terça-feira, 9 de abril de 2019

Os oitenta tiros e a precificação da vida





Setenta e oito é o número de disparos que a polícia alemã praticou durante todo o ano de 2018. Oitenta é o número de disparos que a força militar brasileira praticou contra o carro conduzido pelo segurança e músico Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, no bairro de Guadalupe, no Rio de Janeiro. No carro, estavam Evaldo, a esposa, a afilhada de 13 anos e o filho de 7 anos. A força militar que assassinou o segurança e músico disse que realizou a operação porque ele era um suspeito. Não conseguiram dizer suspeito exatamente de quê. Nenhuma arma foi encontrada no veículo. Evaldo, como quase todas as vítimas de violência policial no Brasil, era negro.
Na semana anterior aos oitenta tiros, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, deu uma entrevista chocante ao jornal O Globo, em que afirmava que a utilização de snipers para o “abate”, sim, este é o temo, “abate”, de suspeitos já estava sendo realizada no estado do RJ, apenas, segundo suas palavras, “não estava sendo divulgada”. Sem querer entrar no mérito ou no significado psicológico da divulgação de algo que “não está sendo divulgado”, o governador do terceiro maior estado do país basicamente anunciou e se gabou da prática de um crime. Na mesma entrevista, Witzel afirmou, com um sorriso de canto nos lábios, que não se importava com o número recorde de mortes em operações envolvendo policiais ou outros agentes de força pública entre os meses de janeiro e de fevereiro deste ano. Matar era a principal promessa de campanha de Witzel. Contratar snipers para “mirar na cabecinha” era o seu lema. A repercussão da entrevista do governador foi nula. Após o caso, desta semana,  o falante Witzel disse que não tinha nada a declarar sobre o caso dos oitenta tiros que mataram Evaldo.
Na mesma semana, preocupado com o avanço de Witzel entre o eleitorado de extrema-direita nacional, foi a vez de João Doria utilizar a matança como instrumento político. Uma operação policial na cidade de Guararema resultou na morte de dez bandidos. O objetivo aqui não é discutir se os mortos neste caso estavam fazendo algo errado ou não. A questão, que ninguém fez, é como bandidos tão fortemente armados (segundo o governo do estado) foram tão facilmente trucidados na operação. Fora isso, a forma como a polícia agiu mostra que se sabia previamente que o crime ocorreria, havendo outras formas de impedir sua ocorrência sem o derramamento de sangue. Mas sangue dá voto. Doria precisava mostrar que sua polícia é “efetiva” e a “efetividade” para o público do programa do Datena se dá com bandidos mortos. A audiência seria menor numa reportagem do tipo “polícia impede assalto em Guararema”. Possivelmente a reportagem não teria nem dois minutos. Polícia matando, isso sim dá ibope. Doria é publicitário e sua especialidade é entregar o que o consumidor quer. Já havia percebido isto na eleição, em que repetia que na sua gestão a polícia iria atirar para matar. No mesmo dia da ação dos oitenta tiros no Rio, Doria condecorou os policiais que atuaram no caso de Guararema. “A nossa polícia manda para o cemitério”, disse o governador no evento.
Tanto Witzel quanto Doria agem fora da lei ao incentivar que agentes públicos usem instrumentos letais sem que seja a última opção. Isto é aparentemente um “detalhe”, uma vez que os dois divulgam seus crimes abertamente e contam com o silêncio conivente da opinião pública. Mas é um “detalhe” que pode incomodar. Pensando nisso, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, lançou há pouco mais de um mês seu pacote anticrime que, entre outras coisas, legaliza a ação de agentes públicos nos moldes já praticados por Witzel e Doria e, mais do que isto, afasta qualquer risco de punição a este agente público caso ele cometa um erro. Basta que ele diga que estava sob forte emoção ou que se tratava de um suspeito. A partir do projeto de Moro, por exemplo, os militares que assassinaram Evaldo não correriam nenhum risco de processo, uma vez que alegaram que o pai no carro com sua esposa e duas crianças era um suspeito.
O Brasil é um país racista. Carregamos na nossa pele, todos nós, uma herança sangrenta e vergonhosa da escravidão. Os militares assassinos acharam que Evaldo era suspeito apenas porque ele era negro. O mesmo vem acontecendo com boa parte dos suspeitos mortos pela polícia de Witzel. Negros são vítimas de quase todo abuso cometido por policiais. Nossa elite e nossa mídia são praticamente toda formadas por brancos. Eles não se importam com Evaldo. O segredo do sucesso social para eles está na economicidade da vida. Preocupe-se com seu emprego e com o pagamento das suas contas, vendem eles. Foda-se o resto. Toda análise é feita com base no que pensa o mercado financeiro, “os investidores”. Às vezes eles estão felizes, às vezes estão tristes. De certa forma, este é o governo do mercado financeiro. É simbólico que o novo ministro da Educação, com experiência zero na área, venha da área financeira. A visão de mundo desta turma está em precificar. Eles precificam tudo. A vida de pessoas como Evaldo, no mundo guiado por esta gente, tem um preço muito baixo. Os assassinatos cometidos pelas polícias de Doria e Witzel não derrubam ações. 
Doria, Witzel e Moro não estão juntos apenas nesta empreitada. Segundo levantamento, atualmente quarenta por cento dos presos no Brasil ainda aguardam julgamento final, ou seja, estão presos ilegalmente, uma vez que a Constituição deixa claro que uma pessoa só é culpada após este julgamento em última instância. Moro lidera a pressão sobre o STF para que a prisão em segunda instância seja definitivamente estabelecida. Doria e Witzel têm planos de privatizações de prisões, em que o valor pago às empresas gestoras das cadeias seria calculado a partir do número de presos. Mais prisões, mais dinheiro para o investidor, sendo a presunção de inocência um chato entrave para tão lucrativo investimento. Está precificado. A mesma coisa ocorreu na facilitação do porte de armas liderada por Moro. Não foi por acaso que ele recebeu os lobistas da Taurus no dia anterior do decreto. Sacou?
Enquanto Doria, Witzel e Moro exercitam a matança, a preocupação dos precificadores está na Reforma da Previdência. “É ela que vai gerar empregos”, dizem os precificadores para convencer a população. É o mesmo argumento usado na Reforma Trabalhista. Os telespectadores precificados consomem esta ideia. A grande característica deste mundo em que pessoas são mercadorias precificadas é que, como mercadorias, perdemos a característica humana da empatia. Mais do que isto, tornamo-nos animais violentos, incapazes de refletir sobre crimes cometidos pelo Estado e sobre a nossa culpa e nosso papel nestes atos violentos. Não é à toa que nossa sociedade sucumbiu a um projeto de governo que tem como símbolo a arma. Não é à toa que nossa opinião pública assiste bovinamente às ações lideradas por Doria, Moro, Witzel e Bolsonaro.
A elite precificadora fará seu evento anual em Nova York em algumas semanas. Todos os precificadores estarão lá. Será entregue o prêmio de brasileiro do ano numa cerimônia deste evento. O vencedor deste ano será Jair Bolsonaro, chefe do ministro que lançou o pacote que libera a matança oficial. O ministro, aliás, foi o vencedor do ano passado. No ano retrasado, o vencedor foi João Doria Jr. É possível, neste ritmo, que o vencedor do ano que vem seja Witzel. O Brasil da extrema-direita já está precificado.


P.S.: Ver imagens da família destruída pela ação da força pública no Rio me parte o coração. Um crime cometido por agentes públicos é um crime cometido por toda a sociedade, que aceita passivamente esta situação e, mais do que isto colocou no poder pessoas que se mostram compromissadas com a ideia de converter o Brasil num estado assassino.

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