terça-feira, 29 de setembro de 2015

A transformação de Marta Suplicy e uma decepção política



Poucas pessoas têm a importância para a pauta progressista em SP nos últimos 30 anos de Marta Suplicy. Psicóloga e sexóloga, tornou-se famosa graças a um quadro revolucionário no programa TV Mulher da Rede Globo nos anos 80, em que falava sobre sexo do ponto de vista feminino. Num país retrógrado, ainda vivendo uma ditadura militar, poucas coisas foram tão progressistas quanto a imagem de uma mulher independente e confiante falando sobre sexo na televisão, sem culpa e de forma natural.
A entrada na política veio graças ao então marido, Eduardo Suplicy. Ganhou importância no PT e recebeu a possibilidade de concorrer ao governo do estado em 1998. De forma surpreendente, terminou na terceira colocação, ficando muito perto, mas muito perto mesmo, de tirar Mário Covas do segundo turno, onde este derrotaria Paulo Maluf. Aquela eleição serviu de trampolim para sua primeira e única vitória numa eleição para o Executivo e Marta foi eleita prefeita de São Paulo em 2000. Adotando uma postura de defesa das minorias e dos marginalizados, ela derrotou o mesmo Paulo Maluf e substitui Celso Pitta, que deixou a cidade quebrada.
Seu mandato foi em certa medida revolucionário. Fernando Haddad não poderia realizar as transformações que tem realizado no transporte público da cidade se não fosse o trabalho de Marta no começo do século. Ela criou o bilhete único e investiu como nenhum outro prefeito antes de Haddad no conceito de corredores de ônibus. Baseada no conceito do Cieps de Brizola, Marta criou o mais importante projeto de educação de base do Brasil neste século, o CEU, em que implantou na periferia da cidade super-escolas que levavam não apenas educação da forma mais “convencional”, mas também lazer, cultura e esporte. Não à toa é amada, de forma justa, nas regiões mais pobres da cidade. O PT deve a ela boa parte dos votos que recebe por lá até hoje. Em 2004, porém, foi derrotada por José Serra na eleição em que tentava um segundo mandato. Foi uma eleição tensa, em que a petista definitivamente não contou com a boa vontade da mídia, mais ou menos a mesma coisa que acontece com Fernando Haddad hoje. Foi estigmatizada com o termo “Martaxa” ao tentar criar um imposto sobre o lixo que possibilitaria um aumento de arrecadação numa cidade que vinha de um processo de destruição de finanças pela gestão anterior. Mas foi ali, com aquela derrota, que Marta começou a mudar sua postura e a colocar seus interesses pessoais à frente de interesses coletivos. Um pequeno e quase imperceptível gesto mostra isso. Marta não estava na cidade para transferir o poder a seu sucessor. Tinha ido passar o réveillon em Paris. Nada contra aproveitar o réveillon fora da cidade, porém uma das obrigações do seu cargo é esta transmissão de poder ao sucessor. É um símbolo da democracia e deve estar acima de qualquer chateação pessoal.
Quatro anos depois, Marta seguia como nome mais forte do PT na cidade e conseguiu mais uma vez a oportunidade de disputar a prefeitura de SP. Num segundo turno contra o então prefeito Gilberto Kassab, Marta protagonizou um dos momentos mais tristes da história da política brasileira, rivalizando com Collor levando a ex-namorada de Lula à TV em 1989. A campanha de Marta, histórica e incansável defensora dos direitos civis dos homossexuais no país, levou ao ar na última semana de campanha uma propaganda de televisão que deixava implícita a mensagem de que Kassab poderia ser homossexual (É casado? Tem filhos?). Aquilo pode ter ido ao ar sem que Marta soubesse, porém a então petista não pediu desculpas em nenhum momento. Ela perdia assim sua segunda eleição seguida para a prefeitura, dessa vez sem honra nenhuma. Era o segundo sinal de que algo estava se perdendo dentro dela.
Em 2010, Marta disputou venceu a disputa para o Senado, não assumindo seu cargo no ano seguinte ao receber da presidenta Dilma um convite para ser Ministra da Cultura. Ela já havia sido ministra do Turismo no governo Lula, em que se notabilizou pela infeliz frase “relaxa e goza” durante um período de caos aéreo. A frase foi apenas um momento de infelicidade, mas foi supervalorizada pela mídia e pelos setores descontentes com a figura ainda progressista que Marta representava. Em 2012, o ex-presidente Lula, notando a imagem desgastada de Marta em alguns setores da população paulistana, convenceu o partido a lançar uma figura nova, Fernando Haddad, para a disputa da prefeitura. A ex-prefeita ficou imensamente descontente, mas aceitou e até ajudou na eleição do colega de partido. Em constantes choques com a presidente Dilma, iniciou uma campanha interna para lançar Lula como candidato a presidente em 2014, ficando isolada na legenda após esta derrota. Sabendo que não tinha possibilidade alguma de conseguir a vaga para a disputa da prefeitura em 2016 pela legenda petista, resolveu chutar o balde.
Marta tornou-se uma grande crítica do único prefeito a ter uma gestão tão transformadora quanto ela. Mais do que isso, usando o argumento de que “não aguenta mais a corrupção”, passou a criticar o governo federal do qual foi ministra em 2 gestões por quase 7 anos e se filiou ao partido mais corrupto do Brasil, o PMDB. Em nome de uma ambição pessoal, Marta se esforça para jogar fora uma vida pública voltada para as transformações sociais e para o progresso, ligando-se a um partido que representa o que há de mais retrógrado na sociedade brasileira. Nada é mais decepcionante para uma pessoa que admira a história de Marta do que vê-la ao lado de Eduardo Cunha, homem que representa o oposto de tudo que ela se notabilizou por defender. Mais do que isso, ao entrar no PMDB dizendo que vai “combater a corrupção” tudo que a ex-prefeita conseguiu foi se tornar motivo de chacota.
O processo de transformação de Marta, motivado a meu ver por um ego pessoal gigantesco, chegou dessa forma ao seu fim. Para ter a tão sonhada candidatura própria, Marta jogou fora sua história e prejudicará a candidatura da pessoa que hoje mais representa o modernismo na cidade, Fernando Haddad. Marta tem e sempre terá seus méritos, mas hoje é um símbolo de como a ambição pessoal pode corroer e se sobrepor às ideologias de uma pessoa. Por enquanto, tudo que ela conseguiu foi decepcionar antigos eleitores.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

11 fatos sobre 11 anos de tênis masculino



Circula essa semana na internet uma notícia interessante, que sinceramente não sei se é verdadeira, mas é interessante. Um espanhol de nome Jesus Aparício, grande fã de Roger Federer, teria entrado em coma no final de 2004 e acordado apenas em 27 de agosto deste ano. Em um dado momento se lembrou de perguntar por Federer, querendo saber como tinha sido a carreira do suíço. Ficou muito surpreso ao descobrir que Federer não apenas ainda jogava como era número 2 do mundo. Jesus teria assistido à final do US Open entre o suíço e Novak Djokovic e teria ficado impressionado com a qualidade do jogo não só do suíço, mas como também do sérvio. Verdadeira ou não, você pode ler esta história no link a seguir http://bolamarela.pt/espanhol-acorda-do-coma-apos-11-anos-e-surpreende-se-com-a-longevidade-do-idolo-federer/ e, graças a essa história, fiz a lista dos 11 fatos ou momentos mais importantes do tênis masculino nos últimos 11 anos, que a meu ver foram os anos de ouro deste esporte graças aos 3 da foto acima. 

1 ) Apenas três tenistas foram número 1 do mundo neste período: Roger Federer, Novak Djokovic e Rafael Nadal. Para se ter uma ideia do que isto significa em domínio, apenas na temporada 1999 houve 4 tenistas que alcançaram este posto: Pete Sampras, Yevgeny Kafelnikov, Patrick Rafter e Andre Agassi.

2 ) Foram disputados 44 Grand Slams neste período, com oito vencedores diferentes: Nadal (14), Federer (13), Djokovic (10), Andy Murray (2), Stan Wawrinka (2), Juan Martin Del Potro (1), Marat Safin (1) e Marin Cilic (1). Para  se ter uma ideia do que isto significa em domínio, entre as temporadas 2002 e 2003 houve oito Grand Slams com oito vencedores diferentes: Thomas Johansson, Albert Costa, Lleyton Hewitt, Sampras, Agassi, Juan Carlos Ferrero, Federer e Andy Roddick.

3 ) Dos 44 Grand Slams do período, apenas 2 vezes não tivemos na final Federer, Nadal ou Djokovic: Aberto da Austrália de 2005, com Safin e Hewitt, e US Open de 2014, com Cilic e Kei Nishikori.


4 ) Roger Federer x Rafael Nadal é o único confronto da era aberta entre dois tenistas que já venceram os 4 Grand Slams. Novak Djokovic já venceu os dois ao menos uma vez em cada um dos quatro Slams.

5 ) O tenista que mais ameaçou os 3 foi Andy Murray. Escocês, tornou-se em 2013 o primeiro britânico a vencer Wimbledon na era aberta. Seu título foi motivo para grande festa, com a presença do príncipe e do primeiro-ministro em quadra. Um ano depois, porém, o amor acabou, quando Andy declarou apoio à independência da Escócia durante o plebiscito. Os ingleses estão meio putos com ele até hoje.


6 ) Rafael Nadal tem vantagem no confronto direto contra todos os tenistas que enfrentou ao menos 2 vezes, com exceção do alemão Dustin Brown. Está 2 x 0. *


7 ) Em 2006 aconteceu aquele que julgo o jogo de tênis mais bizarro da história. À época ninguém imaginava que Rafael Nadal, campeão de Roland Garros, pudesse um dia ganhar Wimbledon e alguém teve a brilhante ideia de colocá-lo para jogar contra Roger Federer, campeão na grama inglesa, numa quadra metade de saibro e metade de grama. Ofereceram um caminhão de dinheiro para os dois que, lógico, aceitaram. O que se viu foi um jogo esquisitíssimo, com os dois tenistas tendo que trocar de calçado a cada virada de lado. No final, Nadal ganhou.


8 ) Em 2012 o Masters 1000 de Madri foi realizado em saibro azul. A ideia da organização era de criar um certo marketing para o torneio, mas foi um fracasso. Grande parte dos tenistas reclamou que mal conseguia ficar de pé naquilo. Roger Federer foi o campeão e o saibro azul foi abolido.


9 ) Ainda no Masters 1000 de Madri, mas um ano antes, os 4 semifinalistas foram: Novak Djokovic, Rafael Nadal, Roger Federer e... Thomaz Belucci !!!


10 ) Os EUA não ganham um Grand Slam há 12 anos. É o maior jejum da história do país mais dominantes do tênis masculino.

E finalmente, o fato que julgo ser o mais importante destes 11 anos de tênis:

11) O dominicano Victor Estrella Burgos venceu seu primeiro jogo de Grand Slam no US Open de 2014 aos 33 anos, tornando-se o jogador mais velho a vencer sua primeira partida de Grand Slam na história. * Um ano depois, Burgos venceria aos 34 anos o ATP de Quito, tornando-se o tenista mais velho a vencer seu primeiro título de ATP. Vida longa a Estrella Brugos !

terça-feira, 8 de setembro de 2015

A BABAQUIZAÇÃO DO FUTEBOL


Como sempre eu venho aqui escrever textos mais fúteis que o meu amigo João Gabriel, mas os maiores exemplos da babaquice humana podem vir das futilidades.

Nesta última semana parte da torcida do Corinthians iniciou um processo de excomunhão do jornalista Milton Neves, conhecido por ironizar e atacar o Corinthians em seus programas de TV e rádio. A torcida pôs em prática um boicote ao jornalista e seus anunciantes fazendo até com que eles se manifestem publicamente.

A marca de sapatos Rafarillo diz em comunicado que também já apoiou os jornalista Neto e Ronaldo Giovanelli, notoriamente corinthianos, porém enviará a reclamação para o departamento de Marketing para análise. Apenas essa resposta da empresa mostra que o futebol, por incrível que pareça, ainda não atingiu o seu maior nível de idiotice.
Milton Neves é, antes mesmo que jornalista, um comunicador dos bons. Diria que ele é o Silvio Santos do esporte. Muitos entendem que o futebol é religião, outros entendem que é entretenimento, e eu fico no meio do caminho. Não assisto jogos do meu time como se fosse um filme ou uma novela, pois aquilo me move, me fascina, me traz tristeza e alegria, me faz gritar, xingar, perder o senso de justiça e da razão. Por outro lado, não posso colocar o futebol acima das milhares de coisas mais importantes na vida, como a liberdade.

Gosto de ver o Milton Neves falando asneiras que nem ele mesmo acredita. Gosto de ver o antagonismo nos debates esportivos. O que a torcida quer? Que todos os jornalistas defendam o Corinthians? Que sem graça, literalmente. Pense você se não é legal ver o Neto dizendo que o Corinthians deveria jogar a Champions League pouco antes de uma eliminação para o Guarani do Paraguai? E a Renata Fan chorando logo após o Grêmio golear o seu Internacional por 5 gols? Pois é, também é legal ver o Milton Neves levando caixão e apito do Corinthians para o estúdio.


Acordem! Boicotar um jornalista porque ele brinca com futebol é a babaquização máxima, além de ser um péssimo exemplo para os nossos filhos. Isso é uma espécie clara de opressão e intolerância. O trabalho do Milton Neves é esse, ele vive disso. Se ele irrita 30 milhões de corinthianos, não se esqueçam que existem mais 174 milhões de pessoas que se divertem. Pois é, existem outras pessoas além de corinthianos, você acredita?

Há quem diga que o torcedor também tem a sua liberdade de expressão e tem o direito de boicotar quem ele quiser. Isso é fato, é uma verdade. Eu não questiono o direito, mas os motivos. Quando uma grande massa se rebela contra uma injustiça ou um contra um ditador é bonito, inteligente e louvável, mas quando uma grande massa se volta contra um jornalista que faz piada com um determinado time isso se torna feio, burro e desprezível. Isso é, mais uma vez o retrato de uma sociedade que não aceita perder e ser contrariada, uma sociedade de mimados que sempre quer vitória e perde a glória de chorar.
O ponto mais preocupante dessa atitude é a censura imposta por um grande grupo e com motivos pra lá de questionáveis. Imaginemos que essa campanha dê certo e os patrocinadores abandonem Milton Neves, e que sem dinheiro de publicidade a Bandeirantes o abandone também, todos os jornalistas “antis” estão fadados ao desemprego? Que espécie de ditadura é essa? É o início do plano para que todos os brasileiros sejam corinthianos? Pelo jeito descobrimos que Pink e Cérebro são alvinegros.
O problema aqui não é se o Milton Neves vai perder o emprego e passar necessidades, ele é rico. O problema é como podemos moldar o comportamento da mídia nos utilizando do nosso poder de compra.

Pior que tudo isso acima, há a possibilidade de que Milton Neves comece a só falar bem do Corinthians para manter sua audiência, patrocino e emprego. Viveremos em um mundo de mais mentiras e seremos como aquelas celebridades as quais pessoas paparicam mas não suportam. A torcida do Corinthians, como a do Flamengo, tem muito poder e pode mudar muitas coisas, não usemos isso para o mal e para a repressão. Viva a diversidade de pensamento. Viva ao humor no futebol. Isso não é política, isso não é religião (não que, em muitas vezes, não utilizemos o fanatismo e a irracionalidade nesse 2 também).

Corinthians e Palmeiras deram o exemplo nos últimos 15 dias quando um parabenizou o outro pelo aniversário e enalteceu a maior rivalidade do estado. Falta agora os torcedores reconhecerem no adversário o combustível que move toda essa engrenagem. Se o futebol te move, te fascina, te traz tristeza e alegria, te faz gritar, xingar, perder o senso de justiça e da razão, é justamente por causa do seu rival. Sem rivais, sem derrotas e sem decepções não há motivação para evoluir. Aceite as derrotas, curta suas vitórias, brinque com os seus amigos, só não tente unir uma nação de torcedores-censores para destruir o futebol e a liberdade. Aprenda a perder, menino!


Texto de um corinthiano, com muito amor, até o fim.


Que horas ela volta, transformações sociais e um pequeno obituário do PT


Este texto contém informações sobre o filme. Se você não o viu, mas pretende ver e não quer saber o que acontece, não o leia.
Neste domingo venci minha forte resistência à Regina Casé e fui assistir ao filme "Que horas ela volta?", estrelado por ela, em cartaz nos cinemas e que vem recebendo excelentes críticas. Embora o foco do blog seja falar mal, não abordarei aqui minha rejeição à Regina, e sim falarei sobre o filme, que é excepcional. Valeu muito a pena vencer minha teimosia. O filme é a melhor crônica sobre as transformações sociais dos últimos 10 anos e expõe de forma brilhante os choques entre e a elite e a nova classe média através de uma das relações que mais a representa, a que ocorre entre patrão e empregada doméstica.
Enxergo nesta relação um dos grandes resquícios do período escravista em nosso país. Val, personagem interpretado de forma estupenda por Regina Casé, é a típica empregada doméstica de uma família abastada, sendo considerada por esta como alguém "da família", ao mesmo tempo em que precisa usar uniforme, não pode se sentar à mesa com os patrões, nem chegar perto da piscina, a não ser para limpá-la. Vive num quarto de empregada no melhor estilo senzala moderna, pequeno e sem ventilação. A casa possui um gigantesco e confortável quarto de hóspedes que está sempre vazio, enquanto Val, a pessoa "da família", vive em seu muquifo escondido e apertado, sem que isto cause nenhum tipo de desconforto aos patrões ou à doméstica. Uma relação de opressão só é possível de ocorrer de forma "perfeita" quando opressor e oprimido se reconheçam e não se sintam incomodados com os papéis que representam.
A situação de conforto acaba quando Jéssica, filha de Val, decide prestar vestibular em São Paulo, levando a mãe a pedir aos patrões que sua filha fique na casa deles por um tempo. Val deixou a filha ainda muito criança no Nordeste para tentar uma vida melhor em São Paulo, enviando mensalmente dinheiro para a criação dela. Elas não se vêem há 10 anos e a filha mantêm com a mãe um um relacionamento distante, ao contrário do que ocorre entre Val e Fabinho, filho dos patrões, que tem um carinho pela empregada maior do que o que possui pela mãe.
O filme é repleto de cenas antológicas e a primeira delas, a meu ver, é quando Val compra um presente de aniversário para a patroa, que finge gostar e logo em seguida o devolve para a empregada, para que esta o guarde. A relação funcionário x patrão no Brasil é, a meu ver, e não falando apenas da relação doméstica, muito marcada pela sensação de gratidão, não do empregador pelo empregado, mas sim o inverso. O funcionário tende a ser muito grato à pessoa que paga seu salário, quase como se o patrão estivesse fazendo um favor. É o caso clássico do patrão que doa suas roupas velhas para o filho da doméstica e em troca espera receber uma gratidão eterna.
A chegada de Jéssica causa imediatamente um estranhamento a todos os habitantes da casa, inclusive a Val. Os patrões ficam boquiabertos ao saber que Jéssica prestará o mesmo vestibular que Fabinho, reagindo quase que por inércia numa tentativa de desacreditá-la e diminuir sua chance, tomando como base a provável pouca qualidade do ensino obtido pela menina no Nordeste. Mas Jéssica é confiante e ao demonstrar esta confiança é vista especialmente pela casa como alguém arrogante, inclusive por Val? Onde já se viu filha de empregada ter nariz em pé? Vejo essa situação de "arrogância" na relação que existe hoje entre patrões e pedreiros. Quantas vezes não vi pessoas reclamando do valor cobrado por estes e mais, achando um absurdo quando o pedreiro recusa um trabalho por um salário. Poucas coisas incomodam mais um patrão do que um funcionário audacioso que ousa agir dessa forma. No filme, a chegada de Jéssica torna Val visível e isso incomoda a todos, inclusive à personagem principal.
O filme segue com esta relação tensa entre a casa e Jéssica. Após uma pequena e desnecessária história de amor não realizado entre o patrão e Jéssica, que deveria ser cortada do filme porque é uma perda de tempo, a tensão explode no momento em que Fabinho joga Jéssica na piscina, causando uma revolta tanto na patroa quanto em Val. Como já dito, para que uma relação deste tipo exista, é fundamental que opressor e oprimido a vejam com naturalidade e ao entrar na piscina a filha da empregada quebra esta relação. A piscina, símbolo de status e conforto, não é lugar de empregado, assim pensam opressor e oprimido. Após outros entreveros, Jéssica deixa a casa e assim faz Val começar a abrir os olhos para sua própria situação. O estopim para a abertura dos olhos de Val é o resultado de Jéssica e Fabinho vestibular. Como já esperado em todo o filme, não nos surpreendemos quando a esforçada Jéssica é aprovada na primeira fase, enquanto o playboy Fabinho fracassa. Val está no quarto do menino o acalmando junto à frustrada patroa quando recebe a ligação da filha informando o seu sucesso. A patroa e Fabinho ficam incrédulos e são simplesmente incapazes de parabenizar a empregada "da família" pelo sucesso da filha. Na mesma noite, Val entra pela primeira e última vez, num momento que representa um chega da empregada para a relação de invisibilidade que viver por todos aqueles anos. No dia seguinte Val pede demissão e vai morar com a filha. As transformações no país, especialmente no anos Lula, atingiram principalmente pessoas invisíveis como Val. Nos grandes centros urbanos, ninguém entende como a maioria da população brasileira foi capaz de votar no PT na eleição do ano passado, quando os casos de corrupção já eram claros e a crise econômica já se aproximava. Creditam o sucesso do PT no Nordeste ao Bolsa-Família, quando esquecem ou não sabem que um salário mínimo em 2002 comprava meia cesta básica e hoje compra 3. Por que não sabem? Porque isto atinge apenas pessoas invisíveis e que não interessam à mídia. Por isso não vemos reportagens sobre o efeito do salário mínimo na vida de boa parcela da população, mas sofremos uma enxurrada de notícias negativas sobre o aumento do dólar.
Muitas pessoas em manifestações criticam o estado da educação no país. Sempre digo a estas pessoas que conversem com os atuais ou antigos jovens aprendizes das empresas em que trabalham e vejam a quantidade de jovens de origem pobre fazendo faculdade graças ao Prouni. As universidades particulares são em grande número ruins, isto é claro, mas pergunte a uma mãe como Val o que significa ter um filho com diploma superior e o sonho que isto representa em sua vida. Mais um exemplo de como a mudança ocorreu com pessoas "invisíveis". Tendemos a olhar o que ocorre com nossos superiores, a conversar com eles quando queremos saber a situação do país, quase nunca com os que estão hierarquicamente abaixo de nós. Com estes as pessoas não querem conversa, querem apenas dar conselhos.
O governo do PT acabou e sucumbiu principalmente à corrupção. O partido que se julgava diferente e dono da moral e da ética no país hoje tem como único argumento neste campo dizer que faz o mesmo que todos fizeram. Não foram eleitos para isto e vão pagar caro pelos seus erros, mesmo que sua oposição esteja longe de ser exemplo neste assunto. Pelo contrário. Quando, porém, o PT deixar o poder em 2018, se olharmos e compararmos o Brasil de 2018 com o Brasil de 2002, veremos um país melhor. Isto é fato.
Um outro grande erro do PT foi não reconhecer o mérito das coisas boas feitas pelo governo anterior. Espero que o governo que o suceder não cometa o mesmo erro e siga este processo de mudanças. Nosso país precisa acabar urgentemente com os resquícios da escravidão nas relações trabalhistas e com a invisibilidade das classes mais pobres. O PT começou este processo e historicamente terá este mérito.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Cameron, os refugiados e a opinião pública britânica



Uma semana após comparar os refugiados sírios a um enxame de insetos, o premiê britânico anunciou ontem que o Reino Unido fará parte do programa de recepção de refugiados da União Europeia. O número previsto é de aproximadamente 5.000 refugiados, ainda bem longe dos 400.000 refugiados que a Alemanha receberá apenas em 2015, e foi uma resposta à crescente pressão da opinião pública britânica que chegou ao ápice ontem, com a divulgação da impactante foto do corpo de uma criança refugiada em uma praia turca.
Cameron foi eleito e reeleito na Grã-Bretanha tendo como base uma política anti-imigrantes e contrária à União Europeia. Após a entrada de Romênia e Bulgária na União, por exemplo, o premiê iniciou uma campanha de publicidade negativa do Reino Unido nestes dois países. Placas com frases do tipo “Não venha para Londres, aqui só chove e as pessoas são antipáticas” foram espalhadas nestes dois países, placas estas patrocinadas pelo governo de Londres. A resposta do governo romeno foi brilhante. A Romênia comprou publicidade em Londres e espalhou placas do tipo “Na Inglaterra só chove e as pessoas são antipáticas? Pois então venham conhecer a Romênia, aqui o tempo é bonito e as pessoas te tratarão bem !”.
Como promessa de campanha, Cameron convocará até o final de 2017 um plebiscito para a saída do Reino Unido da União Europeia. Em sua opinião, a União hoje só traz custos ao contribuinte britânico. Cameron também é contra a entrada liberada para europeus de países pobres, como os habitantes do Leste Europeu. A União Europeia é possivelmente o mais importante acordo de paz hoje existente, mas isto não importa para Cameron. Ele não quer derrubar fronteiras, quer aumentá-las. A questão que importa para ele não é paz, é grana.
Poucos países têm tanta responsabilidade sobre o que ocorre hoje no mundo do que a Grã Bretanha. A questão dos refugiados africanos, por exemplo, está intimamente ligada à política colonial inglesa. Por séculos aquela região foi explorada por Londres, que levou toda a riqueza, deixando em resposta um rastro de destruição. Hoje os descendentes dos explorados correm em direção à metrópole, buscando melhores condições de vida. Cameron diz não, acredita que o Reino Unido não tem responsabilidade pelo que acontece. Não há um lugar do mundo que não tenha sofrido com o Império Britânico na história. A África foi dizimada em nome do desenvolvimento industrial inglês. A Ásia teve sua população viciada em ópio porque isto atendia aos interesses comerciais britânicos. O Paraguai foi dizimado por Brasil, Argentina e Uruguai armados pelos ingleses. Isto para citar 3 exemplos em 3 continentes distantes. Cameron deveria estudar história... Ou não, a educação na Inglaterra é muito boa, neste caso a questão é egoísmo mesmo... E má fé. Cameron e boa parte da população britânica não enxerga a responsabilidade histórica que possuem com estes povos. Ou até enxergam, simplesmente não se sentem incomodados com isso.
Para não dizer que o Reino Unido não tem interesse com nenhum tipo de refugiado, o governo britânico dá cidadania para qualquer pessoa que chegar lá disposta a investir 1 milhão de libras no seu território. Com isso, muitos russos mafiosos procurados em Moscou ou árabes milionários do petróleo são muito bem recebidos na terra da rainha.
Cameron representa hoje a ausência de humanidade em um governo. Deu uma entrevista em que se disse emocionado com a foto do menino morto. Duvido. Não há espaço para este tipo de coisa em seu governo. Ele quer apenas atender a um momento da opinião pública britânica, que muito provavelmente não está tão interessada nesta questão. Basta uma notícia de sua inútil família real para que o drama dos refugiados saia da mídia. Uma nova festa de Harry ou uma nova foto de Kate no mercado. E assim Cameron poderá se livrar do que há uma semana chamou de enxame...