quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Doria, Virada Cultural e o gestor brasileiro


A bombástica entrevista do prefeito eleito de SP João Doria em que ele disse que a cidade está um lixo e teve a absurda proposta de fechar a Virada Cultural no Autódromo de Interlagos é uma boa amostra do que será a gestão da cidade nos próximos quatro anos. Slogans fáceis e exagerados, típicos de um publicitário, e destruição do conceito de ocupação dos espaços públicos que, sejamos sinceros, teve pequenos avanços a partir da gestão Serra-Kassab e se tornou o grande legado da gestão Haddad.
A cidade era governada por um cientista político que se cercou de urbanistas. Passará a ser governada por um milionário excêntrico cercado de publicitários. Ao invés de ideias e debates, teremos slogans. Um típico gestor brasileiro. Daqueles que acha que sabe de tudo e toma decisões sem consultar ninguém. O Secretário de Cultura da gestão Doria disse que não sabia desta decisão do prefeito. Ou seja, nem com ele Doria conversou sobre o assunto.
Doria não conhece a cidade. E o pior, não sabe disso. E o pior, como o típico gestor brasileiro, é cercado de bajuladores que não permitem que ele saiba disso. A Virada Cultural foi idealizada na gestão de José Serra como um projeto de revitalização e reocupação do centro da cidade. A população de todo canto da metrópole poderia, por um dia, ocupar aquela região e assistir eventos culturais de todo tipo. A Virada cresceu na gestão Haddad, que incentivou muito este tipo de ocupação, que o digam o Carnaval e a abertura da Paulista para pedestres aos domingos. Doria, bem possivelmente, nunca foi à Virada. Tudo que ele sabe sobre o assunto, muito provavelmente, vem de matérias de jornais nos dias seguintes aos eventos, sempre falando sobe o número de furtos e assaltos ocorridos durante o evento. Na cabeça dele, isto é suficiente para cercá-lo no Autódromo de Interlagos, onde em nome de uma suposta segurança o conceito do evento será destruído. E, claro, com o evento num local fechado fica mais fácil lucrar com publicidade. A Virada poderá ser patrocinada pela cervejaria A, pela marca de celulares B, pelo energético C e pelo refrigerante D. Quem sabe uma revista de celebridades não pode fechar um camarote e trazer celebridades. No mundo de Doria, a publicidade se sobrepõe a ocupação da cidade. A questão da segurança é resolvida com cercas.
Baseada na Nuit Blanche de Paris e na Fête de La Musique de Berlim, a Virada Cultural se transformou na gestão Haddad no terceiro evento que mais atrai turistas na cidade. Perde apenas da Parada Gay e da Fórmula 1. As pessoas vêm exatamente para ter a oportunidade de viver a cidade de uma forma que só é possível naquela noite. Doria a enxerga como uma grande micareta. Ainda durante a campanha, em seu início, Doria esbravejou contra a abertura da Paulista para pedestres, mudando de ideia após visitar o evento. Segundo suas palavras, gostou da “vibe”. Poderia ter aprendido a lição deste evento, enxergado o pouco conhecimento que possui da cidade e o quanto tem a aprender. Preferiu manter a arrogância. Há algumas semanas, disse que vai “melhorar” os domingos na Paulista, trazendo os conceitos de “pockets-shows” que viu em Nova York. Se voltasse à Paulista, veria que já há shows acontecendo por lá. Típico do gestor brasileiro. Não sabe e não quer aprender. Só estaria disposto a isto se achasse algum MBA de Gestão Pública em Miami.

Uma semana antes de Doria chamar a cidade de lixo e propor a destruição da Virada Cultural, a gestão de Fernando Haddad foi premiada em Nova York, cidade idealizada por Doria, por Michael Bloomberg, ex-prefeito idealizado pelo tucano. Doria adora dizer que Bloomberg é seu grande exemplo. Vê-lo premiando Haddad pode ter mexido com o ego do prefeito eleito. Típico do gestor brasileiro. O ego acima de tudo. Haddad tem sido extremamente decente com Doria na transição e deixará uma cidade com finanças ajustadas mesmo na crise econômica que vivemos. Doria poderia ser um pouco mais grato. Mas isto não é típico do gestor brasileiro. Não rende slogans. Vamos nos preparar. Teremos quatro longos anos pela frente. A notícia de hoje é que o orçamento da cidade prevê a triplicação dos gastos com publicidade para o ano que vem. Acelera, São Paulo !

terça-feira, 22 de novembro de 2016

A PM, o traficante, a Fátima e o analfabetismo funcional


A polarização das opiniões brasileiras transformou qualquer discussão em uma partida de futebol. Percebe-se no país que não há intersecções nos conjuntos, não há mistura de cores na formação da nossa aquarela.

Cada vez mais o embate “direita x esquerda” ganha contornos de intolerância. O recente desmantelamento do principal partido de esquerda do país licenciou boa parte da população a soltar todos os seus preconceitos guardados. Quando digo boa parte não entenda maioria, porque a maioria dos integrantes do impeachment era apenas descontente com as condições econômicas e clamava por mudança mesmo que ao custo da democracia.

A ideia desse texto não é discutir impeachment ou conceitos de capitalismo e comunismo, a sociedade já é demasiadamente inflamada por esses assuntos nas redes sociais. Quero discutir se as pessoas estão se ouvindo, quero saber se as perguntas feitas a elas são compreendidas corretamente e se as respostas são dadas com alguma sensatez. Quero medir quanto o ódio está moldando o caráter e a capacidade de decidir entre o certo e o errado.

Fátima Bernardes pode ter sido vítima do analfabetismo funcional brasileiro. Como todos sabem, em seu programa a apresentadora apenas mediava um debate sobre quem as pessoas atenderiam primeiro: um policial levemente ferido ou um traficante gravemente ferido. Fátima em nenhum momento toma posição sobre qual resposta daria, ela observa o comportamento dos participantes e convida um médico, que dá sua opinião favorável à maioria. Esse é o primeiro ponto de incômodo. Porque pegar a apresentadora, deturpar o fato e imputá-la opiniões que não desferiu? Fazer um debate sobre o comportamento da nossa sociedade em decisões extremas é prejudicial aos policiais?

Fátima foi mais uma vítima da polarização e da falta da informação. Provavelmente a maioria das pessoas que agrediu a apresentadora nem sequer assistiu ao programa e deve ter se baseado por manchetes de Facebook do tipo “Fátima Bernardes defende traficante”. Está certo contribuir para esse julgamento? Todas as pessoas que fizeram a escolha “pelo traficante” estavam erradas e defendem bandido? Houve sensacionalismo na pulverização digital da notícia?

Segundo ponto de conflito na discussão: estão as pessoas erradas em atender primeiro o bandido mais grave? Nessa reflexão entra o conflito entre os fascistas do “bandido bom é bandido morto” e aquela “galerinha dos direitos humanos para bandido”. As únicas coisas que não entraram nessa discussão foram as mais importantes para o ponto: o papel da medicina e da justiça em uma sociedade.
Pelo o que estudei, o papel da medicina é salvar vidas e o papel da justiça é aplicar a lei. É isso, por mais que doa nos defensores do abominável crossover médico + juiz, um Frankenstein de estetoscópio e toga. Não é difícil entender que o médico é obrigado, inclusive por lei, a não fazer distinções entre pacientes, seja Deus ou o diabo. Também é notório que vivemos em uma sociedade desigual e violenta, em que às vezes o policial assume um papel de homem mau, descumpridor das leis que promete defender, um miliciano, por exemplo. Os médicos teriam a capacidade de, caso o critério de atendimento seja o da idoneidade, avaliar essa situação? Quem faz mais mal à sociedade, o claro inimigo do estado ou o infiltrado travestido de agente do estado? Não importa, o mais grave primeiro.

Os descumpridores das leis merecem atendimento precário? Você que tomou 2 cervejinhas e assumiu o risco de matar ao volante deve ser preterido em caso de acidente? Médicos recém-formados já devem possuir um login e senha da Secretaria de Segurança Pública para ter acesso aos antecedentes dos pacientes? Será que o PM responde inquérito na corregedoria? Não importa, o mais grave primeiro.

Será que sou contra a polícia por caminhar até a coluna do traficante mais grave? Não acho. Penso que a polícia é essencial para a manutenção da ordem, principalmente em um país tão desigual como o nosso. No caso do PM/ Uber que matou 3 assaltantes eu fiquei do lado do PM, e embora tenha percebido que, pela lei, ele cometeu ao menos um “excesso” matando o assaltante desarmado, se eu fosse jurado no caso absolveria o réu sem nenhum peso na consciência e com a sensação do meu dever cumprido.

Você deve ter reparado que o texto é propositalmente cheio de pontos de interrogação. Essas são as perguntas que devemos nos fazer em casos como esse. Provavelmente se você respondeu todas essas perguntas sem sensacionalismos, conseguiu entender porque a maioria das pessoas no programa se encaminhou para a opção TRAFICANTE, como se estivessem no Tentação do Silvio Santos. 

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

NÃO USE UBER !


Sem entrar na questão da máfia de taxistas em São Paulo, por exemplo, que deveria ser combatida pelas administrações municipais e nunca foi, seja o prefeito Maluf, Marta, Serra ou Haddad, a profissão de taxista permitia ao profissional dar uma vida decente a ele e a sua família. Garantia a estes profissionais uma renda de classe média. Mas esta profissão está sendo substituída por um bico. O Uber é a precarização do trabalho, tendo para esta carreira os mesmos efeitos que a terceirização da CLT terá em outras carreiras.
O consumidor do Uber costuma ser feliz. “Pago beeeem menos que no táxi e ainda ganho bala e água” é a frase quase sempre repetida pelos seus usuários. O consumidor no sistema em que vivemos é quase endeusado e não costuma muito se preocupar com os impactos sociais de seu consumo, neste caso predatório. É no ato individual do consumo que encontramos a verdadeira “felicidade”, prega o sistema. Como um patrão que demite um funcionário com direitos trabalhistas e contrata para o lugar um jovem estagiário louco para mostrar serviço e sem direito algum, a sociedade está demitindo os taxistas para colocar no lugar os motoristas de Uber. Apenas para pagar menos.
O Uber é uma empresa americana que está criando um monopólio mundial no serviço de transporte de passageiros. Vem fazendo isto de forma desregulada e se aproveitando de pessoas normalmente em situações difíceis, dispostas a aceitar este emprego quase como um bico ou um complemento de renda. Cresce em locais com alto índice de desemprego ou em que há diminuição no nível de salários. Aposta em ganho de escala. Joga o custo lá embaixo e ganha muito com a quantidade de pessoas que se sujeitam à sua exploração. Ganhando um pouquinho com cada motorista, no final ganha um montão. Para o motorista que efetivamente realiza o trabalho, fica o pouquinho que não vira montão. O Uber é a destruição da profissão. Tudo com a concordância do consumidor egoísta, que só quer pagar menos sem nenhuma preocupação com o impacto social de seu consumo.
O capitalismo costuma destruir de forma sedutora. No caso do Uber é oferecendo bala e água. Mas o forte mesmo é o preço. Somos ensinados a querer pagar sempre menos e a não assumir nenhuma responsabilidade por aquilo que consumimos. O consumidor é rei e sempre inocente. Compramos Iphones produzidos com trabalho escravo na Ásia. Mas o que nos incomoda não é a forma como ele é produzido, e sim a carga tributária que o torna “o Iphone mais caro mundo”. Pagava-se um pouco mais para permitir uma vida digna aos taxistas. Hoje paga-se menos para garantir a exploração de pessoas desesperadas por uma empresa americana.

Para enfrentar esta fase, é fundamental o consumo consciente. O racionalismo econômico nos diz que levamos em conta apenas o preço na tomada de decisão. Seja irracional então. Compre da pequena mercearia ao invés de comprar no hipermercado. Sempre que possível, lembre que o seu dinheiro pode ajudar um pai de família dono de um pequeno estabelecimento a comprar um presente para o filho ao invés de ajudar um CEO de terno a viajar para Miami com o dinheiro do bônus que ele recebeu por demitir funcionários com o belo nome de “reestruturação”. E não use Uber. Seu dinheiro pode ajudar a garantir uma vida digna a um motorista ao invés de financiar um sistema destrutivo de desvalorização do trabalho. 

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Donald Trump e a consagração do culto à celebridade


Donald Trump é a primeira pessoa com o título de “celebridade” a chegar oficialmente ao cargo de homem mais poderoso do mundo. Em nossa era, celebridade é tudo que a maioria quer ser. São as pessoas mais admiradas e copiadas. Quase ninguém sabe o nome do último Nobel de nada, mas muita gente sabe qual a foi a última gafe da Paris Hilton. Mais do que as muitas causas da vitória de Trump, como a clara guinada do Ocidente à direita, é importante analisar o papel que o fato dele ser uma celebridade teve para que ele se apresentasse como uma opção à classe mais detestada pela multidão enfurecida, a dos políticos.
O culto à celebridade é fruto do desenvolvimento da publicidade e surge hoje como opção capitalista ao culto de personalidade do comunismo. O desenvolvimento dos meios de comunicação, especialmente com o surgimento da televisão nos anos 1950, levou a publicidade a outros patamares, com um público antes inimaginável aparecendo como mercado consumidor de produtos e necessidades inúteis que antes eram inatingíveis. Neste contexto, a Publicidade criou heróis, pessoas quase perfeitas que deveriam ser copiadas por um público de vida comum, mas disposto a comprar um produto que o aproximaria desses seres incríveis. O esporte, o cinema e a música apareceram como os primeiros meios que a publicidade enxergou para levar seus produtos ao grande público. Não à toa Marilyn Monroe e Elvis Presley surgiram nesta época. Mais do que ícones, eles vendiam e era fundamental dar-lhes este status de “pessoas que estavam mudando” tudo, mesmo que seus sucessos fossem muitas vezes insignificantes para o rumo da humanidade. Algumas celebridades, como Lennon e Ali, tentaram fugir a este estereótipo, mas foram logo combatidos na época em que se rebelavam contra o andamento das coisas. Com o tempo, após a morte do primeiro e a doença do segundo, perderam a capacidade de mudar algo e foram incorporados pela publicidade. A imagem dos dois ajudou a vender tênis. A publicidade gosta de rebeldia, desde que ela tenha acontecido e sido derrotada no passado. Quem sabe daqui a 30 anos não veremos propagandas com a ocupação das escolas contra a PEC 241?
Ser celebridade parece fácil e muitas vezes acessível. Isto atrai e cria muitas vezes uma esperança de riqueza, alvo máximo da felicidade no sistema em que vivemos, e de importância. Na era do espetáculo, ser famoso é existir e é ser amado, exigindo muitas vezes pouco. Até os anos 1990, exigia-se pelo menos algum talento esportivo, como colocar uma esfera dentro de um retângulo com os pés, ou algum talento musical, como tocar guitarra girando no chão. A partir deste momento, passou a não exigir mais nem isto. A internet ampliou a capacidade de comunicação e de informação, boa parte das vezes inúteis, e a publicidade encontrou um público cada vez mais disposto a buscar informações rápidas e descartáveis. Assim, surgiu a celebridade instantânea, aquela que na maioria das vezes dura menos do que quinze minutos e que tem a fama alcançada sem nenhum tipo de talento, mesmo os que não mudam nada. Paris Hilton e Kim Kardashian ficaram famosas com vídeos pornôs vazados e hoje são capazes de vender tudo que chega perto delas.
Donald Trump já nasceu rico. Ficou ainda mais rico investindo bem o dinheiro do pai no mercado de imóveis. Mas isto não era suficiente. A glória no mundo atual não é dada apenas pelo dinheiro, mas também pela fama. Ser famoso é ser poderoso. Para isto, transformou-se em produto e começou a comprar intervalos comerciais em que ele era a grande atração. A mídia gostou e o transformou em figura carimbada de todo tipo de programa, em que falava muitas vezes como era bom ser rico e qual a solução que ele tinha para quase tudo que surgia como produto. Na era dos realities shows, inventou um em que era o patrão que julgava e demitia pobres coitados de terno, que sonhavam com um emprego e com um pouco da tão sonhada fama. Julgar, aquilo que o público deste tipo de programas mais gosta de fazer. Demitir, aquilo que tem que acontecer com incompetentes e malvados na visão deste mesmo público. Um emprego, o grande prêmio de uma parcela de pessoas que encontram no trabalho a única forma de dizer que tem uma vida decente.
Julgar e demitir políticos. Isto que a mídia nos ensina a fazer. A culpa é toda deles. Nossa sociedade é perfeita e seria ideal, se não fossem estes sanguessugas que destroem tudo. Que muitas vezes nos prejudicam na missão de conseguir aquilo que permite que tenhamos uma vida digna e que possamos comprar as coisas que a publicidade diz que precisamos, um emprego. Ter um emprego é a grande meta daqueles que ainda não conseguiram ser celebridades. É o que muitas vezes permita que se compra os produtos inúteis vendidos por ela. Para isto, vale tudo. Até expulsar imigrantes que realizam os trabalhos que muitas vezes ninguém quer realizar. Vivemos desde 2008 a primeira grande crise do capitalismo desde a explosão da importância das celebridades. As pessoas estão com ódio, julgando e loucas para demitir. Encontraram nos EUA em Trump a pessoa perfeita para fazer isto. Ele é rico e famoso, logo bem-sucedido, e tem uma mensagem de vingança, quase como uma punição à classe que a mídia responsabiliza por todos os problemas existentes. Falar mal de político vende. Falar mal do público não.
A eleição de Trump levará muito provavelmente à explosão no número de celebridades que ingressam na política em todo mundo. A eleição de João Doria Jr. em SP já é um primeiro exemplo disso, lembrando que a candidatura dele surgiu após a entrada de Trump na corrida presidencial e que parte de seu discurso, o da rejeição à política, é o mesmo. Graves crises exigem salvadores e ninguém é mais capaz de atingir este papel hoje do que uma grande celebridade. Ser famoso é ter poder. Na mediocridade da sociedade atual, literalmente. Termino com esta frase de José Arbex Jr. no livro Showrnalismo: a notícia como espetáculo, comentando o livro A Sociedade do Espetáculo, do filósofo francês Guy Debord:

“‘O espetáculo – diz Debord – consiste na multiplicação de ícones e imagens, principalmente através dos meios de comunicação de massa, mas também dos rituais políticos, religiosos e hábitos de consumo, de tudo aquilo que falta à vida real do homem comum: celebridades, atores, políticos, personalidades, gurus, mensagens publicitárias – tudo transmite uma sensação de permanente aventura, felicidade, grandiosidade e ousadia. O espetáculo é a aparência que confere integridade e sentido a uma sociedade esfacelada e dividida. É a forma mais elaborada de uma sociedade que desenvolveu ao extremo o ‘fetichismo da mercadoria’ (felicidade identifica-se a consumo). Os meios de comunicação de massa – diz Debord – são apenas ‘a manifestação superficial mais esmagadora da sociedade do espetáculo, que faz do indivíduo um ser infeliz, anônimo e solitário em meio à massa de consumidores’’.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Por que dizemos que foi golpe?


Era 01/04/1964. Neste dia, o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili, declarou vaga a Presidência da República, anunciando que o presidente legítimo João Goulart havia abandonado o país. Dizia a Constituição de 1945 que, estando vaga a presidência da República e não havendo mais vice para suceder o titular, a mesma seria exercida pelo presidente da Câmara, que deveria em 15 dias convocar uma eleição indireta no Congresso que elegeria o novo presidente para terminar o mandato. Assim foi feito e em 15/04/1964 o Congresso elegeu o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco para a presidência, em eleição acompanhada pelo presidente do Senado e pelo presidente do Supremo, que estavam lá para garantir que tudo ocorresse conforme previsto pela Constituição. Por que chamamos 1964 de golpe então? Porque João Goulart não havia abandonado a presidência. O golpe está na declaração de vacância da Presidência da República. O fato de que todo o processo foi realizado em seguida em conformidade com a Constituição não o legitima.
Dilma Rousseff foi reeleita presidenta do Brasil em outubro de 2014 e assumiu o seu segundo mandato em 01/01/2015. A primeira grande manifestação pedindo seu afastamento ocorreu em 15/03/2015, exatamente 75 dias após a sua posse. Aproximadamente sete meses antes do Tribunal de Contas da União recomendar a rejeição dqw contas da presidenta no ano eleitoral de 2014. Ou seja, já havia um claro interesse de uma parcela significativa da população em afastar a presidenta eleita antes mesmo que houvesse um crime que a afastasse. Em qualquer relação lógica, temos uma causa que gera uma consequência. No caso deste impeachment, primeiro tivemos a consequência e em seguida foi-se buscar uma causa.
A revista Piauí deste mês (novembro/2016) traz um perfil da advogada Janaina Paschoal, “mentora-intelectual” do impeachment/golpe. Ela diz que chorou com a reeleição de Dilma e que a partir daquele momento sentia que era uma espécie de “missão divina” tirar o PT do poder. Em junho de 2015, três meses após a primeira grande manifestação e quatro meses antes da reprovação das contas, Janaina saiu procurando alguém que a ajudasse nesta missão. Os motivos dados por ela eram muitos: Venezuela, Cuba, bolivarianismo, roubalheira na Petrobrás, economia e muitas outras razões, boa parte lunáticas, para desrespeitar a vontade popular expressa menos de um ano antes. Menos as tais pedaladas. Após ser recusada por boa parte dos partidos, inclusive o PSDB, encontrou apoio em duas pessoas: Helio Bicudo, ex-vice prefeito de SP na gestão de Marta Suplicy que havia se decepcionado com a gestão petista e Miguel Reale Jr., filho de um dos líderes do movimento integralista dos anos 1930. Após árdua procura, em outubro “encontraram” um motivo que permitisse algo que talvez justificasse a abertura de um processo de afastamento, mas ainda dependia da boa vontade do presidente da Câmara, Eduardo Cunha. A boa vontade veio em dezembro, quando ao não conseguir apoio petista contra seu processo de cassação, Cunha aceitou o pedido. O que veio depois, todos já sabem.
Um dos principais argumentos daqueles que dizem que não foi golpe é que o processo foi todo conforme a Constituição e que o STF acompanhou todo o processo. Como em 1964, o fato do processo ter sido seguido conforme previsto pela Constituição não o torna legal caso o seu início tenha sido feito com um argumento fajuto. O julgamento da Câmara aconteceu em março e os julgamentos do Senado ocorreram em maio e agosto. O TCU julgou as mesmas ilegais apenas no final de junho. Dilma foi condenada, portanto, por um “crime” que ainda não havia nem sido julgado pelo órgão competente em boa parte do processo. A anuência do Supremo ao processo, portanto, não o legitima. Não entrando no mérito de que outros governadores também usaram este expediente, o processo contra Dilma por este motivo poderia começar apenas em junho.

Por último, o resultado desastroso do PT nas eleições municipais de 2016 demonstra para alguns que houve apoio popular para o impeachment e isto o legitima. Na primeira eleição legislativa após o golpe de 1964, ocorrida em 1970, a ARENA, partido de apoio aos militares, recebeu aproximadamente 72%. Todas as pessoas que usam os argumentos citados acima (participação do Supremo, uso do processo citado na Constituição e resultado eleitoral da eleição seguinte) para justificar a legitimidade do processo de 2016 os usariam para justificar o processo de 1964. Assim como em 1964, o processo de 2016 foi iniciado por um argumento fajuto. No processo de “salvação”, o Poder Judiciário faz o papel que era dos militares. Este Poder é aplaudido e bajulado pela mídia cada vez que interfere nos outros poderes e ameaça com punições àqueles que ousam criticá-los. Votarão uma lei que pode impedir Renan Calheiros de permanecer na linha sucessória pouco depois deste criticar um juiz, para júbilo de quase todos. A consequência disso com o decorrer do tempo ainda não se sabe. Sabemos, porém, que o governo Dilma foi derrubado por sua ineficiência na área econômica e o suposto “crime” foi apenas uma desculpa encontrada para resolver o “problema” criado pelas urnas. Algo que só poderia ser resolvido de forma legítima em 2018. A democracia no país saiu disso tudo mais frágil e viveremos estas turbulências em todo momento de crise econômica. Se sairemos disso como uma ditadura? Em 1965 muitos achavam que não. Em 2016, já não somos uma democracia perfeita. Aceitamos que o Poder Judiciário influencie como nunca na política e que uma pessoa seja acusada com base em convicções, não em provas. Na semana passada, uma peça de teatro de rua foi interrompida pela polícia por causa de seu conteúdo político. A história nos ensina onde isto vai dar. Há coisas mais sérias do que a crise econômica acontecendo. Como em 1964...

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Sudeste: O maior derrotado das eleições de 2016


Um terço dos eleitores não votou no segundo turno das eleições. Taxa semelhante foi observada no primeiro turno. A eleição em São Paulo foi vencida por um lobista do empresariado nacional, que se apresentou como gestor não político, com propostas como o fim das secretarias voltadas contra a desigualdade, a colocação de pobres para serem atendidos em hospitais particulares durante a madrugada e a revisão da redução de velocidades nas marginais. Em Belo Horizonte, venceu o ex-presidente do Atlético – MG, cujo slogan era “chega de política” e que teve como frase mais famosa da campanha “eu roubo, mas não pego propina”. No Rio de Janeiro, a vitória foi da Igreja Universal do Reino de Deus, com um candidato homofóbico e machista, que acredita que a função da mulher é servir ao homem. Enquanto a mídia celebra e analisa a histórica derrota do PT, deixa passar a característica maior do resultado observado especialmente nas três maiores capitais da região mais rica do país: a derrota da classe política.
O sentimento de rejeição à política na região Sudeste tem várias explicações. O primeiro, sem dúvida, são os erros cometidos pelo PT, especialmente no tipo de alianças que fez em nome de governabilidade com gente de caráter duvidoso e que não titubeou em abandonar o barco no momento em que ele começou a afundar. Não nos esqueçamos de que o bispo homofóbico e machista era ministro do governo Dilma. Mas o objetivo aqui, porém, não é analisar este ponto da rejeição à política. Matérias e textos analisando as falhas petistas são abundantes em nossa mídia extasiada com a decadência do partido.
Toda ação gera uma reação contrária de igual intensidade. Não entendo nada de física, mas lembro desta lei que acho que pode ser aplicada à política. Os treze anos de gestão petista geraram na região Sudeste uma enorme onda conservadora e individualista. O conservadorismo é apoiado num certo lunatismo de gente que não saiu da Guerra Fria e que se vê num combate contra um inimigo que nem existe mais. Não à toa a advogada do impeachment alerta seus seguidores para uma lunática invasão russa vinda da Venezuela. Lula foi possivelmente o mais capitalista presidente que o Brasil já teve, uma vez que para ele a melhora do país estava ligada à ideia de expansão do mercado consumidor. A pequena distribuição de renda, que embora minúscula foi capaz de salvar milhões de vida, foi suficiente para criar uma série de teorias da conspiração na cabeça de muitas pessoas, tudo isto inflado por uma mídia que insiste em fazer comparações descabidas entre a situação econômica brasileira e a venezuelana, sem nenhuma análise das enormes diferenças existentes entre os dois países. Mais do que os erros petistas, a camada mais conservadora da sociedade se incomoda mesmo é com seus acertos. O individualismo se apega neste conservadorismo. Quem, informado ou não, não gosta de um governo que distribui renda, automaticamente gosta do governo que faz o oposto. Neste cenário, o maior problema do país para este tipo de pessoa é a carga tributária. Faça-se tudo, eles acreditam, menos aumentar impostos. Nem que para isto seja necessário cortar gastos em saúde e educação. O que importa é ter mais dinheiro no seu bolso. A sociedade está em segundo plano. A PEC 241 está aí para isso.
Neste cenário, surgiu Doria em SP. Com uma mensagem de rejeição à política e de ódio ao PT, atraiu este eleitorado paulistano que vê nele um exemplo de empreendedor bem-sucedido, ícone de sucesso para o típico individualista. Lobista e histórico puxa-saco de quase todos que estão no poder, incluindo Lula, chegou ao Estado para destruí-lo, vendendo tudo que é possível muito provavelmente para amigos do grupo que lidera, a Lide, associação em que empresários se autobajulam e trocam experiências banais sobre como ganhar dinheiro gerando a menor quantidade de empregos possível. Alckmin fez uma leitura perfeita do cenário atual e apresentou uma candidatura que misturava o discurso fiscalizador de Jânio com a inexperiência política de Pitta, conseguindo uma vitória esmagadora entre todas as classes sociais. Numa eleição sem dinheiro, apostou num empresário egocêntrico disposto a se autofinanciar e que já era conhecido pelo público que já o vira anteriormente num programa de TV em que sua função era demitir engravatados. O candidato de quem quer menos serviço público, afinal. De quem não precisa e está disposto a fazer tudo para não precisar deste serviço. Independente da classe social.
Em BH, Aécio não teve a mesma sacada de Alckmin e foi vítima do mesmo tipo de discurso. Vindo de uma família tradicional, Alexandre Kalil soube catalisar não apenas o ódio ao PT, mas também a rejeição que Aécio possui no estado, que já havia ficado clara na sua clamorosa derrota para Dilma em MG em 2014. Numa campanha recheada de bizarrices, com uma quantidade nula de propostas importantes, Kalil vendeu a ideia de que transformará a cidade num novo Atlético. Resta saber quem será o Ronaldinho Gaúcho neste cenário surreal que a capital mineira viverá pelos próximos quatro anos.
No Rio, o lunatismo “anti-bolivarianismo -soviético-Janaina Paschoal” gerou seu resultado mais trágico. Como dizia o MBL, movimento símbolo da luta contra a Guerra Fria que acabou em 1989/1991, era “Crivella ou Venezuela”. E assim a administração da segunda maior cidade do país foi entregue à Igreja Universal do Reino de Deus. A vitória de Crivella serve como prova de que este conservadorismo ataca muito mais ideias progressistas do que a corrupção que eles dizem combater. Havia duas candidaturas, uma claramente desonesta, que havia inclusive participado do governo que eles dizem ser “o mais corrupto da história”, contra outra com um candidato que havia abandonado este mesmo governo quando este estava no ápice da popularidade, mas já mostrando seus defeitos éticos. Entre o corrupto e o não-corrupto, optou-se pelo primeiro pelo simples motivo de que o segundo defende pautas progressistas. Entre um candidato que representa um fundamentalismo religioso e corrupto que representa um retrocesso gigantesco em termos de direitos sociais e outro que defende igualdade e distribuição de renda, os conservadores escolheram o primeiro, tudo para combater um risco de bolivarianismo que só existe no mundo de fantasia de suas mentes doutrinadas.
A eleição de 2014 terminou com uma onda de ódio e preconceito de parte do eleitorado conservador do Sudeste contra os eleitores da região Nordeste. Naquele momento surgia um cenário que levaria, em 2016, há um impeachment fajuto e à vitória destes candidatos nas eleições das três maiores capitais da região. Explodiu o ódio numa grande massa arrogante e ignorante, facilmente manipulada por meios de informação dispostos a tudo para derrubar um governo que não a agradava. Surgiu um grande monstro que odeia a política e, portanto, o debate. Historicamente, sabemos onde isto costuma dar. O lobista, o fundamentalista religioso e o boleiro podem ser apenas o primeiro passo de algo muito sério. Na eleição de 2016, o Sudeste acha que ganhou, mas perdeu feio. Junto com o PT, esta região foi a grande derrotada das eleições municipais.


terça-feira, 18 de outubro de 2016

O Brasil tem muitos deputados?


O momento de polarização política no Brasil gerou um ambiente em que várias propostas absurdas ganham o ar de inteligentes, sem que quase ninguém esteja realmente interessado em fazer qualquer tipo de análise real sobre o que está sendo proposto. Temos uma classe média que, em geral, é prepotente e ignorante, enxergando no Estado o grande inimigo a ser combatido e disposta a embarcar em qualquer ideia vazia que a seu ver signifique uma diminuição deste “gigante”. Uma das mais repetidas neste momento é a de que o Brasil tem muitos deputados. Ignorando completamente toda a heterogeneidade da nossa nação, construída por pessoas de diferentes etnias e classes sociais que devem ser representadas no Legislativo, simplesmente se repete sem muita base que este número deveria ser menor, soltando um sorriso de pressuposta inteligência após dizer algo que, na realidade, não se sabe muito bem o que significa. O objetivo deste texto é, a partir de comparações com diferentes grupos de países, concluir se há sentido no que é dito ou não.
Inicialmente, começaremos a comparação com o G7, grupo dos sete países do mundo que, deduzo eu, devam ser também os países mais admirados pela parcela da população que pede “eficiência” ao Estado. Para isto, crio um índice de quantos deputados cada país possui por milhão de habitantes e quanto isto significaria se o mesmo índice fosse aplicado ao Brasil. Lembro que para esta análise não será levado em conta o número de senadores (Câmara Alta), apenas de deputados (Câmara Baixa). Abaixo temos os números:

País
Pop. (mil)
Deputados
Deputado / milhão habitante
Equivalente Brasil
EUA
318.000,00
435
1,37
274,13
Alemanha
80.620,00
630
7,81
1.566,01
Japão
127.300,00
480
3,77
755,63
Canadá
35.160,00
308
8,76
1.755,49
Itália
59.830,00
630
10,53
2.110,18
França
66.030,00
577
8,74
1.751,19
Reino Unido
64.100,00
650
10,14
2.032,14
Brasil
200.400,00
513
2,56
513,00
média
7,30
1.463,54

Dos sete países do grupo, apenas os EUA tem um número relativo de deputados menor que o Brasil. Se o Brasil possuísse em deputados a média dos sete países, teria aproximadamente 1.463 deputados, 285% a mais do que temos atualmente.
O segundo grupo a ser analisado e comparado será a América do Sul, nossos vizinhos, desconsiderando as Guianas e Suriname. Seguem os números:


País
Pop. (mil)
Deputados
Deputado / milhão habitante
Equivalente Brasil
Argentina
41.450,00
257
6,20
1.242,53
Uruguai
3.407,00
99
29,06
5.823,19
Chile
17.620,00
120
6,81
1.364,81
Paraguai
6.802,00
80
11,76
2.356,95
Equador
15.740,00
100
6,35
1.273,19
Venezuela
30.410,00
167
5,49
1.100,52
Colômbia
42.120,00
166
3,94
789,80
Bolívia
10.670,00
130
12,18
2.441,61
Peru
30.380,00
130
4,28
857,54
Brasil
200.400,00
513
2,56
513,00
média
9,56
1.916,68

Dos nove países do grupo, nenhum possui um número relativo de deputados menor que o Brasil. Usando a mesma ideia de média aplicada na comparação com o G7, o Brasil teria neste caso aproximadamente 1.917 deputados, 373% a mais do que temos atualmente.

O principal objetivo de um Parlamento, especialmente o da Câmara Baixa, como dito no primeiro parágrafo, é o de garantir a representatividade de toda a população. Isto está longe de acontecer no Brasil (10,6% de mulheres e 3% de negros). O verdadeiro debate deveria estar aí, em como garantir que este Congresso seja realmente representativo da nossa sociedade, com todas as nossas disparidades. Os dois quadros acima mostram que, dentre os 16 países citados, todos democratas, apenas nos EUA a representação é menor do que no Brasil. Mostram também que um número maior de deputados não representa má qualidade administrativa, uma vez que eu duvido que alguém ache que a Alemanha não é um bom exemplo disto
O Brasil vive um momento grave de má qualidade em seus debates, com uma falta quase que completa de análise em alguns assuntos. Este é apenas um dos exemplos. Discutamos a atitude de alguns deputados e seus gastos, mas não nos esqueçamos de que a principal qualidade que uma democracia deve ter é a garantia de representatividade, e que esta deveria ser a preocupação constante. Infelizmente deixou de ser.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Obrigado, Haddad



Há quatro anos, eu achava ser impossível amar São Paulo. Escrevi em algum lugar que não lembro qual, durante as eleições de 2012, que o grande problema da cidade era a falta de autoestima. A população de São Paulo estava acostuma com a ideia de que a cidade era aquilo que existia entre a janela da sua casa e o seu trabalho. Aquilo que era visto pela janela do carro ou do ônibus enquanto nos locomovíamos para trabalhar. O local que todos queriam sair em qualquer oportunidade. São Paulo não era lazer, São Paulo era trabalho.
De 2012 até hoje, porém, algo mudou. Tivemos uma gestão diferente, que privilegiou o lado humano e a cidadania. Tivemos um prefeito que ousou reduzir a velocidade máxima permitida, privilegiando a vida humana em detrimento da já lendária pressa paulistana. Vimos uma gestão que se preocupou como nunca com minorias oprimidas, buscando dar oportunidades de recomeço para usuários de crack e travestis. Um governo que escolheu estender a mão e que mudou a forma como seus habitantes lidam com o espaço público. Até Carnaval de rua, veja só, passamos a ter na cidade. Incentivou como ninguém a arte urbana. Investiu em ciclovias. Eu sinceramente achava que era impossível que esta cidade tivesse uma malha cicloviária decente, toda vez que este assunto era abordado em debates políticos me parecia uma utopia. Vi que não é. Vimos uma cidade que investiu mais em transporte público e menos em publicidade. Temos bilhete único diário, mensal e semanal e um número muito grande de corredores. Vimos uma cidade que investiu no coletivo. Uma gestão cujo slogan é “Existe amor em SP”. Sim, é possível amar esta cidade. Há, a meu ver, um projeto aparentemente pequeno que foi o grande símbolo desta gestão. Em 2015, a Prefeitura resolveu trocar todas as carroças de catadores de lixo da cidade. Bastava ao catador levar a carroça antiga a um local determinado e ele ganharia uma carroça nova, mais fácil de transportar e com um detalhe fundamental. Havia nela um compartimento para colocar o cachorro. Uma gestão que teve a preocupação de olhar aquele ser humano marginalizado, que faz um trabalho fundamental para a cidade, e de perceber a importância que a companhia do animal tinha. Este projeto não valeu um voto, mas acho que voto não foi a preocupação desta gestão.
Toda ação, porém, gera uma reação de igual intensidade. A gestão marcada pelo amor à cidade foi também contemporânea de um momento de explosão do ódio entre seus habitantes. Gente que não quer usar transporte público, embora finja que quer. Gente que não se importa com desigualdades, embora finja que se importe. Gente que não gosta de arte urbana, embora finja que goste. Gente que se lixa para crackeiros e travestis, por exemplo. Gente que não se importa com a vida de ciclistas ou motoqueiros, que só quer correr mais. Foi difícil nestes meses de eleição conversar com pessoas que faziam cara de desprezo cada vez que eram apresentados dados de que a redução da velocidade havia significado redução na morte de pessoas no trânsito. Conversar com gente que acha que artista é tudo vagabundo e que postava fotos de falhas no projeto de ciclovias (que efetivamente existem) para desqualificar todo o projeto. Pessoas que tiveram como primeira reação ontem, após o anúncio da vitória de Doria, xingar seus oponentes ao invés de gritar viva ao novo prefeito que recebeu seus votos. Ironicamente, a gestão marcada pelo amor foi derrotada pelo ódio. Não basta vencer, é necessário humilhar os derrotados. Gente que estava disposta a votar em qualquer um.
A vitória de Doria qualquer um foi esmagadora. A gestão que menos gastou em publicidade foi derrotada por um publicitário. A gestão que apresentou uma nova forma de uso e aproveitamento do espaço público foi derrotada por uma pessoa que já deixou bem claro que boa parte deste espaço será transferida ao setor privado. O prefeito que deu prioridade aos grupos oprimidos foi derrotado por um candidato que já disse que acabará com a Secretaria das Desigualdades. Nada disso importa para a turma do “Fora PT”. Doria já anunciou que reverterá a redução das velocidades nas marginais em sua primeira semana de governo. Também diminuirá o número de radares, permitindo aos motoristas descumprir a lei com maior tranquilidade. “Ufa” eles estão pensando. E “Fora PT”. A gestão estadual das obras de metrô inacabadas, dos trens superlotados falhando e da falta de merenda nas escolas chegou também ao município. “Fora PT” e "Acelera São Paulo"
A quem, como eu, enxergou o caráter humanitário e transformador da gestão Haddad, resta a alegria de saber que ao menos ela existiu. Há quatro anos não achava que algo assim era possível. Agora sei que é. São Paulo voltará a ser a cidade com pressa e estressada, a cidade da "eficiência". Mas agora ao menos sabemos o caminho. Por ter renovado a minha fé na capacidade de transformação que a política é capaz de realizar, tenho que dizer “Obrigado, Haddad”. Mesmo.