quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Netanyahu, Lula e as atrocidades

 



Uma constante da história da humanidade é a atrocidade. E uma constante sobre a atrocidade é que normalmente aquele que comete a atrocidade justifica a sua atrocidade argumentando que foi vítima de uma atrocidade anterior e que a sua atrocidade serve para impedir uma atrocidade posterior.

Na Iugoslávia dos anos 1940, tínhamos sérvios mais próximos da Rússia e bósnios-croatas mais próximos da Alemanha. Quando os alemães invadiram o país, coube basicamente a bósnios e croatas a missão de realizar uma limpeza étnica na região. Conseguiram. Aproximadamente metade da população sérvia foi assassinada durante o conflito. Por uma sorte do destino, porém, o líder do movimento de libertação dos sérvios era um croata, o marechal Tito. Com sua liderança, conseguiu impedir a revanche sérvia quando a guerra acabou. Veio a paz, que durou enquanto durou Tito. Com a morte do marechal, movimentos nacionalistas croatas e bósnios floresceram e bastou uma pessoa oportunista chegar ao poder na Sérvia, Slobodan Milosevic, para que o medo se instalasse entre os sérvios. A independência de Croácia e Bósnia foi vista como uma possibilidade de repetição da atrocidade dos anos 1940. E com o medo veio a força para a realização da nova atrocidade.

Em geral aquele que comete a atrocidade se sente uma vítima enquanto a comete. A atrocidade é um ato de justiça. O Holocausto judeu. Uma enorme atrocidade. Desde a fundação de Israel, em maior ou menor força, o Holocausto é a força motriz para a realização de todas as atrocidades cometidas pelo Estado. E para que esta força funcione bem, é importante que se realize uma gradação de atrocidades. O Holocausto tem que ser considerado a atrocidade maior, pois se toda a atrocidade for menor basicamente toda a atrocidade é justificada.

E muito difícil fazer uma gradação de atrocidades. Principalmente porque a atrocidade que sofremos será para nós sempre a atrocidade maior. Aproximadamente 3.000 pessoas morreram nos ataques terroristas de 11/09/01 em Nova Iorque. Uma atrocidade. Esta atrocidade serviu como justificativa para que os americanos invadissem o Iraque, ocasionando uma guerra que gerou aproximadamente 1.000.000 de mortos. Uma atrocidade. Qual atrocidade foi maior, a que causou 3.000 de mortos ou a que causou 1.000.000 de mortos? A resposta parece óbvia, mas pergunte a um americano.

A paz é algo muito difícil, pois quase toda paz é injusta. Vamos pegar a situação entre Israel e Palestina. Imagine que amanhã se assine um acordo de paz. O que sentirá a mãe israelense que teve um filho assassinado no ataque de 07/10 do Hamas no caso do assassino de seu filho não ser punido? Sentirá uma grande injustiça. O que sentirá a mãe palestina que teve um filho assassinado pelas forças israelenses no caso do assassino do seu filho não ser punido? Sentirá uma grande injustiça. A paz exige perdão e este perdão exige uma coragem extrema. Em 1990, Nelson Mandela saiu da prisão após 27 anos decidido a fazer a paz. Para conseguir esta paz, mostrou-se disposto a não punir os muitos criminosos da era do apartheid. Um grau de injustiça enorme. Coloquemo-nos no lugar de uma pessoa que teve a vida massacrada pelo regime do apartheid e que não viu seus opressores sendo punidos pelo crime. Imagine o sentimento de injustiça. Só funcionou porque havia Mandela. Mandela era capaz de olhar no olho desta pessoa massacrada e falar “Olha, eu me fodi também. Eu passei 27 anos trancafiado numa jaula. Se eu estou sendo capaz de passar por cima disto, você também consegue”.

Nenhuma pessoa neste conflito parece menos interessada na paz do que Benjamin Netanyahu. O primeiro-ministro israelense fez sua carreira boicotando toda tentativa de acordo de paz com os palestinos. Vendendo a seus eleitores a ideia de que a criação do estado palestino é injusta para o povo israelense. Desde a atrocidade de 07/10 vem cometendo todo tipo de atrocidade possível. E tudo registrado. Está acontecendo na frente dos nossos olhos. Netanyahu já DISSE, sim, ele já DISSE que seu objetivo é tirar os palestinos daquele região e ocupá-las com israelenses. Isto está dito. Para ele é fundamental que siga existindo a gradação de atrocidades que coloca o Holocausto no topo.

Lula em nenhum momento negou ou diminuiu o Holocausto. O que ele fez foi colocar a atrocidade contra os palestinos no mesmo grau. E isto choca Netanyahu, porque esta gradação de atrocidades é fundamental na manutenção de seu ciclo de atrocidades. Uma verdadeira máquina de mentiras entrou em ação. Lula foi acusado de “negar o Holocausto”. Tornou-se pessoa non grata em Israel. Não importa que o governo brasileiro tenha desde o primeiro dia condenado o ataque do Hamas. Netanyahu precisa de submissão total. Netanyahu mente sobre a fala de Lula e a usa como distração. A distração é fundamental para que as atrocidades sigam acontecendo. 

O governo brasileiro tenta desde o dia 1 trabalhar pela paz. Não deu certo. Todas as reuniões da ONU seguem terminando 13x1. Este 1 é dos EUA, que seguem rejeitando todas as tentativas de cessar-fogo. Não sei como será se um dia ficar 14x0. O governo israelense não se mostra muito disposto a respeitar decisões da ONU. Segue achando normal que um estado adote táticas semelhantes às de um grupo terrorista.

Em 1993, Yitzhak Rabin e Yasser Arafat deram as mãos naquele que prometia ser o momento da paz na região. Rabin foi assassinado dois anos depois. Netanyahu chegaria ao poder na eleição seguinte, prometendo desfazer o acordo de paz. Conseguiu. A paz exige coragem. Coisa que Netanyahu não tem. Cresceu prometendo atrocidades. É isto que consegue entregar.