve crime algum e o ministro da Justiça disse que este tipo de erro, nas palavras dele, “pode acontecer”.
A última eleição na “Venezuela” foi bem esquisita. O líder da oposição, segundo as pesquisas, venceria as eleições com tranquilidade, mas foi afastado da disputa e preso por um processo altamente duvidoso, conduzido pelo juiz que receberia como prêmio o cargo de ministro da Justiça do governo eleito graças a esta prisão, o mesmo ministro que diz que o assassinato de um homem inocente por um ataque de oitenta tiros das forças armadas “pode acontecer”. Ainda nesta eleição, conselheiros da ONU recomendaram à “Venezuela” que o país permitisse a candidatura do líder da oposição, mas a “Venezuela” se recusou a atender a recomendação.
A carreira do presidente da “Venezuela” é marcada por declarações absurdas. Entre outras coisas, ele defende a ditadura ocorrida no país em décadas passadas, assim como elogia os ditadores paraguaios e chilenos. Disse que o maior erro da ditadura “venezuelana” foi ter “matado pouco”. Além disso, tem diversas declarações machistas, racistas e homofóbicas. Se uma criança for homossexual, diz o presidente da “Venezuela”, ela deve apanhar. Sua campanha foi financiada por boa parte do empresariado nacional e contou com o apoio de notícias falsas espalhadas em redes sociais. Disse em um discurso que iria “metralhar a oposição” e que a obrigação das minorias é “se curvar às maiorias”. Não à toa usou como slogan de campanha o mesmo slogan da Alemanha nazista, “Venezuela über alles”.
Após tomar posse, uma das primeiras medidas do presidente da “Venezuela” foi facilitar a posse de armas no país. Quem redigiu este decreto foi o ministro da Justiça, aquele que era juiz e que disse que assassinatos cometidos por forças públicas “podem acontecer”. No dia anterior a este decreto, o ministro recebeu os representantes das empresas “venezuelanas” produtoras de armas, mas não quis comentar publicamente esta reunião. Foi decidido que cada família “venezuelana” pode ter quatro armas em casa. Mais ou menos na mesma época, este ministro propôs um “pacote anticrime”, cuja principal proposta é afastar a possibilidade de punição para qualquer membro de força pública que cometa um “excesso” em operações policiais. Basta, por exemplo, que este agente diga que a pessoa alvejada e morta era “suspeita” para que ele não sofra nenhum processo caso cometa um crime. Isto se aplicaria facilmente ao caso dos oitenta tiros de “Maracaibo”, por exemplo. Ainda também no começo do governo, o ministro “venezuelano”, com o total apoio do presidente, propôs repetir na educação o mesmo plano de ação que prendeu o líder da oposição. O presidente da “Venezuela” coloca a “limpeza” na educação como prioridade da sua gestão. Um dos objetivos do atual ministro da educação, exposto publicamente, é acabar com faculdades de ciências humanas nas regiões mais pobres do país. O presidente já anunciou que quer colocar critérios ideológicos na aprovação de pessoas para mestrado, já disse que vai vistoriar a prova de acesso às faculdades públicas e, com esta operação de “caça às irregularidades” na educação procura buscar algo contra o seu adversário nas eleições do ano passado, um ex-ministro da educação do líder preso. Abrir uma operação para investigar um crime que não se sabe qual é algo típico de regimes autoritários.
A operação comandada pelo ministro da justiça “venezuelano” que resultou na prisão do líder da oposição gerou espaço para o surgimento de outros políticos. O atual governador de “Maracaibo”, local onde aconteceu o crime citado no primeiro parágrafo, é um ex-juiz amigo pessoal deste juiz-ministro. Sua principal promessa de campanha era a contratação de snipers para atirar na “cabecinha” de qualquer pessoa suspeita. O número de mortos em ações policiais na cidade de “Maracaibo” bateu recordes desde de que ele assumiu a província e ele já se disse um grande defensor do projeto de lei do seu ministro amigo.
No ano passado, uma vereadora de oposição da cidade de “Maracaibo” foi assassinada. Ela denunciava a atuação de milícias policiais na cidade, que haviam dominado a prática do crime organizado. O atual presidente, que era deputado por “Maracaibo” já deu declarações de que é favorável a estas milícias e são muitas as suspeitas de que há relacionamento próximo entre ele e milicianos. O principal suspeito do assassinato da vereadora, preso no começo do ano, era vizinho e amigo do presidente. O atual governador de “Maracaibo”, durante sua campanha, participou de um evento em que uma placa em homenagem a esta vereadora era quebrada e em que seu nome era xingado.
Outros absurdos acontecem no governo “venezuelano”. A figura “intelectual” mais influente do governo é um guru bizarro morando na Virgínia, sem formação em nada. Todo ministério se curva a ele, incluindo o ministro da Economia, que o chamou de “líder da nossa revolução”. As relações exteriores da “Venezuela” passam por um momento de tensão, com o governo rompendo com aliados estratégicos. “Fazemos parte”, diz o ministro das Relações Exteriores da “Venezuela”, de uma “guerra contra o comunismo”. Estas situações, porém, não parecem preocupar tanto a mídia “venezuelana”, que foca na tentativa de reforma da previdência e na situação das ações da “PDVSA”, a petrolífera “venezuelana”.
A elite “venezuelana” quer premiar o presidente da “Venezuela” com o prêmio de “venezuelano” do ano. O prêmio, ironicamente, é entregue em Nova York, patrocinado pelas principais empresas “venezuelanas” e teve como últimos vencedores o atual ministro da justiça, aquele, o juiz que prendeu o opositor, liberou as armas e quer liberar a matança policial, e o ex-prefeito de “Caracas”, atual governador da província e que foi eleito basicamente com a mesma proposta que elegeu o governador da província de “Maracaibo”. O local do evento, o Museu de História Natural de NY, já anunciou que quer rever a realização do evento em sua sede e o prefeito nova-iorquino disse que o presidente da “Venezuela” é uma vergonha com sua visão de mundo. Isto é apenas uma mostra de como o Brasil é visto no mundo deste que esta turma horrorosa assumiu o poder. Em outros lugares estamos nos tornando a vergonha mundial. Quem sabe lendo como “Venezuela” a ficha caia para aqueles que ainda permanecem cegos e calados.

terça-feira, 9 de abril de 2019

Os oitenta tiros e a precificação da vida





Setenta e oito é o número de disparos que a polícia alemã praticou durante todo o ano de 2018. Oitenta é o número de disparos que a força militar brasileira praticou contra o carro conduzido pelo segurança e músico Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, no bairro de Guadalupe, no Rio de Janeiro. No carro, estavam Evaldo, a esposa, a afilhada de 13 anos e o filho de 7 anos. A força militar que assassinou o segurança e músico disse que realizou a operação porque ele era um suspeito. Não conseguiram dizer suspeito exatamente de quê. Nenhuma arma foi encontrada no veículo. Evaldo, como quase todas as vítimas de violência policial no Brasil, era negro.
Na semana anterior aos oitenta tiros, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, deu uma entrevista chocante ao jornal O Globo, em que afirmava que a utilização de snipers para o “abate”, sim, este é o temo, “abate”, de suspeitos já estava sendo realizada no estado do RJ, apenas, segundo suas palavras, “não estava sendo divulgada”. Sem querer entrar no mérito ou no significado psicológico da divulgação de algo que “não está sendo divulgado”, o governador do terceiro maior estado do país basicamente anunciou e se gabou da prática de um crime. Na mesma entrevista, Witzel afirmou, com um sorriso de canto nos lábios, que não se importava com o número recorde de mortes em operações envolvendo policiais ou outros agentes de força pública entre os meses de janeiro e de fevereiro deste ano. Matar era a principal promessa de campanha de Witzel. Contratar snipers para “mirar na cabecinha” era o seu lema. A repercussão da entrevista do governador foi nula. Após o caso, desta semana,  o falante Witzel disse que não tinha nada a declarar sobre o caso dos oitenta tiros que mataram Evaldo.
Na mesma semana, preocupado com o avanço de Witzel entre o eleitorado de extrema-direita nacional, foi a vez de João Doria utilizar a matança como instrumento político. Uma operação policial na cidade de Guararema resultou na morte de dez bandidos. O objetivo aqui não é discutir se os mortos neste caso estavam fazendo algo errado ou não. A questão, que ninguém fez, é como bandidos tão fortemente armados (segundo o governo do estado) foram tão facilmente trucidados na operação. Fora isso, a forma como a polícia agiu mostra que se sabia previamente que o crime ocorreria, havendo outras formas de impedir sua ocorrência sem o derramamento de sangue. Mas sangue dá voto. Doria precisava mostrar que sua polícia é “efetiva” e a “efetividade” para o público do programa do Datena se dá com bandidos mortos. A audiência seria menor numa reportagem do tipo “polícia impede assalto em Guararema”. Possivelmente a reportagem não teria nem dois minutos. Polícia matando, isso sim dá ibope. Doria é publicitário e sua especialidade é entregar o que o consumidor quer. Já havia percebido isto na eleição, em que repetia que na sua gestão a polícia iria atirar para matar. No mesmo dia da ação dos oitenta tiros no Rio, Doria condecorou os policiais que atuaram no caso de Guararema. “A nossa polícia manda para o cemitério”, disse o governador no evento.
Tanto Witzel quanto Doria agem fora da lei ao incentivar que agentes públicos usem instrumentos letais sem que seja a última opção. Isto é aparentemente um “detalhe”, uma vez que os dois divulgam seus crimes abertamente e contam com o silêncio conivente da opinião pública. Mas é um “detalhe” que pode incomodar. Pensando nisso, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, lançou há pouco mais de um mês seu pacote anticrime que, entre outras coisas, legaliza a ação de agentes públicos nos moldes já praticados por Witzel e Doria e, mais do que isto, afasta qualquer risco de punição a este agente público caso ele cometa um erro. Basta que ele diga que estava sob forte emoção ou que se tratava de um suspeito. A partir do projeto de Moro, por exemplo, os militares que assassinaram Evaldo não correriam nenhum risco de processo, uma vez que alegaram que o pai no carro com sua esposa e duas crianças era um suspeito.
O Brasil é um país racista. Carregamos na nossa pele, todos nós, uma herança sangrenta e vergonhosa da escravidão. Os militares assassinos acharam que Evaldo era suspeito apenas porque ele era negro. O mesmo vem acontecendo com boa parte dos suspeitos mortos pela polícia de Witzel. Negros são vítimas de quase todo abuso cometido por policiais. Nossa elite e nossa mídia são praticamente toda formadas por brancos. Eles não se importam com Evaldo. O segredo do sucesso social para eles está na economicidade da vida. Preocupe-se com seu emprego e com o pagamento das suas contas, vendem eles. Foda-se o resto. Toda análise é feita com base no que pensa o mercado financeiro, “os investidores”. Às vezes eles estão felizes, às vezes estão tristes. De certa forma, este é o governo do mercado financeiro. É simbólico que o novo ministro da Educação, com experiência zero na área, venha da área financeira. A visão de mundo desta turma está em precificar. Eles precificam tudo. A vida de pessoas como Evaldo, no mundo guiado por esta gente, tem um preço muito baixo. Os assassinatos cometidos pelas polícias de Doria e Witzel não derrubam ações. 
Doria, Witzel e Moro não estão juntos apenas nesta empreitada. Segundo levantamento, atualmente quarenta por cento dos presos no Brasil ainda aguardam julgamento final, ou seja, estão presos ilegalmente, uma vez que a Constituição deixa claro que uma pessoa só é culpada após este julgamento em última instância. Moro lidera a pressão sobre o STF para que a prisão em segunda instância seja definitivamente estabelecida. Doria e Witzel têm planos de privatizações de prisões, em que o valor pago às empresas gestoras das cadeias seria calculado a partir do número de presos. Mais prisões, mais dinheiro para o investidor, sendo a presunção de inocência um chato entrave para tão lucrativo investimento. Está precificado. A mesma coisa ocorreu na facilitação do porte de armas liderada por Moro. Não foi por acaso que ele recebeu os lobistas da Taurus no dia anterior do decreto. Sacou?
Enquanto Doria, Witzel e Moro exercitam a matança, a preocupação dos precificadores está na Reforma da Previdência. “É ela que vai gerar empregos”, dizem os precificadores para convencer a população. É o mesmo argumento usado na Reforma Trabalhista. Os telespectadores precificados consomem esta ideia. A grande característica deste mundo em que pessoas são mercadorias precificadas é que, como mercadorias, perdemos a característica humana da empatia. Mais do que isto, tornamo-nos animais violentos, incapazes de refletir sobre crimes cometidos pelo Estado e sobre a nossa culpa e nosso papel nestes atos violentos. Não é à toa que nossa sociedade sucumbiu a um projeto de governo que tem como símbolo a arma. Não é à toa que nossa opinião pública assiste bovinamente às ações lideradas por Doria, Moro, Witzel e Bolsonaro.
A elite precificadora fará seu evento anual em Nova York em algumas semanas. Todos os precificadores estarão lá. Será entregue o prêmio de brasileiro do ano numa cerimônia deste evento. O vencedor deste ano será Jair Bolsonaro, chefe do ministro que lançou o pacote que libera a matança oficial. O ministro, aliás, foi o vencedor do ano passado. No ano retrasado, o vencedor foi João Doria Jr. É possível, neste ritmo, que o vencedor do ano que vem seja Witzel. O Brasil da extrema-direita já está precificado.


P.S.: Ver imagens da família destruída pela ação da força pública no Rio me parte o coração. Um crime cometido por agentes públicos é um crime cometido por toda a sociedade, que aceita passivamente esta situação e, mais do que isto colocou no poder pessoas que se mostram compromissadas com a ideia de converter o Brasil num estado assassino.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

A Donnelley e o papel das editoras nas falências no mercado de impressão



A RR Donnelley, uma das maiores gráficas do país, anunciou sua falência no último domingo, pegando de surpresa funcionários, clientes, fornecedores e até mesmo o governo, pois se trata da gráfica que realiza a impressão do ENEM. A Donnelley não seguiu o caminho “normal” de empresas em dificuldade financeira, que é entrar com pedido de recuperação judicial antes de dar o passo definitivo. A RR Donnelley é uma multinacional de matriz americana, com fábricas espalhadas pelo mundo e não há dúvidas de que a matriz possui força financeira para arcar com os compromissos da empresa daqui. Por que então se resolveu fechar a empresa do nada, deixando funcionários sem receber salários e direitos trabalhistas, fornecedores sem pagamento, clientes sem seus produtos e o país com risco sério de não ter a prova do ENEM impressa a tempo? Por um motivo simples, eles não estão nem aí para nada disso.
Em geral, o empresariado é formado por pessoas extremamente individualistas e totalmente incapazes de enxergar que eles fazem parte de um todo, que chamamos de mercado, que precisa da existência de diferentes atores  para funcionar de forma sustentável. Trabalhei por mais de uma década em editoras e posso afirmar sem medo que não há responsabilidade maior na quebradeira de toda a cadeia do mercado impresso do que as das editoras.
Do ponto de vista do fornecimento, as editoras ajudaram as grandes redes, especialmente Saraiva e Cultura, a destruir as pequenas livrarias que eram fundamentais para o negócio. Fizeram isto dando descontos especiais a estas redes, com o argumento de que eram os principais clientes, e dando prazos de pagamentos a perder de vista. As Lojas Americanas, uma das maiores clientes do mercado editorial, por exemplo, trabalhava com o surreal prazo de 210 dias para pagamento e sempre atrasava, não recebendo nenhuma retaliação das editoras.  Pois bem, agora temos Saraiva e Cultura quebrando, as Lojas Americanas não pagando e as editoras pequenas quase inexistindo, fruto da política das editoras de ajudar as grandes redes a destruí-las. A visão de curto prazo e a despreocupação com a sustentabilidade do mercado por parte das editoras há seis ou sete anos criaram um cenário em que hoje as editoras estão ficando sem ter para quem vender.
Do ponto de vista do fornecimento, as editoras ajudaram a Suzano, maior fornecedora de papel do país, a basicamente destruir o mercado de fornecimento de papel por pequenas distribuidoras. Eram elas que garantiam a sustentabilidade do mercado principalmente através da importação, que criava uma concorrência para o monopólio de produção da Suzano. Há mais ou menos seis ou sete anos, a Suzano decidiu que era hora de agir contra estas pequenas distribuidoras. Passou a praticar algo semelhante a um dumping na venda de papel da própria distribuidora e começou a importar papel para revender a baixo custo. Era muito claro que este processo tinha como objetivo controlar o mercado e que num futuro não tão distante, com o monopólio reestabelecido, os preços iriam para a estratosfera e as editoras estariam nas mãos da empresa. Pois as editoras e seus gestores com visão de curto prazo entraram no jogo. Entupiram a Suzano de pedidos e quebraram as distribuidoras, não tendo hoje para onde correr no mercado nacional.
Na história das quebradeiras das gráficas, nenhuma tem mais destaque do que a da Prol, que creio que tenha sido a “pioneira” do quebra-quebra entre grandes empresas do setor. A Prol era uma das maiores gráficas do Brasil, gerida por seu fundador, que resolveu transmitir a gestão a seu filho para tentar curtir a vida. O filho fez aquilo que quase todo jovem rico formado em MBAs faz quando assume uma empresa, quebrou-a. O pai tentou reassumir e pediu recuperação judicial. Neste período, a Prol passou a praticar preços inexplicavelmente baixos, que claramente não eram sustentáveis, com o objetivo de tentar adiar ao máximo o fim. As editoras, mais uma vez despreocupadas com a ideia de sustentabilidade, entupiram a Prol de pedidos. Este processo fez com que as concorrentes da Prol, até então saudáveis financeiramente, passassem a enfrentar problemas. A recuperação judicial da Prol causou a quebradeira de diversas gráficas pequenas. Um belo dia, durante a recuperação, a Prol foi fechada. A justiça descobriu que seus donos estavam transferindo o dinheiro das dívidas para contas secretas no exterior. Funcionários ficaram sem salário, clientes sem produto, fornecedores sem pagamento. Do mesmo jeito que a Donnelley. O filho do dono da Prol, após o fracasso da sua gestão, foi curtir uma viagem para “colocar a cabeça no lugar”. Seus funcionários seguem sem receber.
As editoras são as grandes responsáveis pelas quebradeiras envolvendo todo o processo produtivo do setor. A falta de visão do todo e de longo prazo criou um cenário em que hoje elas praticamente não têm de quem comprar papel, não tem quem imprima o material e não têm pra quem vender. Isto é fruto em parte de uma gestão feita por profissionais doutrinados em faculdades e MBAs ruins, que só conseguem enxergar o preço na hora da escolha e fecha o olho para qualquer preocupação com sustentabilidade. Há seis ou sete anos, enquanto diretores recebiam bônus, era muito claro que a conta iria chegar. A conta chegou.
Deixo aqui minha solidariedade aos profissionais da Prol e da Donnelley, que se dedicaram às empresas e que são as maiores vítimas dos golpes aplicados por este empresariado tosco que comanda as empresas brasileiras. A situação da Donnelley foi tão bizarra que os funcionários não puderam entrar nem para retirar os pertences pessoais. Em um lugar sério, toda a alta diretoria da empresa seria processada judicialmente. Não acho que é o que acontecerá por aqui. É bem provável que o CEO da Donnelley já esteja pensando numas férias. Precisa "colocar a cabeça no lugar"

terça-feira, 2 de abril de 2019

Os crimes de Witzel e o silêncio da sociedade




O governador do Rio Wilson Witzel deu uma entrevista aterrorizante no último domingo para o jornal O Globo. Diz o governador que sua promessa de utilizar snipers para “abater” suspeitos já está sendo cumprida, apenas não está sendo divulgada. Fora o paradoxo de o governador divulgar que algo não é divulgado, temos o chefe do Executivo do segundo maior estado do país confessando um crime. Sim, Witzel é um criminoso e, o pior, foi eleito deste jeito. São inúmeros os crimes que Witzel já cometeu desde a campanha e que segue cometendo depois de assumir o cargo. Apologia à tortura e ao assassinato e, de acordo com a entrevista dada ao Globo, não apenas a apologia, mas o assassinato como ato.
Witzel tem forte relação com os juízes da Lava-Jato, sendo amigo pessoal de Marcelo Bretas, chefe da operação no Rio. Foi eleito com apoio e interferência da operação, que divulgou durante a eleição delações sem prova contra seu principal concorrente, Eduardo Paes. Sérgio Moro, ministro da Justiça e chefe supremo da operação, teve como segunda medida (a primeira foi a facilitação da posse de armas) do seu mandato um pacote de leis que, entre outras coisas, praticamente legaliza o tipo de atitude que Witzel está dizendo cometer no Rio de Janeiro. Segundo o pacote de Moro, um policial terá o direito de “abater” qualquer pessoa suspeita, sem correr o risco de sofrer um processo caso se verifique que não havia risco na situação. Independentemente da opinião sobre o pacote (que eu considero absurdo) e de debates humanitários, o fato é que a própria existência do pacote mostra que hoje este tipo de operação hoje é ILEGAL. É errado do ponto de vista humano e do ponto de vista legal. Enquanto este absurdo não for votado e transformado em lei, isto simplesmente não pode acontecer não apenas do ponto de vista humano, mas do ponto de vista legal.
Moro e Witzel não têm muito apego ao ponto de vista humano ou legal. O próprio uso do termo “abater” já mostra que os dois não são capazes de enxergar naquelas pessoas seres humanos, tratam-nas como gado. Desumanizar a vítima é a principal arma de governos totalitários na preparação de genocídios. A forma como a Lava-Jato se destacou foi exatamente atropelando as leis que garantem o estado democrático de direito. Presunção de inocência e direito à defesa (os dois alicerces da democracia) são meros detalhes no projeto de poder destas pessoas. Assistimos passivamente um dos primeiros passos, a transformação da prisão preventiva ilegal em instrumento de tortura psicológica para a obtenção de delações. O suspeito não tem direito constitucional na cabeça do governador. Deve ser sumariamente condenado à morte (pena não prevista na Constituição) pelo agente do Estado. O fato da lei não permitir isto não os impede de agir. Lembro-me de uma entrevista de Moro no Roda Viva na semana em que o Supremo iria votar a interpretação que permitia a prisão na segunda instância. Moro, após fazer ameaças veladas à juíza Rosa Weber, cujo voto era o decisivo na votação, disse que, em caso de derrota no Supremo, iria entrar com um pedido de PEC para alterar a constituição e permitir a prisão neste momento. Ao dizer que era necessária uma PEC, Moro assumiu que a Constituição atualmente simplesmente não permite esta prisão. Mas a vontade dele e da sua turma está acima da lei. Moro e Witzel nada mais fazem do que utilizar no Executivo as mesmas táticas que os levaram ao topo. O desrespeito à lei e o incentivo à ideia de que justiça se faz com vingança. A lei não ter sido mudada é apenas um detalhe que não impede o tipo de operação que Moro e Witzel defendem.
Ao analisar o julgamento de Adolf Eichmann, carrasco nazista responsável pelo transporte de milhões de judeus para campos de concentração durante a segunda guerra, Hannah Arendt surpreendeu ao dizer que Eichmann era uma pessoa “normal”. Era um burocrata da vida, incapaz de pensar e de discernir o certo do errado, estando feliz apenas por cumprir ordens sem entender que ela trazia uma responsabilidade. A sociedade, deixa Arendt implícito no livro Eichmann em Jerusalém, repetirá os erros totalitários se formar cidadãos incapazes de pensar. A entrevista de Witzel não trouxe repercussão alguma. Na mesma entrevista em que afirma com orgulho que assassinatos estão sendo cometidos por agentes públicos de forma sumária e bárbara, sem a garantia de nenhum direito à vítima, o governador diz não se importar com o aumento gigantesco no número de mortos vítimas de ações policiais nos três meses de seu governo. Pelo contrário, sente até certo orgulho disto. A sociedade tende a personalizar culpas. Ao silenciar em relação aos crimes cometidos e confessados por Witzel, ela se torna cúmplice. O crime cometido por um agente público é um crime cometido em nosso nome e, por isso, somos todos culpados. É isto que diferencia o crime de um bandido individual, que o cometeu em seu nome, do crime do agente público, cometido pelo coletivo. Quando o agente público descumpre a lei, não respeita os direitos humanos e é incentivado pelo chefe do Executivo a fazer isto, já deixamos de viver num estado democrático de direito. O fascismo nos anos 1930 foi instalado por pessoas assim, que iam contando com a anuência silenciosa da sociedade a cada passo criminoso efetuado pelos agentes públicos, até o momento em que os crimes eram tão corriqueiros que se transformam na lei. Aqueles que tentam atrapalhar este processo são transformados em inimigos a serem derrubados. O homem que teria impedido esta turma de chegar ao poder central está preso. A nova etapa é derrubar o Supremo, órgão que possivelmente decretará a ilegalidade do pacote assassino de Moro e Witzel. É a etapa que vivemos por aqui. Não é à toa que o governo a que Moro serve tem o mesmo slogan da Alemanha dos anos 1930. Deutschland über alles. Brasil acima de tudo. Acostumar-se com o silêncio é parte do crime. Quem silencia é criminoso.