domingo, 29 de agosto de 2021

31 de agosto

 



Hoje é aniversário do meu pai. Isto é a primeira coisa que penso em todo 31 de agosto. Foi assim naquele 31 de agosto. Acho que será assim em todo 31 de agosto até o fim da minha vida. Sempre com verbo ser no presente. Tenho duas teorias. A primeira é que penso este “é” porque de certa forma sinto que isto deixa a memória dele mais viva no meu ser. A segunda é que para aniversário talvez não exista passado. Acho. Não tenho certeza. Bom, para mim não existe. Em 31/08/2032, caso eu esteja vivo, acordarei pensando “Hoje é aniversário de 100 anos do meu pai”. “Hoje ele faria 100 anos”. Aí sim, mudo para o futuro do pretérito. Em 31/08/2016, meu pai faria 82 anos. “Hoje é aniversário do meu pai. Ele faria 82 anos hoje.” Foi esta a sequência. A terceira coisa que pensei foi: “De que lado meu pai estaria?”. O impeachment de Dilma seria votado naquele dia no Senado. Era a última etapa daquele martírio. Era a primeira etapa deste martírio. Meu pai muito muito provavelmente estaria do lado errado. Como boa parte das pessoas que amo, aliás. Algumas continuam do lado errado, lado que se torna a cada dia mais errado. Lado cujo errado já passou qualquer limite de errado aceitável. Até onde nossa capacidade de amar vai? Como será quando pessoas que amamos estiverem denunciando os judeus escondidos no porão para a Gestapo? Como lidar com o fato de que amamos pessoas capazes do que há de pior?

Agosto é um mês importante na minha vida. Era meu mês favorito na infância. Meu pai faz aniversário dia 31 e minha mãe faz dia 24. Adorava esta semana. O Getúlio se matou no dia 24 e eu achava quando criança que eu era a única pessoa que sabia disso. Sempre que por algum motivo o Getúlio era assunto de alguma conversa eu falava isso. “Você sabia que minha mãe faz aniversário no dia que o Getúlio se matou?” Ninguém achava isto muito incrível. E não era realmente. Mas para mim era. O Jânio escreveu a carta de renúncia no dia 24, mas a renúncia só foi aceita no dia 25. Eu “gosto” do Jânio. Digo “gosto” porque não gosto de verdade. Eu gosto do Lula, gosto da Dilma. Do Jânio eu “gosto”. “Gosto” porque acho que há um lado simbólico interessante na renúncia dele. Uma vez li uma entrevista do Cláudio Lembo, que era assessor do Jânio na época da renúncia, e assumi o que ele disse naquele dia como verdade. Pode não ser. Mas para mim é. Segundo ele, Jânio era um cara estourado e já tinha escrito umas três cartas de renúncia antes da fatídica carta. Ele as entregava a Lembo que as punha no bolso e as escondia. No dia seguinte, Jânio tocava a vida como se nada tivesse acontecido. Jânio ficava de saco cheio por algum motivo, escrevia a carta e depois passava. Naquele 24/08, porém, Lembo estava de folga. Era feriado. O dia em que Getúlio se matou foi feriado entre 1955 e o golpe militar, acho. Não confirmei. Mas sei que em 1961 era feriado. E um feriado que caiu numa quinta. Lembo aproveitou para viajar. Jânio não sabia que era Lembo que sumia com as cartas. Embora as entregasse para ele, não imaginava que era nesta parte do trajeto que a carta se perdia. Bom, daquela vez a carta não se perdeu. Alguns acham que o Golpe de 1964 não teria acontecido sem aquela renúncia de Jânio. Eu acho que aconteceria. Aconteceu no continente todo. Uma hora os milicos iam achar uma desculpa. Quando alguém que dar golpe, inventa-se motivo. Tipo pedalada fiscal. Eu tinha um colega de trabalho que era igual ao Jânio. Volta e meia ele pedia as contas. Mandava o chefe tomar no cu, pegava a carteira e anunciava que estava indo no RH. Teve um dia que ele chegou de uma reunião puto, entrou na sala, pegou a carteira e disse: “Tô indo no RH pedir as contas”. Eu não estava na empresa neste dia, tinha viajado pela empresa. Estava cochilando no ônibus quando meu celular tocou. Era um colega que disse: “Fulano pegou a carteira e tá indo no RH pedir as contas”. “Caralho”, eu pensei. “Me liga quando cê souber no que isso deu”. Logo em seguida, meu chefe entrou perguntando: “Cadê o fulano?”. “Pegou a carteira e foi no RH pedir as contas”, respondeu meu colega. Eu não estava lá, não sei se foi literalmente assim. Mas foi algo deste tipo. Meu chefe saiu desesperado e, alguns minutos depois, voltou à sala com o fulano, quase abraçados e brincando. E, por favor, não tomem isto que estou falando como verdade. Muita gente que entende mais do assunto do que eu fala que foi tentativa de golpe do Jânio e tal. Mas eu acho que não foi.

Outro motivo para eu “gostar” de Jânio é que meu pai o adorava. Meu pai achava o Jânio foda. “Esse aí acordava seis horas da manhã e saía multando carro pela cidade”, dizia meu pai. Ele achava isto a definição de boa política. Acordar cedo e sair multando. Meu pai teria delirado com aquele começo de gestão Doria na Prefeitura de SP. Aquela época em que o recém-prefeito vestia cada dia uma fantasia de uma profissão. Era o tipo de populismo que ele adorava. Possivelmente meu pai hoje estaria nesse papo de terceira via. Pode ser.

Ser petista não era fácil em 2016. Acho que era até mais difícil do que hoje. As pessoas já me chamavam de petista antes de eu ser petista. “Vocês não percebem que esta turma de verde-e-amarelo é um bando de fascista filho-da-puta?”, eu dizia na época. “Você tá viajando”, dizia a maioria. Boa parte do período anterior àquilo eu estava viajando mesmo. Eu acho que parei de viajar em 2014. Foi a primeira eleição em que votei no PT. “Voto crítico”. Não há nada mais arrogante do que o “voto crítico”. Toda pessoa que dá “voto crítico” é uma alienada metida a sabichona. Eu era assim. Estar do lado do PT em 2014 me fez começar a ver como as pessoas do outro lado agiam. E pai do céu, já era assustador. Em 2015 era muito assustador. Aquela primeira passeata, aquele bando de gente rica colocando criança rica para tirar foto com policial. Aquelas faixas. Aquela estética. Aquela manipulação. Tudo. 2016, puta que pariu. Eu tinha medo de colocar camisa vermelha e sair na rua. No dia em que o Moro liberou a conversa do Lula com a Dilma, eu estava na rua indo encontrar uns amigos em um bar e de repente começou uma gritaria. Do nada. “Que porra tá acontecendo?”, eu pensei. Uma TV ligada num bar mostrava um bando de gente de verde-e-amarelo cercando o Palácio. “Caralho!”. Uma amiga me manda uma mensagem com medo. “Meu pais são filiados ao PT, tenho realmente medo do que as pessoas podem fazer com eles”. Dois anos depois, estas pessoas, algumas que eu amo, votaram num cara que prometera em campanha metralhar os petistas. Prendê-los ou expulsá-los do país, prometeu ele em outro discurso. As pessoas votaram neste cara. Como será quando pessoas que amamos estiverem denunciando os judeus escondidos no porão para a Gestapo? Como lidar com o fato de que amamos pessoas capazes do que há de pior?

A presidenta. A presidenta exigia ser chamada de presidenta. As pessoas faziam questão de chamá-la de presidente. Ridicularizavam o termo presidenta. Ridicularizavam tudo. A história às vezes inverte o papel de ridicularizado e ridículo. Para os ridículos, o termo presidenta estava errado. Eles insistiam que só existia presidente. A presidenta insistiu mais. A história da presidenta é uma história de insistência. Lembro dela naquele 31/08. De vermelho, forte.

“Mas o golpe não foi cometido apenas contra mim e contra o meu partido. Isto foi apenas o começo. O golpe vai atingir indistintamente qualquer organização política progressista e democrática.

O golpe é contra os movimentos sociais e sindicais e contra os que lutam por direitos em todas as suas acepções: direito ao trabalho e à proteção de leis trabalhistas; direito a uma aposentadoria justa; direito à moradia e à terra; direito à educação, à saúde e à cultura; direito aos jovens de protagonizarem sua história; direitos dos negros, dos indígenas, da população LGBT, das mulheres; direito de se manifestar sem ser reprimido.

 O golpe é contra o povo e contra a Nação. O golpe é misógino. O golpe é homofóbico. O golpe é racista. É a imposição da cultura da intolerância, do preconceito, da violência. Peço às brasileiras e aos brasileiros que me ouçam.”. Os brasileiros não obedeceram.

Muita coisa piorou daquele 31/08 para cá. Aquilo era só o início de algo muito ruim. A pedalada fiscal começava a escancarar nossa decadência. Há esperança? Volto com a dona do dia. Ou no meu caso, a segunda dona do dia. O 31/08 será sempre do meu pai. O 24/08 sempre da minha mãe. Mas Dilma é a segunda pessoa em que pensarei neste 31/08, cinco anos depois do fim do início. Ou do início do fim.

“Neste momento, não direi adeus a vocês. Tenho certeza de que posso dizer “até daqui a pouco”.

Encerro compartilhando com vocês um belíssimo alento do poeta russo Maiakovski:

"Não estamos alegres, é certo,

Mas também por que razão haveríamos de ficar tristes?

O mar da história é agitado

As ameaças e as guerras, haveremos de atravessá-las,

Rompê-las ao meio,

Cortando-as como uma quilha corta."

Um carinhoso abraço a todo povo brasileiro, que compartilha comigo a crença na democracia e o sonho da justiça."


segunda-feira, 9 de agosto de 2021

O Brasil de Janaína e o Brasil de Júlio

 




Não é nada inesperada a cruzada de Janaína Paschoal contra o Padre Júlio Lancellotti. Também não é inédita esta nova frente que os combatentes do impeachment estão montando contra o padre que ousa dar comida para moradores de rua. Arthur Mamãe Falei, candidato do MBL à prefeitura de SP, iniciou campanhas contra o padre e suas doações em tentativa de alavancar sua candidatura em 2020. Deu até que certo, uma vez que sua campanha debiloide alcançou o surpreendente valor de 10% do votos na maior cidade do país.

Não é de agora que o Brasil de Janaina se incomoda com o país de padre Júlio. Não é à toa que o Brasil de Janaína acha que o pior momento da história do país foram os anos 2000, momento em que o Brasil conseguiu sair do mapa da fome. Não é à toa que o grupo político que liderou este processo é odiado pelo Brasil de Janaína. Eles até podem fingir que se incomodavam por causa da corrupção, mas é balela. O incômodo sempre foi outro.

O Brasil de Janaína não se preocupa com pessoas, mas sim com lugares. Está preocupado com a “valorização” dos imóveis e a existência daquelas pessoas atrapalha. Todo o argumento do Brasil de Janaína é que é necessário tirar aquelas pessoas da Cracolândia. Para ela, é assim que o problema será resolvido. O sumiço das pessoas. Em 2017, o então prefeito recém-empossado de SP, João Doria Jr., aliado de Janaína, liderou uma ação que tocou o terror na Cracolândia. Bomba e tiro para todo lado. Doria anunciou no mesmo dia que a “Cracolândia havia acabado”. Não acabou. Aumentou. Se espalhou. E aumentou porque a vida é uma merda. O país está uma merda. O crack é um sintoma. Assim como o álcool, os antidepressivos e todo tipo de droga lícita ou ilícita. É necessário ter alguma sensibilidade para notar isto. É necessário saber que o problema a ser solucionado na Cracolândia é o das pessoas e não o do lugar. É preciso ainda mais sensibilidade para saber que a solução para estas pessoas requer paciência, tempo e entendimento. Que a solução é coletiva. Esta sensibilidade não existe no Brasil de Janaína.

O Brasil de Janaína usa todo tipo de argumento fajuto para atacar o Brasil de Júlio. Algumas vezes o acusam de populismo, palavra que eles usam para reclamar quando alguém é humano demais. Se dar comida para miserável é populismo, viva o populismo. O Bolsa-Família era populista. O auxilio emergencial era populista. Defender direito trabalhista é populismo. Aparentemente o que não é populista é morrer de fome. Sejamos populistas, ora! Outras vezes o acusam de explorador. Explorador da miséria. Janaína, a advogada medíocre que se tornou a deputada estadual mais votada da história. Mamãe Falei, o youtuber fomentador do ódio que se tornou colega de Janaína na Assembleia Paulista. João Doria Jr., o apresentador fracassado que se tornou prefeito e governador prometendo pagar advogado para policial que matasse em serviço. Todos eles acusam ou acusaram Padre Júlio em algum momento de explorar a miséria ao distribuir comida para famintos. Janaína, Mamãe Falei e Doria são os verdadeiros exploradores da miséria. Da miséria de humanidade. Estavam juntos na mentira de 2016. Estavam juntos no horror de 2018. Partilham a mesma visão de mundo.

O que mais incomoda o Brasil de Janaína é que eles achavam que a guerra estava ganha em 2018. Eles haviam em 2015 e 2016 obtido muito sucesso no processo de destruição do Brasil de Luiz, que de certa forma parecia com o conceito de país de Júlio. Mas o Brasil de Júlio recusa à rendição. Não importa o que eles façam, Júlio estará sempre lá. Como estará Luiz. O Brasil dos anos 2000 está vivo. Nos jovens que se tornaram os primeiros da família a obterem diploma de curso superior. Nos milhões que saíram da miséria. Nos cursinhos populares, nas associações de bairro, nos movimentos sociais. Naqueles que sabem que é possível. Que mesmo olhando para esta merda toda sabem que é possível.

O Brasil de Janaína é incapaz de construir. Só sabe demolir. Ver alguém como Júlio incomoda porque ele é a mostra que outro jeito de viver é possível. Assim como Luiz. A lembrança que não se apaga. Enquanto critica o padre que alimenta famintos, Janaína se agarra a seu Jesus de madeira. Se o Jesus de Janaína é o Jesus imóvel, o Jesus de Júlio é o Jesus do dia a dia. O Jesus que acolhe e reparte o pão. O Brasil de Júlio escancara a mediocridade do Brasil de Janaína. E isto ela não tolera. O Brasil de Janaína tolera um genocídio. Tolera o racismo, a homofobia, o machismo. Tolera a tortura. Tolera a violência contra os mais fracos. Tolera o intolerável. Só não tolera “pedalada fiscal”. E o pão repartido. Janaína conduziu o país ao abismo. Não percebe isto porque não considera isto que vivemos agora o abismo. Este é seu paraíso tosco. Júlio é seu obstáculo. Viva Júlio.

 

Ajude o trabalho da Paróquia de São Miguel Arcanjo (Padre Júlio Lancellotti).

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sexta-feira, 6 de agosto de 2021

O fim dos Correios

 



A privatização dos Correios é uma nova etapa do processo de precarização do trabalho que o Brasil vem passando na últimas décadas e que se acelerou a partir de 2016. A sociedade brasileira, e nisto incluo boa parte dela, acostumou-se com a ideia de que precarizar é modernizar e que direitos trabalhistas e impostos são a causa da nossa ausência de competitividade. Transformamos empresas públicas e seus funcionários em inimigos a serem combatidos. Em uma terra que aposta na miséria, ter direito se tornou privilégio.

Normalizamos a transformação de trabalhadores em empresas. Achamos normal que tenhamos um CNPJ e não mais uma carteira de trabalho. O trabalhador nestas condições não se enxerga mais como trabalhador, e sim como um empresário que não considera seus companheiros de trabalho como colegas, e sim como concorrentes. Este “empresário” fornece um preço menor ao seu cliente, pois enfrenta forte concorrência de ex-colegas e paga menos impostos. Trabalhar mais para ganhar menos, eis o caminho escolhido pelo país que busca este tipo tosco de eficiência. Os sindicatos, que garantiam algum tipo de coletividade aos interesses do trabalhador, foram em geral destruídos. O ódio a este coletivo foi por anos plantado pela elite nos trabalhadores, acostumados cada vez mais a ideia do cada um por si.

A elite brasileira foi muito bem-sucedida na forma como vendeu a precarização do trabalho como modernidade. A classe média, sem perceber que a hora dela perder a segurança do trabalho formal também vai chegar, aderiu em peso às benesses desta precarização. Uber, Rappi e todas estas empresas controladas por investidores do mercado financeiro que enriquecem pagando migalhas a jovens desesperados e sem perspectivas. Se a comida chegar fria, é nota ruim para o jovem desesperado, que precisará trabalhar mais horas para recuperar o seu prestígio no aplicativo dos jovens investidores. A classe média gosta de punir. Por que não fazer isto com os Correios, afinal? Mais “oportunidades” para estes jovens desesperados, que agora poderão entregar cartas a algo do tipo R$ 0,10 a unidade e serem julgados pelos clientes de classe média com carinhas positivas ou negativas.

Assim como acontecia com os taxistas, os Correios possibilitavam (triste já pensar nisto no passado) uma vida decente a seus funcionários. Todo o formato de empresa pública foi pensado deste jeito, aliás. O funcionário público tem direitos e este é o principal motivo do ódio que a elite empresarial tem por eles. Cada direito é um entrave na melhoria do lucro para o setor privado. Os funcionários dos Correios tinham um salário que possibilitava um estilo de vida saudável. Assim como os taxistas, aliás. Mas a classe média foi convencida de que ela não tem que sustentar isto. Bom mesmo é pagar metade do preço para pegar o Uber, ganhar uma balinha e dar nota num aplicativo.

A parte todas as maluquices do governo federal e a sandice de uma parte da sociedade que colocou um psicopata paranoico no poder, duas foram as causas do enorme fracasso do Brasil no combate à pandemia. O primeiro foi precarização do trabalho. Todo nosso serviço de proteção social está articulado ao trabalho formal e mais da metade da população está na informalidade. Não enxergamos isto como problema, pelo contrário, realizamos uma Reforma Trabalhista para incentivar esta informalidade. Num momento em que precisávamos que todos ficassem em casa, esta parcela gigantesca da população não tinha o que fazer. O governo federal, após boicotar todas as medidas de distanciamento, aprovou com atraso um auxílio emergencial, na maioria das vezes incapaz de servir ao atendimento deste trabalhador desamparado. Uma parcela das pessoas não ficou em casa simplesmente porque não podia, a bomba preparada por anos de descaso explodiu (esta foi uma das bombas, apenas). E não, não há comparação entre esta galera e aquele bando de playboy filho da puta fazendo festa, viajando para a puta que pariu e postando foto na porra do Instagram. O trabalhador desamparado que não pôde ficar em casa é uma vítima e merece todo respeito. Quem foi para a festa tem que se foder. A segunda onda de Covid coincidiu com o momento em que o governo federal suspendeu o pagamento do auxílio em janeiro e com a primeira tentativa de abertura das escolas. O segundo motivo é o individualismo. Estamos tão acostumados com a ideia de fazer o melhor para nós sem pensar no coletivo que não conseguimos convencer quase ninguém a ficar em casa com o argumento de que isto era perigoso para os outros. Pare para pensar, se todo mundo ficasse 14 dias em casa, a pandemia acabaria. 14 dias. Mas “não tem como”. E nesta de não ter como estamos nesta merda há um ano e meio. Cada um correndo atrás do seu.

Privatizar não é um verbo intransitivo. As pessoas se acostumaram a serem favoráveis ou contrárias a privatizações sem dizer do quê. Para dar um exemplo, aqui em SP o impacto social da privatização do Anhembi é bem diferente do impacto da privatização do Parque do Ibirapuera. E poucas privatizações terão impacto social tão negativo quanto a dos Correios. Milhares de funcionários terão suas vidas impactadas, perdendo a segurança do trabalho e ficando a mercê dos interesses de investidores financeiros que se mostram cada vez mais dispostos a espremer com agressividade o sangue e o suor da juventude pobre. Urubus. Mais do que isto, boa parte das cidades pequenos do país perderão sua porta de contato com o mundo exterior. Sim, é isto que as agências de Correios representam em boa parte dos pequenos municípios e isto será perdido.

A classe média comemora. Tornamo-nos mais “produtivos e competitivos” com a noite de ontem. Salários menores, menos custos, mais lucro, mais “investimento”. Estamos nesta loucura há algumas décadas, mas nos últimos cinco anos tratamos a aceleração deste processo como prioridade. No entanto, a vida só piora. É só piora por motivos óbvios, muito óbvios. Só não são óbvios para quem trata o assunto como religião. A Reforma Trabalhista não gerou empregos e crescimento. A Reforma da Previdência não gerou empregos e crescimento. A Reforma Tributária também não vai gerar. Por mais fé que se tenha nestas sandices. Basta olhar pela janela para ver que está dando merda. Se você mora em SP, vá na Praça da Sé e veja o que está acontecendo. Coloque uma máscara, saia e veja.

A classe média comemora e compra. Não vai mais nem no mercado, de tão barato que se tornou mandar um jovem pobre ir fazer suas compras. Não vê a hora de poder fazer isto com suas cartas. Mandar mercadoria por portador já é mais barato do que pelos Correios, afinal. Ela não percebe, ou simplesmente não liga, que o portador é mais barato porque recebe uma miséria. Mas acho que se pá não percebe mesmo. Quanto mais compra, mais ansiosa fica esta classe média. Mais trancada, mais paranoica, mais medrosa. Mais gasta em terapia e antidepressivo. Mais medo tem do coletivo. Mais se isola. E não é o isolamento social, ainda necessário no combate à pandemia. É um isolamento que a torna incapaz de enxergar e sentir o outro. A classe média não percebe duas coisas. A primeira é que a hora dela vai chegar. Engenheiros e contadores, preparem-se. A segunda é que a vida só piorará. Você pode até ficar alegre. A alegria é algo individual. Mas a felicidade é coletiva. E não há como uma sociedade prosperar quando uma parcela dela achar que está se dando bem enquanto a outra esta se fodendo. Porque, como diria Brecht, com outras palavras, o ruim de não ligar quando alguém se fode é que quando é sua vez de se foder ninguém vai estar nem aí.