quarta-feira, 31 de agosto de 2022

O Ex-presidiário

 


O ex-presidiário passou 580 dias preso. Um pouco antes da sua prisão, foi levado à força para um depoimento sem ter se negado a ser chamado, numa tentativa de humilhação pública. Sua esposa faleceu um pouco depois. Já preso, perdeu seu irmão e seu neto. Foi impedido de acompanhar o funeral do primeiro. Foi escoltado para o funeral do segundo, onde foi impedido de conversar com boa parte das pessoas. No ano eleitoral de 2018, quando liderava as pesquisas, foi impedido de concorrer e de dar entrevistas. Ficou incomunicável. Viu o juiz que o condenou manipular este processo eleitoral e ser anunciado ministro do candidato que venceu graças à sua prisão dois dias depois da disputa. Ainda ficou quase um ano preso após esta primeira demonstração clara e pública de parcialidade. Viu se tornarem públicas mensagens mostrando este juiz combinando o processo com a acusação, e continuou preso mesmo assim. Após 580 dias, 1 ano e 215 dias, foi solto.

Para entender o que ex-presidiário passou, é necessário ter empatia. Mas quem não tem empatia nem pelos 700.000 mortos na pandemia definitivamente não terá empatia pelo ex-presidiário. Quem não desconsidera votar num cara que boicotou o processo de vacinação e que imitou gente sem ar morreu por dentro. Não é mais capaz de se colocar no lugar de outro ser humano. Tudo o que restou a esta pessoa é rancor e ódio. Ódio que não diminuiu pelo ex-presidiário conforme ele sofria. Pelo contrário, só aumentou. Uma necessidade de vê-lo sofrendo e humilhado que nunca será sanada. O ódio é assim. O eleitor do atual presidente funciona deste jeito. Quanto mais vence, mais ódio sente. Derrubar Dilma não reduziu o ódio. Eleger isto que nos governa não diminuiu o ódio. Pelo contrário, só criou um complexo de perseguição para tentar justificar a enorme incompetência deste governo bisonho.

Se aqueles que prenderam o ex-presidiário sentem cada vez mais ódio, o ex-presidiário só quer pensar no futuro. Demonstra quase indiferença a seu algoz. Tenta reconstruir um país destruído, muitas vezes com o apoio de pessoas que celebraram sua prisão. Seu vice é um deles. O ex-presidiário não tem tempo a perder com o passado e com o ex-juiz que passa o dia inteiro demonstrando sua parcialidade em redes sociais. Tudo que sobrou ao ex-juiz é tentar usar o ex-presidiário como escada. É tudo que ele e muita gente fez na vida. Odiar o ex-presidiário se tornou uma indústria lucrativa. Desumanizá-lo também. Quase uma linha de produção de ódio.

O ex-presidiário tem companhia na lista de ex-presidiários que definiram a nossa história. Nelson Mandela foi um ex-presidiário. Marthin Luther King foi um ex-presidiário. Gandhi foi um ex-presidiário. Rosa Parks foi uma ex-presidiária. A figura ícone construída pela nossa República, Tiradentes, foi um ex-presidiário. Todos estes ex-presidiários saíram maiores do que entraram no presídio. Todos foram presos em processos farsescos e as suas libertações (exceto Tiradentes, que foi executado) representaram o início do fim de injustiças históricas. Todos eles têm prisões que representam mais do que sofrimentos pessoais, representam sofrimentos coletivos.

O ex-presidiário não tem tempo para sentir ódio nem rancor. Sua mensagem é de futuro e de esperança, ao mesmo tempo em que lembra de um passado não distante em que mostramos que podemos ser melhores. Enquanto seus adversários berram, xingam e ofendem, o ex-presidiário busca a conciliação. O ex-presidiário é o que há de melhor entre nós. Que consiga reconstruir o país. Como Mandela e Gandhi, seus companheiros na designação “ex-presidiários” fizeram. O país tem muito a aprender com Luiz Inácio Lula da Silva. Ao menos o que sobrou de vida neste país.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Bolsonaro e o Senhor das Moscas

 


Em O Senhor das Moscas, obra clássica de William Golding, um avião cai em uma ilha e os únicos sobreviventes são um grupo de garotos, que tentam a partir disto criar um tipo de autogoverno. O poder é dividido basicamente entre dois garotos, Ralph, mais racional, e Jack, o líder da caça. Em um determinado momento, Jack consegue convencer os demais garotos da existência de um monstro, contrariando Ralph, que sempre diz que este não existe. O medo em relação a esta fera inexistente se torna o foco do grupo e é a principal arma para a tomada de poder de Jack. Enquanto a paranoia vai tomando conta do grupo, Ralph estipula que os garotos devem montar um sinal de fogo para o caso de algum navio passar perto. Seria a forma deles mostrarem que estão ali e serem salvos. Os garotos se revezariam em turnos noturnos para impedir que o fogo fosse apagado. Em um determinado dia, na vez de Jack olhar o fogo, ele convence as demais crianças a sair para caçar. Com o descuidado de Jack, o fogo e apaga, e bem neste dia um navio passa ao lado da ilha. No dia seguinte, as crianças refazem o sinal, ao que Ralph responde “mas agora o navio já passou”.

A principal arma de Bolsonaro para vencer a eleição de 2022 é a caça ao monstro inexistente. Daqui até outubro ele vai investir em todo tipo de paranoia. O PT vai fechar templos evangélicos, o PT vai mudar o sexo de crianças nas escolas, estamos enfrentando uma ameaça comunista, dinheiro cubano vem em caixa de uísque para ajudar o Lula, os globalistas, vacinas causam AIDS etc. Deu certo em 2018.

Foi linda a carta pela democracia lida na Faculdade de Direito da USP na semana passada. Ela seria ainda mais linda em 2018. Pena que o navio já passou. O sinal de fogo só foi aceso quatro anos depois de quando deveria ter sido aceso. Bolsonaro fez exatamente o que prometeu na campanha de 2018. Chego até a arriscar dizer que na verdade fez menos. Ainda não iniciou uma guerra contra a Venezuela, nem tirou o Brasil da ONU. Apenas as palavras não foram suficientes para que o fogo fosse aceso. Foram necessários os 600 mil mortos da pandemia e o descaso único de um presidente que ria imitando pessoas sem ar enquanto as UTIs estavam superlotadas e que atrasava propositalmente a compra de vacinas, estimulando em seguida seus seguidores a não toma-las.

Bolsonaro foi muito bem-sucedido em continuar a tática da Lava Jato de apropriação dos símbolos nacionais para sua causa. Ao fazer isto, todos os que estão contra ele deixam de ser apenas adversários, tornam-se inimigos da pátria. Fez com a bandeira, com o hino, e agora conseguiu com o 7 de setembro. Pelo segundo ano seguido, promete um golpe de estado na data da independência. A primeira tentativa não foi suficiente para que as instituições o barrassem. Ele tentou, deu errado, mas está aí. Uma hora dá certo. O lado bom de ter como prioridade à caça a um monstro inexistente é que você nunca o encontra, portanto pode manter seus seguidores dominados e com medo eternamente. Desta vez, ao menos, mais gente acendeu o sinal de fogo. O problema é que o navio já passou. Agora resta torcer para que ele passe de novo.


terça-feira, 26 de julho de 2022

Higienópolis

 


Morar no centro sem morar no centro. Esta é a grande qualidade que possui a região de Higienópolis segundo aqueles que moram ou querem morar lá. O bairro é central, mas não é aquela zona que é o centro. Já foi assim em sua construção. Higienópolis foi um dos primeiros bairros planejados do Brasil. Grandes produtores rurais buscavam se estabelecer na capital que crescia, mas numa região só deles. A escolha por lá se deu por dois motivos: a proximidade já citada em relação ao centro, onde ficavam as melhores opções de entretenimento e a Bolsa de Valores, e a topografia. Se hoje a preocupação central de quem mora na região é assalto, naquela época eram doenças, principalmente a varíola. A elite brasileira, tendo já a elite paulista como líder, colocava em prática na época um projeto de embranquecimento da população, tentando atrair imigrantes especialmente italianos para trabalhar nos campos e nas recém-inauguradas fábricas. Junto com os italianos veio a doença, que se espalhava com maior facilidade pois estes eram basicamente jogados amontoados no bairro do Bixiga. Higienópolis foi o primeiro bairro com saneamento básico na história do Brasil, mostrando que a elite já possuía lá o tipo de pensamento que marcou a sua relação com o Brasil, que é resolver o problema para ela, e o resto que se foda. Hoje, em 2022, Guarulhos, a segunda maior cidade do estado, trata 4% de seu esgoto, jogando o resto no rio Tietê. 35 milhões de brasileiros não tem acesso à água tratada, enquanto 100 milhões seguem sem acesso à esgoto. A elite paulistana construiu sua cidade da higiene e deixou o resto abandonado.

Ser latifundiário no Brasil nesta época significava basicamente que você era beneficiário direto do sistema de escravidão. Basicamente não havia mobilidade social, então não é uma generalização tão perigosa a se fazer. Sempre que você abrir um livro e ler “barão do café” pense em escravocrata. O Brasil seria um lugar bem melhor se escolhesse os termos certos para descrever as coisas. Isto quer dizer que Higienópolis foi basicamente um bairro criado por e para escravocratas no momento em que a escravidão havia, ao menos no papel, acabado, e em que a aristocracia escravocrata brasileira buscava novas formas de viver, explorar e continuar prosperando. Basicamente toda a elite paulista e brasileira à época era formada por estas pessoas, havia tido pouco tempo para que alguns poucos prosperassem na indústria, por exemplo. Toda a intelectualidade paulistana era formada por estas pessoas. A Semana de Arte Moderna de 1922, por exemplo, foi realizada basicamente por herdeiros de escravocratas. Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral são três exemplos de “filhos de latifundiários”. O papel desta herança escravocrata, aliás, foi muito pouco abordado no centenário da Semana. De certa forma o “pensamento paulistano”, se é que isto existe, foi moldado por herdeiros do escravismo. E isto não significa tirar o valor cultural do movimento. Significa apenas tirar o pano desta eterna mancha em nossa história. Significa entender que o escravismo está em tudo. Até hoje, quase todas as nossas relações são baseadas nisto. A intelectualidade paulistana nunca se esforçou para resolver esta desigualdade. É simbólico que a USP tenha sido uma das últimas universidades públicas do país a adotar o sistema de cotas.

Nos anos 1920 o bairro de Higienópolis se desenvolveu. Uma epidemia de febre amarela assolou a cidade de Campinas, forçando 75% dos seus habitantes a mudar de cidade. A elite campineira veio para cá, para o meio dos seus pares, naquela ilha de prosperidade e saneamento construída em meio ao caos. Em 1929 a casa caiu. Ou começou a cair, literalmente. Com a quebra da Bolsa de NY, a elite agrária paulistana começava a viver sua decadência. Com os donos endividados, os casarões de Higienópolis começaram a cair para dar lugar a prédios, o primeiro exatamente em 1933, um ano após a derrota desta mesma elite paulistana na guerra contra o governo federal. Com a revolução de 1930, o desenvolvimento sub-desenvolvimentista paulistano perdeu espaço para um novo país. A geração de 1922 foi superada pelo regionalismo. SP nunca perdoou a derrota. Não há uma Avenida Getúlio Vergas em SP. Mas há uma rodovia dos Bandeirantes. A arquitetura escravocrata dos casarões que lembravam fazendas deu lugar a um novo tipo de arquitetura, mantendo porém o quartinho de empregada. Décadence avec élégance. Até hoje, passeando pela região e chegando até a Paulista, achamos uns casarões destes perdidos, quase sempre caindo aos pedaços. A especulação imobiliária deve pirar com isto.

Morar no centro sem morar no centro. Este segue sendo o sonho realizado dos novos habitantes do bairro. Mais de cem anos depois de sua construção, segue sendo o objetivo. Se a arquitetura da cidade hoje é dominada por hiper condomínios com lógica semelhante à de um presídio-empresa de luxo, com grades e isolamentos separando a cidade do seu mundinho, Higienópolis tem uma barreira invisível, o Minhocão. Do lado de lá, tudo é feio. Do lado de cá, tudo é lindo. Há muitos poucos mendigos em Higienópolis, por exemplo. Os que aparecem logo desaparecem. Ninguém sabe a razão, mesmo que todos saibam a razão. O sentimento dos habitantes de Higienópolis quando um mendigo some não é de preocupação, é de alívio. Pessoas cujo desaparecimento geram alívio normalmente desaparecem. O grau de barbárie de uma sociedade pode ser medido pelo grau de alívio que esta sente quando há estes desaparecimentos. Higienópolis pode até ter saneamento básico, mas não resolveu os problemas básicos de barbárie em que foi construído.

A mulher da Casa Abandonada é uma caricatura, e as pessoas amam estes personagens. Ela pode se tornar o bode expiatório. Ela é um problema, mas está longe de ser o problema. O problema hoje não está no casarão abandonado. Está na cobertura do prédio ao lado. Ou na cobertura do prédio que será construído quando o bairro se livrar da mulher. Ela ter feito uma mulher de escrava por trinta anos não é problema para a vizinhança. Esta provavelmente via o que acontecia e não enxergava problema algum. Pelo contrário, rolava identificação. A mulher da Casa Abandonada é a "tia do interior". Higienópolis se incomoda com ela agora porque ela é um entrave ao seu desenvolvimento. E porque ela traz sujeira. E se tem uma coisa que Higienópolis detesta desde o seu início é sujeira. Mas podridão da mulher é a mesma do bairro. Boa parte dos habitantes do bairro ainda pertence a herdeiros daquela turma que construiu o bairro. O problema está em todo um sistema que segue beneficiando esta turma, que se recusa a fazer um acerto de contas. Se um dia ela começar, terá que começar por Higienópolis. 

 

 


quinta-feira, 30 de junho de 2022

Quando éramos reis

 


Muito raramente os textos que escrevo ficam tão bons no papel quanto parecem ser na minha cabeça. A razão principal é a ansiedade. Eu quase nunca dou a um texto o tempo para que eu o melhore na minha cabeça. É quase sempre o impulso. E também quase nunca os reviso. Escrevo para um blog que pouca gente lê textos que funcionam mais como uma terapia, um desabafo, do que qualquer outra coisa. Na minha cabeça eu tenho um texto não escrito que acho brilhante sobre a relação entre a Copa do Mundo e o país. Não é a à toa que a seleção de 1958 surgiu ao mesmo tempo da Bossa Nova. Não é à toa que a seleção de 1982, possivelmente a melhor seleção não-campeã que tivemos, tenha tido o mesmo destino derrotado do movimento das Diretas-Já, dois anos depois. A derrota bonita segue sendo uma derrota. Mas segue sendo bonita. Não é à toa que a seleção de 1994 surgiu no ano do Plano Real. Vencer a inflação a qualquer custo após sucessivas derrotas. Vencer a Copa do Mundo a qualquer custo depois de sucessivas derrotas. Vencemos. Não é à toa que a seleção de 2002 venceu em 2002. Ronaldo renasceu no ano em que o Brasil optou por renascer. Em algumas coisas o renascimento deu bem certo. Em outras deu bem errado. Não é à toa que a hecatombe de 2014 antecedeu a hecatombe de 2016-2018. No momento em que o Brasil deveria mostrar ao mundo sua força, tudo desandou. O 7x1 se tornaria a metáfora perfeita do país. Cada dia um 7x1 diferente.

Eu tinha 18 anos em 2002. Uma das melhores memórias que tenho daquela Copa é que eu estudava num Cursinho pré-vestibulares cheio de estudantes coreanos e eles enlouqueceram na Copa. Roubaram muito para a Coreia naquela Copa e eu adorei isto. Foi lindo ver aqueles coreanos nerds e obcecados por uma vaga na faculdade de engenharia surtando e enchendo a cara por causa de algo tão besta quanto onze homens correndo atrás de uma bola. Metade da minha sala faltou na aula para assistir a semi entre Coreia x Alemanha. Eu não faltei. Me arrependo. Não lembro do que era a aula, mas provavelmente me lembraria da ida ao bar com os coreanos.

Chegar numa final de Copa do Mundo parecia algo fácil para a minha geração. Chegamos com um time zoado em 1994. Quase ganhamos em 1998 com um técnico que não sabia o nome de quase nenhum dos jogadores adversários. Depois procurem uma entrevista do Vampeta em que ele comenta a preleção do Zagallo para as quartas-de-final contra a Dinamarca. Ganhamos em 2002 com um time desacreditado, que um ano antes tinha perdido para Honduras na Copa América. Ronaldinho surgiu, Ronaldo ressurgiu, Rivaldo teve sua última explosão. Roberto Carlos, Cafu, putaquepariu, que time bom. O Brasil jogou quase sempre às 8 da manhã, lembro que eram os únicos dias de folga no Cursinho. Tínhamos aula até de sábado. Uma coisa interessante que acho quando lembro do Cursinho é que naquela época eu não fazia ideia do que queria fazer da vida. Com o tempo percebi que é uma temeridade exigir de um garoto de 18 anos que escolha o que fazer da vida. Mas aos 38 sigo sem saber. Em 20 anos, descobri mais o que não quero do que o que quero. Ou falhei em transformar o que gosto em profissão. Ou vai ver simplesmente não arranjei alguém para me pagar para fazer o que gosto. Bom, decidi no fim das contas fazer economia. Encontrei na faculdade vários como eu. Não é tão incomum não saber o que quer da vida. Não é tão incomum não descobrir.

Naquele ano votei pela primeira vez para presidente. Meu voto foi em Lula. Foi a única vez que votei nele. Este arrependimento é maior do que o arrependimento do bar dos coreanos. Vai ver na vida vamos juntando arrependimentos. Ou damos valor quando perdemos. Do mesmo jeito que parecia ser fácil chegar em final de Copa do Mundo, parecia ser fácil viver em democracia. Minha geração não lutou por ela, não soube preservá-la. Em 2002, o segundo turno foi entre Lula e José Serra. A direita votava num economista ex-ministro da Saúde que lutou pela quebra das patentes dos remédios contra HIV, tornando o Brasil exemplo no Mundo. Regina Duarte apareceu em sua campanha dizendo que tinha “medo” de Lula. Duas décadas depois, a Regina Duarte que fazia campanha para o cara que ajudou a transformar o Brasil em modelo na luta contra o HIV se tornou ministra do cara que diz que vacina transmite HIV. Saudade de 2002. Passei uma década votando no partido de José Serra. Típico de um jovem privilegiado incapaz de sair da própria bolha, que não busca ver as mudanças. Um jovem que aos 18 anos fazia Cursinho, afinal. Foi preciso muita merda acontecer para que eu saísse do discurso de ódio que a direita ia já implantando a partir de 2003. Às vezes sinto que o João de 2006 embarcaria fácil no discurso de uma coisa como o MBL e me xingo. Me arrependo pelo que faria. Ainda bem que não fiz. Deu tempo.

18 anos. Quando temos 18 anos, 20 anos parece uma vida inteira. Quando temos 38, 20 anos não parece tanto tempo assim. Às vezes parece até mesmo ontem. Aos 58 anos, sabe-se lá o que pensarei sobre 20 anos. Impossível prever. Se voltasse a 2002, a primeira coisa que faria seria ir ao bar com os coreanos. E conversaria com o João de 2002. Não seria necessário mostrar o 2022 sombrio para convencê-lo a mudar. Talvez bastaria fazê-lo olhar à sua volta.

2022 o Brasil vai em busca do hexa. Vai em busca de redenção. Novamente na Ásia. Novamente nas urnas. Fomos incapazes de criar uma renovação e a nossa esperança em 2002 é a mesma de 2022. É Lula. Muito raramente os textos que escrevo ficam tão bons no papel quanto parecem ser na minha cabeça. A razão principal é a ansiedade. Eu quase nunca dou a um texto o tempo para que eu o melhore na minha cabeça. É quase sempre o impulso. E também quase nunca os reviso. Escrevo para um blog que pouca gente lê textos que funcionam mais como uma terapia, um desabafo, do que qualquer outra coisa. Na minha cabeça eu tenho um texto não escrito que acho brilhante sobre a relação entre Lula e o país. Sua ascensão foi a ascensão do país. Sua queda nos levou ao buraco. Sua ressurreição pode ser a nossa ressurreição. É paradoxal ter esperança no futuro olhando tanto para o passado. Mas é o que sobrou, quando não há perspectiva no presente. Ninguém entende tanto de recomeço quanto ele. Ronaldo recomeçou apenas uma vez. A vida de Lula é a vida dos recomeços. Que o Brasil recomece com ele.



terça-feira, 28 de junho de 2022

A decadência de Nelson Piquet

 


É realmente difícil convencer um idiota bem-sucedido profissionalmente de que ele é um idiota. Em geral porque ele se cerca de pessoas que o bajulam. Mas também porque o idiota bem-sucedido acredita que o próprio sucesso profissional é uma prova de que ele não é idiota. Nelson Piquet era muito bom no que fazia. Muito muito bom. Foi três vezes campeão do mundo. Ganhou mais de vinte corridas. Deu sorte de ser muito bom numa atividade que, embora não muito relevante para a humanidade, uma parte significativa de nós leva a sério, a corrida de automóvel. Além de muito bom no que faz, Piquet sempre foi muito, mas muito idiota. Ele é tão, mas tão idiota, que ele consegue ser mais idiota do que foi bom piloto. Piquet tem três títulos mundiais de Fórmula 1. Se houvesse título mundial de idiotice, é possível que Piquet tivesse mais do que sete títulos mundiais nesta categoria. 

Piquet sempre se esforçou para ser o mais idiota possível. Sempre que perguntado sobre um assunto ou sobre uma pessoa, o objetivo de Piquet sempre foi dar a resposta mais idiota possível. Ele acha isto engraçado. É comum entre pessoas bem-sucedidas e idiotas responder perguntas destas forma. Quem trabalha no setor privado conhece bem aquele diretor que adora falar palavrões desnecessários e xingar o mais alto possível. Faz parte do que eles enxergam como poder. Não à toa Piquet ou este tipo de diretor se identificam tanto com o atual presidente da República. Na sua fala sobre Hamilton, Piquet poderia escolher muitos adjetivos. Poderia apenas dizer que Hamilton foi agressivo. Mas não, fez questão de explicitar seu racismo. Fez porque é adepto do quanto mais idiota melhor. Fez porque acha engraçado. Fez porque se sente poderoso ao fazer isto.

Piquet sempre se sentiu um tanto quanto injustiçado pelo público brasileiro. Ao mesmo tempo em que ganhava nas pistas, surgiu outro piloto brasileiro tão bom ou melhor e com mais carisma. Acontece. O idiota foi se tornando cada vez mais rancoroso e amargo. Era hiper falante até seu filho protagonizar o maior vexame possivelmente da história do esporte. Nelsinho Piquet herdou a idiotice, mas não o talento do pai. Ficou um tempo quieto. Mas quis o destino que Piquet se tornasse sogro de um novo fenômeno do mesmo esporte. Voltou com a corda toda. Recuperou a força e a energia. Força e energia que usa para falar merda.

O Brasil tratou por muito tempo gente como Piquet como engraçada. Suas barbaridades eram tratadas como “polêmicas”. Frases de “gênio”. Precisamos parar, aliás, com esta história de que piloto de Fórmula 1 é gênio. Não é. Schumacher não foi. Senna não foi. Eles são muito bons no que fazem. Mas gênio era, sei lá, o Da Vinci. À exceção de Hamilton, a Fórmula 1 nunca teve um atleta relevante para o planeta. A Fórmula 1 é cheia em geral de playboys mimados de famílias ricas totalmente alienados da sociedade. A Fórmula 1, entre outras coisas, corria na África do Sul nos anos 1980, durante o apartheid. Hamilton é relevante não apenas pelos sete títulos ou pelos recordes que bate, mas por ser possivelmente o primeiro piloto de Fórmula 1 não completamente alienado que eu lembre. Hamilton se interessa pela sociedade, entende o papel que pode ter como agente transformador e seus sete títulos mundiais, mais do que o fim, são o meio para que sua mensagem seja passada. É possivelmente o atleta mais relevante da sua geração. É o que Muhammad Ali foi nos anos 1960, Billie Jean King nos anos 1970, Maradona nos anos 1980, as irmãs Williams nos anos 2000, entre outros. Consegue fazer seu talento na atividade irrelevante ser relevante. Voltando ao Brasil, as barbaridades de Piquet foram sempre tratadas como humor pela mídia brasileira. Como as barbaridades do antigo deputado federal, aliás. “Olha que engraçado, ele falou que a ditadura deveria ter matado uns 30 mil”. Pessoas como Piquet se sentem realmente ameaçadas com a modernidade. Não sabem não ser idiotas e temem que a queda do idiota-mor seja a queda do próprio estilo de vida, baseado em privilégios e preconceitos.

O piloto Nelson Piquet está na história do esporte. A pessoa Nelson Piquet caminha rumo à irrelevância. O ex-piloto muito bom se tornou uma figura triste e rancorosa que só aparece na mídia falando merda ou servindo de chofer para um genocida aloprado. Não foi vítima de ninguém. Escolheu o seu caminho. Basta olhar para a cara de Piquet e notar como ele é infeliz. Pessoas como ele vão para a irrelevância sempre do mesmo jeito. Reclamando e ofendendo. E com um olhar triste, servindo de condutor para um idiota ainda mais idiota do que ele. Piquet já conhece de certa forma o ostracismo no país em que nasceu. Tanto que a frase racista que proferiu contra Hamilton demorou 6 meses para aparecer. Ninguém liga para o que ele fala. Agora deve conhecer o ostracismo na categoria que o consagrou como piloto. Este não existe mais. O que sobrou foi esta tristeza. A demonstração do impacto que o rancor pode causar em um ser humano.

domingo, 26 de junho de 2022

Bolsonaro e o empoderamento dos imbecis

 


O Brasil sempre foi uma merda. Uma máquina de moer gente. Um país fundado com a ideia de utilizar mão-de-obra escrava para produzir açúcar. Sim, para produzir açúcar. Europeu queria consumir açúcar, veio para cá e começou a escravizar nativos para isto. Descobriu que podia transformar escravo em mercadoria e começou a escravizar pessoas na África e trazer para cá. Tudo para produzir açúcar. Açúcar... Daí surgimos e até hoje isto somos, europeus escravizando nativos e africanos para produzir açúcar para a Europa. Troque açúcar por café. Depois por soja. “O agro é a riqueza do país”, diz o slogan enquanto a fome e a miséria aumentam. “O agro carrega o país nas costas”, diz o analista econômico no país em que mercados começaram a trancar carne com cadeado. Melhorou um pouco por um breve período, mas no fundo sempre foi isto aí.

Os bolsonaristas sempre foram escrotos. Sempre foram esta gente de merda que hoje escreve e fala este monte de asneiras por aí. A diferença é que hoje estão empoderados. E o que os empoderou foi a vitória de Bolsonaro. Antes daquilo, eles tinham alguma vergonha de expor explicitamente suas visões de mundo. E esta vergonha era algo que, se comparamos com o que temos hoje, era bom. A pessoa ter vergonha de falar merda ao menos mostrava que ela tinha alguma noção de que aquilo era uma merda. Ver alguém como Bolsonaro chegar ao poder de certa forma os libertou. Eles viram alguém como ele chegar ao topo, ser eleito com 55% dos votos. Sentiram-se aceitos. Bolsonaro foi eleito deixando claro ser um completo imbecil. Trata-se de uma pessoa sem nenhuma qualidade, completamente incapaz de sentir qualquer tipo de empatia. Obteve fama falando merda em programas de subcelebridades, exaltando a ditadura militar e a tortura, não teve sequer um projeto significativo aprovado em 28 anos de mandato como deputado. Não importa. Bolsonaro não foi eleito pelas suas qualidades, mas pelos seus defeitos. Ou ao menos pelo que gente minimamente decente considera defeito. Prometeu em campanha prender, expulsar ou matar opositores, ofendeu minorias, defendeu extermínios, estimulou todo tipo de violência possível. Quando mais merda fazia e prometia, mais se tornava um mito. Durante a maior tragédia coletiva da nossa história, debochou do sofrimento de milhares que perderam a vida e dos milhões que sofreram com estas mortes. Enquanto a miséria avança, roda o país passeando de moto em motociatas bizarras. Quanto mais ele é idiota, mais os bolsonaristas se sentem livres para fazer o mesmo. É bom ser livre. Não é à toa que para estes imbecis Bolsonaro representa a “liberdade”. “Liberdade” para esta gente é ofender, ameaçar e oprimir. Quanto mais ofendem, ameaçam e oprimem, mais se sentem “livres”. A “liberdade” para eles é algo individual, o coletivo não existe.

Na ausência de coletividade, eles encontraram o seu coletivo. A sua noção de pertencimento. Vestem a camisa da seleção. São o Brasil e o Brasil é deles. Qualquer um que se oponha é inimigo da pátria. Pessoas que puderam deixar de fingir que eram civilizadas e que ganharam o apelido de “patriotas” por isto. Reginas Duartes celebrando a ditadura. “A gente cantava as musiquinhas", disse ela nesta exaltação ao período em que, ao mesmo tempo em que ela cantava as musiquinhas, milhares eram torturados em porões clandestinos. Saudade. E mais do que isto, encontraram um mercado muito fértil e pronto para ser explorado. Esta turma estava desde sempre louca para consumir muita merda e todo um grupo de pessoas ganhou espaço na mídia. Pessoas irrelevantes. Antônia Fontedemerda nunca fez nada de relevante. Nada. Tem 2 milhões de seguidores só falando merda. O tal do Adrilles. Por que estes caras têm tanto espaço? Porque há todo um público disposto a comprá-los. Que sente prazer vendo a opressão ao vivo. Quase goza vendo o opressor chiliquento. 

"Bolsonaro fala umas verdades". Bolsonaro fala o que pensa. A primeira frase merece aspas, a segunda não. Porque Bolsonaro realmente fala o que pensa, mas isto não é suficiente para que seja verdade. Pensar merda e falar merda não te torna alguém verdadeiro. Te torna apenas um merda. Este simples conceito talvez impediria que vivêssemos o que vivemos. Mas falar merda é lucrativo.

Não importa o que gente como Fontedemerda, Adrilles, Constantino, Narloch, a jogadora de vôlei ou o escambau façam. Leo Dias pode até perder o emprego agora. Adrilles também perdeu quando fez o gesto nazista. Depois de um tempo voltou para Jovem Pan. Constantino também o perdeu quando disse que culparia sua filha se ela fosse estuprada. Depois voltou para a Jovem Pan. Alexandre Garcia saiu da CNN quando defendia a cloroquina contra a Covid. Lá está a Jovem Pan para unir esta turma. Sempre defendendo a barbárie. Sempre falando de “liberdade”. Falam de “liberdade” porque eles sim se sentem mais livres. Livres como nunca. Ou no caso do Brasil, como quase sempre. O mito os “libertou”. E eles farão o demônio para não voltar para a caixinha.


terça-feira, 7 de junho de 2022

Tiago e Alice

 




Um tiro. Tiago disse que prefere levar um tiro a escolher entre Jair e Luiz. Um tiro.

Tiago é filho de um diretor da Globo, fez viagens ao exterior desde a infância, estudou nas melhores escolas, teve todas as oportunidades que ser filho de um diretor pode garantir. Jovem, “revolucionou” o jornalismo esportivo da Globo, outrora baseado em reportagens mais sérias e jornalismo mais sofisticado. Com ele, ganharam espaço brincadeiras e piadas. Este estilo foi chamado de descontraído. Uma semana antes de dizer que preferia tomar um tiro a escolher entre Jair e Luiz, Tiago havia dito que sofria “preconceito” por ser rico na faculdade. Como resposta, mudou-se para Miami. Repetindo, Tiago disse que prefere levar um tiro a escolher entre Jair e Luiz. Um tiro.

Um tiro. Uma semana antes da entrevista de Tiago, a menina Aline Rocha, de 4 anos, levou um tiro enquanto comprava pipoca no subúrbio carioca. Ao mesmo tempo ocorria uma ação policial na região e uma bala, provavelmente saída da Polícia Militar, atingiu a criança. Nenhum policial foi punido. Nenhum será. As forças públicas trataram o assunto como “acidente”. Os “acidentes” ocorrem sempre com as mesmas pessoas. Ocorrem com Alices, nunca com Tiago. Tiago pode tranquilamente dizer que prefere tomar um tiro. Sabe que não tomará. Na pior (ou melhor) das hipóteses irá para Miami.

No fim de maio, uma chacina matou 25 pessoas na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro. A polícia justificou a ação, dizendo que foram localizadas armas na região. Uma das vítimas foi Gabrielle Cunha, nenhum antecedente criminal, que morreu em casa. “Bala perdida”. Olha quem morre então veja você quem mata, diz a música dos Racionais. Jair, o provável candidato de Tiago em 2018, elogiou a ação da Polícia.

O primeiro ato de Jair ao assumir o poder foi facilitar o porte de armas. O registro de armas triplicou desde que o atual presidente assumiu o poder. Teoricamente ficou mais fácil para Tiago tomar um tiro, mas ele não se importa. Sabe que não tomará. Os tiros são dados em nome de pessoas como ele nos “outros”. Ele está tranquilo, não se encaixa nestes “outros”. As vítimas são Alices, Gabriellas.

No começo do governo de Jair, o seu então ministro da Justiça, Sérgio, tentou passar uma lei que legalizava o excludente de ilicitude. Basicamente o policial estaria livre de qualquer punição a ações ocorridas em seu expediente de trabalho, podendo alegar que estava submetido a fortes emoções. A lei não foi aprovada, mas ela não é tão necessária assim. Os policiais que atiraram em Alice estão tranquilos. Os policiais que atiraram em Gabriella estão tranquilos. No fundo, Tiago também está tranquilo. Pode até fazer piada com tiro.

João, ex-governador de São Paulo, prometeu em campanha que no seu governo o policial atiraria para matar. Na cabeça. Linguagem de psicopata. Um ano depois, nove jovens foram assassinados em um baile funk em Paraisópolis. Muito barulho, muita bagunça. Nenhum policial foi punido. Nenhum será. Excludente de ilicitude. Talvez arrependido, João decidiu colocar câmeras nas roupas dos policiais em horário de trabalho. O número de mortos foi reduzido em mais de 30%. O candidato de Jair em SP já falou que vai acabar com isto. Que esta câmera atrapalha a ação policial. As vidas salvas não renderam muitos votos a João. Ele era mais popular quando falava coisas psicopatas.

Todo crime cometido por policiais é um crime cometido em nosso nome. Assassinatos financiados por nós, cometidos por nós. Não puxamos o gatilho, mas somos mandantes. Ao não reconhecermos nossa culpa, tornamo-nos cúmplices. Fomos nós também que atiramos em Alice. Fomos nós que matamos Gabriella. Fomos nós que matamos Genivaldo num camburão transformado em câmara de gás. Todos nós. Chega de passar pano. Passou da hora de dizermos basta. Passou da hora de falarmos “não em nosso nome”. Passou da hora de vivermos uma vida “tranquila” enquanto jovens são assassinados em nosso nome. Passou da hora de exigirmos mudança. Chega de tranquilidade. 

Tiago é homem rico e branco. Entre pessoas ricas, Jair lidera por 44 a 30. Alice é uma mulher pobre. Entre pessoas pobres, Luiz lidera por 49 a 28. A eleição é sobre isto. Olha quem morre então veja você quem mata. Tiago prefere dar um tiro. Nesses últimos 4 anos, o tiro dado em nome de Tiago. E no fundo ele fará o possível para que continue assim. Talvez morando em Miami. E tratando tiro como piada.


domingo, 17 de abril de 2022

O impeachment do Presidente Haddad

 




Terminou no último 30 de fevereiro o governo Fernando Haddad. O Congresso aprovou o seu pedido de impeachment, após considerá-lo culpado por uma má gestão da pandemia que custo 200.000 vidas. Seu principal crime, apresentado pela advogada Janaína Paschoal, a mesma que liderou a acusação contra Dilma há seis anos, é de que Haddad comprou um número excessivo de vacinas, cometendo um crime conhecido como “pedalada vacinal”. O juiz Sérgio Moro, líder da Lava Jato que entra em sua milésima quinta etapa conhecida como “Fogo Infernal”, aceitou a denúncia apresentada por Deltan Dallagnol de que Haddad teria participado de um almoço com uma pessoa que conhece alguém que conhece alguém que conheceria um representante de uma empresa produtora de vacinas, e que o almoço teria sido pago com propina que seria recebida pela Petrobrás a partir da compra de vacinas pela estatal para seus funcionários. Moro decretou a prisão preventiva de Haddad 5 minutos após a declaração do impeachment, e as câmeras da TV Globo já estavam no Palácio acompanhando a operação da Polícia Federal que conduziu o agora ex-presidente à sede da Polícia Federal em Curitiba. Moro voltou a negar que tenha interesse em seguir carreira política, chamou a reportagem que dizia que ele tinha um acordo para ser ministro da Justiça candidato derrotado Jair Bolsonaro de “sensacionalismo”, mas diz que não se arrepende de vazar a ligação do ex-presidente Haddad em que ele diz que não deveríamos economizar na compra de vacinas, conversa fundamental para mobilizar as ruas contra o presidente. Moro também voltou a defender que provas obtidas ilegalmente devem ser consideradas em processos e que um homem público não pode esconder suas ações. Também negou, mais uma vez, que ajudou Dallagnol a montar o Power Point em que Haddad era apontado como responsável pela compra excessiva de vacinas e de respiradores, argumentando que isto é normal no Judiciário brasileiro.

Numa ação inédita, a vice-presidenta Manuela D’Ávila foi impichada e presa junto com o presidente Haddad. Ainda não há denuncia formal contra ela, mas Moro já decretou sua prisão preventiva dizendo que ela pode “atrapalhar as investigações”, decisão confirmada pelo ministro Barroso. O general Braga Neto assumiu o poder de forma interina, prometendo restabelecer a democracia após um ano. O ex-deputado federal Jair Bolsonaro, grande crítico das medidas de contenção adotas pelo governo petista, surge como grande favorito para as eleições de 2022, prometendo focar todos os esforços na produção de cloroquina, na liberação de armas e reduzindo a zero os gastos em vacinação. Bolsonaro promete também retirar o Brasil da OMS, que elogiou as medidas adotadas pelo governo Haddad, da ONU, que criticou as ações da Lava Jato contra o governo petista, e do Mercosul, argumentando que é um antro de “comunistas”.

O mercado celebrou o impeachment do presidente Haddad, e o dólar caiu ao valor de R$ 4. Analistas do Jornal o Estado de SP argumentam que o dólar estaria a R$ 1,50 caso Bolsonaro tivesse sido eleito e Paulo Guedes tivesse entrado no Ministério da Economia antes. Guedes, ministro do governo Braga Neto, já anunciou um novo programa de demissão em massa e de corte de gastos para estimular a economia, que caiu 2% em 2020, responsabilidade das medidas de contenção do governo Haddad. Carlos Sardenberg, analista econômico da Globo, acusou Haddad de irresponsabilidade fiscal quando o então presidente anunciou um auxílio de R$ 1.200,00 aos trabalhadores que tiveram que ficar em casa durante a pandemia, mais uma bolsa para fornecimento de máscaras apropriadas contra a doença.

Em debate na rádio Jovem Pan, Vera Magalhães e Marco Antônio Villa elogiaram a decisão do governo Braga Neto de proibir o PT de participar do processo eleitoral de 2022. Disseram que o Brasil não aguenta mais a “roubalheira desta gangue”. Elogiaram também a “jogada de xadrez” do juiz Moro ao prender o ex-presidente Haddad antes que ele tivesse tempo de discursar após o impeachment e reafirmam a crença no desprendimento político do juiz. Também elogiaram a decisão do Supremo que mudou a interpretação da Lei da Ficha Limpa, bastando agora a abertura de um B.O. para que uma pessoa seja considerada inelegível. Criticaram também a análise de especialistas de saúde e de economia, que dizem que o Brasil teria mais de 600.000 mortes e uma queda no PIB de mais de 5% caso Bolsonaro tivesse sido eleito. Disseram que esquerdistas gostam de "inventar números" e "criam um fantasma fascista que não existe".

Assim caminhamos para 2022, o ano mais decisivo da nossa história. Ano de Copa.

domingo, 13 de fevereiro de 2022

A barbárie e o cancelamento

 


Em 25/03/2021, a apresentadora Xuxa Meneghel deu uma entrevista à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em que defendeu que presidiários fossem utilizados como cobaias para testes de empresas farmacêuticas. Disse Xuxa que, assim eles “serviriam para alguma coisa”. Xuxa não foi repreendida por nenhuma pessoa participando da entrevista. No dia seguinte, após polêmica em redes sociais, Xuxa se desculpou pelo que disse. Dizer que presos deveriam ser usados como cobaias no teste de remédios não foi suficiente para prejudicar muito a carreira de Xuxa.

A desumanização do inimigo é uma das muitos características do regime nazista. É mais fácil eliminar um ser humano quando ele foi descaracterizado como tal. Pensamentos e comportamentos tipicamente nazistas fazem parte do senso comum brasileiro. Em dezembro de 2021, o apresentador Ratinho disse que uma deputada federal deveria ser metralhada por causa de um projeto de lei que buscava tornar os termos da declaração do casamento mais inclusivos. Sugeriu que a deputada fosse “eliminada”. Após polêmica em redes sociais, o apresentador se recusou a falar novamente sobre o tema. Antes desta “polêmica”, Ratinho se destacou por diversas outras barbaridades, como dizer que resolveria os problemas dos presídios superlotados no Brasil com um botijão de gás.

Em fevereiro de 2014, Rachel Sheherazade defendeu em TV aberto o linchamento de um garoto que havia sido amarrado por um grupo de pessoas que o acusavam de roubar celulares. “Quem gosta de ladrão, que o leve para casa”. Sheherazade nunca se desculpou pela fala. Não teve a carreira prejudicada, pelo contrário, tornou-se porta-voz da extrema-direita brasileira, cargo que perdeu quando começou a criticar o atual presidente. Mas afirma segue sem se arrepender do que disse. Em fevereiro de 2022, o congolês Moïse Kibagames foi linchado por um grupo que comanda milícias donas de quiosques em praias no RJ. A barbárie não começou ontem.

O nazismo adora este termos. “Eliminar”. A violência é a solução para tudo. Por isto a tara pelo militarismo, pela polícia. Justiça é vingança. Não há categoria de pessoas mais desumanizada no Brasil do que a dos presidiários. Com eles, pode-se tudo. É necessário legitimar a barbárie e a eliminação dos oponentes, e esta é uma das funções da cadeia. O presidiário não pode ser ouvido e não tem direitos. Por isto é tão importante o apelido de “ex-presidiário” a Lula, aquele que pode derrotar os dois projetos de extrema-direita, que na verdade são um só.

O jornalista Merval Pereira escreveu em fevereiro de 2022 que Moro foi um juiz parcial, mas que isto não é um problema, que imparcialidade não existe. Democracia é um processo e o nazismo seduz com algumas quebras de burocracia. Depois cria outras, de tal forma a tornar toda a sociedade cúmplice de seus crimes. Mas a primeira etapa é reclamar dos processos que tornam a democracia possível. Direito à defesa e presunção de inocência são dois deles.

Transformar seres humanos em cobaias é uma característica nazista. Eliminar oponentes políticos é uma característica nazista. Defender justiçamento de uma maioria contra um suspeito é uma característica nazista. Legitimar uma condenação praticada por um juiz parcial é uma característica nazista. Possivelmente Xuxa, Ratinho, Rachel e Merval processariam alguém que os chamasse de nazistas. Assim como Kim Kataguiri está fazendo. Kim, o líder de um movimento que estimulou alunos a filmarem professores, que invadiu hospitais durante a pandemia e que perseguiu um padre que distribui comida para miseráveis nas ruas de SP. Ser chamado de nazista ofende. O mesmo Kim que defendeu a censura a uma exposição de arte defende a criação de um Partido nazista no Brasil porque isto é “liberdade de expressão”.

No Brasil, o senso comum possui muitas características nazistas. Quase todo mundo tem o tiozão que fala absurdos no almoço. Não é à toa que o Brasil elegeu quem elegeu em 2018. Bolsonaro prometeu metralhar os opositores, como Ratinho. Prometeu legalizar a tortura, como Rachel. Prometeu endurecer penas para tornar a punição “mais fácil”, como quer Merval. Não tenho dúvidas de que apoiaria uma proposta como a de Xuxa. Entre outros absurdos. Comparou em comício na Hebraica os quilombolas a bois, dizendo que eles eram pesados em arrobas. Disse que preferia um filho morto a um filho gay. Disse que não estupraria uma deputada porque ela era feia. Elogiou a chacina em um presídio. Foi aplaudido ao homenagear um torturador em rede nacional. São muitos os absurdos.

O maior absurdo foi ele ter recebido mais de 50% dos votos. Como isto aconteceu? Foi muito tempo de desumanização. Bolsonaro possuía o senso comum. O processo de desbolsonarização do Brasil exigirá humanização. Exigirá muito cancelamento. Ele será nossa principal arma. Qualquer “bola fora” deve sofrer cancelamento. Qualquer. É necessário que uma parcela da população entenda que não pode falar o que quer usando o termo “polêmica” como disfarce. Não pode haver mais espaço para isto. Rachel, Xuxa, Merval e Ratinho não foram cancelados. O cancelamento teria sido o basta. Poderia ter evitado Bolsonaro.

O  processo de humanização precisa passar pela forma como lidamos com a nossa situação prisional. É o grande símbolo da nossa barbárie. A semana já mostrou que o Brasil não aceita a ideia de que um partido nazista exista, e isto é muito bom. Agora é necessário que o Brasil trabalhe para não aceitar também as ideias nazistas.


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

O Pacto

 


O Pacto com o Diabo nunca pode ser desfeito. Uma vez que você vendeu a sua alma, já era. Não depende mais da sua vontade. Será pela eternidade.

O diabo não existe. E ele está em todo lugar. Está dentro de nós. Precisa apenas de um clique para nos ocupar. Aí já era. Virá a vitória. Virá a derrota. Virá o arrependimento. Virá a culpa. Mas aí já era.

Algumas vezes eu já senti que estive em presença demoníaca. Numa aula, conversava com um aluno sobre sei lá o quê e o papo acabou parando na tragédia de Brumadinho. “Ganhei muito dinheiro naquele dia, professor”, disse o aluno. “Como assim?”, perguntou o professor. “Quando vi aquilo, pus uma grana nas ações da Vale”, replicou o aluno sorrindo. O diabo sorria.

Em 17/04/2016, o diabo sorriu em rede nacional. Subiu no palanque, virou para a câmera e homenageou o torturador. “Perderam em 1964, perderam em 2016”, disse o diabo. Apenas um deputado cuspiu no diabo. Boa parte dos restantes aplaudiu. As ruas aplaudiram. O Pacto já estava feito. Alguns se arrependeriam depois. Mas já não depende mais da vontade deles.

A grande arma do diabo é dizer aquilo que a pessoa quer escutar. Todos temos nosso ponto fraco. E queremos soluções simples. O diabo às vezes nos oferece a simplicidade. Seduz com tolices e com noções comuns. “Eu não gosto de corruptos”, disse o diabo. Não que ele se importe com isto. Isto é o de menos. “Eu também não gosto”, pensou o seduzido. “Temos que prender todos os corruptos”, disse o diabo. “É isso aí”, disse o seduzido. Numa sociedade em que todo mundo é culpado todo mundo acha que é o único inocente. É muito fácil convencer o “único inocente” de que o outro é culpado. Basta um boato. O boato vira denúncia. O diabo faz o resto.

O diabo assume a face que o seduzido deseja. Pode ser o tiozão que fala “a real”. Pode ser o juiz que manda prender e que chama direito de defesa de “formalidade”. Pode ser o tecnocrata do mercado financeiro que diz que você vai ganhar muito dinheiro se o cara mais pobre perder os direitos trabalhistas.

O Pacto está em todo lugar. O Pacto é a nossa história. É o bandeirante matando o indígena. É o senhor de engenho chicoteando o negro e estuprando a negra. É a Vale soterrando pessoas em Minas Gerais e garantindo o lucro do acionista em São Paulo. É o militar colocando um rato na vagina da militante presa. É o cidadão de classe média que vê o presídio superlotado e acha isto justo. “Queremos Justiça”. Quem faz o Pacto sempre se acha um “injustiçado”. Ele é o único inocente, afinal. E sempre acha que “merece” o que conseguiu depois do Pacto. A história do Brasil é uma sucessão de tragédia cometidas em nome de uma parcela da população que ou apoia ou opta por um silêncio criminoso enquanto o crime é cometido. Uma hora a ficha cai. Mas quando cai, já era. Já não tem mais alma. A coragem para desfazer o Pacto exige alma. A solução não virá de quem a perdeu.


domingo, 30 de janeiro de 2022

Não desfaça amizades por politica

 


Nunca desfiz uma amizade por causa de política. Sou contra a autonomia do Banco Central, tenho muitos amigos que são a favor. Sou contra algumas privatizações e a favor de outras, tenho amigos que são a favor das algumas e contra as outras. Fui contra a Reforma da Previdência e a Reforma Trabalhista, mas não acho que uma pessoa que tenha sido a favor seja mau caráter. Nunca desfiz e jamais desfaria uma amizade por causa disto. Já mudei muito de opinião sobre política. Já votei no PT, no PSDB e depois voltei a votar no PT. Já cheguei até a votar no Garotinho, olha minha tosquice. O que acontece no Brasil desde a Lava Jato e com a gestão de Bolsonaro nada tem a ver com política. Tem a ver com humanidade. Tem a ver com caráter.

Quem vota em um candidato que defende a tortura não tem caráter;

Quem vota em um candidato que diz que crianças gays devem ser agredidas pelos pais não tem caráter;

Quem vota em um candidato que diz que opositores devem ser presos ou metralhados não tem caráter;

Quem vota em um candidato que diz que quilombolas devem ser pesados em arrobas não tem caráter;

Quem apoia um candidato que, governando o país na maior tragédia de nossa geração, imita caçoando pessoas sem ar, morrendo, não tem caráter;

Quem apoia um candidato que sabidamente criou um gabinete para criar e espalhar notícias falsas não tem caráter;

Quem apoia um candidato que louva a Ditadura Militar e diz que seu erro foi ter matado “pouca gente” não tem caráter;

 Quem apoia um candidato que boicota abertamente a vacinação é mau caráter;

Quem apoia um candidato que diz que as pessoas que recebem auxílios de renda são vagabundas é mau caráter;

Quem apoia um candidato que abertamente defende o genocídio indígena, que disse que o grande erro brasileiro foi não ter feito o que foi feito nos EUA, em que eles foram dizimados, é mau caráter;

Quem apoia um candidato que diversas vezes já manifestou o seu desprezo por mulheres é mau caráter;

Quem apoia um candidato que diz que a melhor coisa que existe no Maranhão é um presídio em que havia acabado de ocorrer uma chacina é mau caráter;

Quem apoia um candidato cujo vice disse que o problema do Brasil eram os filhos de mãe solteira é mau caráter;

Quem vota em um candidato que exalta um torturador em rede nacional no processo de julgamento de sua vítima é mau caráter;

Quem vota a favor de um candidato que promete dar licença às forças policiais para que elas matem suspeitos é mau caráter;

Quem silencia frente a tudo isto e opta pela neutralidade não tem caráter.

Desfiz minha amizade com boa parte das pessoas do meio que votaram em Bolsonaro em 2018. E também com as que votaram nulo. Em alguns pontos acho que estas são até piores. Ao não votarem em Bolsonaro, elas se mostraram capazes de entender que ele era ruim. Mas ao não votarem em Haddad, mostraram que acham que qualquer uma destas coisas que citei é tão grave quanto corrupção na Petrobrás ou um apartamento no Guarujá. Ser corrupto é o menor dos crimes de Bolsonaro. Ele é muito corrupto, mas isto não é pior do que nada que citei. Se Bolsonaro não fosse ladrão, continuaria sendo pior do que o pior corrupto do mundo. Por política nunca desfiz amizades. Desfiz pela defesa de direitos humanos. A eleição de 2018 foi sobre isto. A eleição 2022 será sobre isto. Qualquer outro assunto é perda de tempo. Coisa de mau caráter querendo disfarçar o próprio mau caratismo. Assim como em 2018, a eleição não será sobre esquerda e direita. Será sobre humanidade e barbárie.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

O juiz e o Exército

 


A vitória de Jair Bolsonaro em 2018 foi possível graças à união de duas forças retrógradas e fascistas, uma de natureza militar, liderada pelo próprio ex-capitão, e outra vinda das primeiras instâncias do Poder Judiciária, liderada por Sérgio Moro, ambas igualmente reacionárias e autoritárias. Se nos anos 1960 estes dois grupos não tinham problema em simplesmente dar um golpe, no novo século estas forças tentam dar uma aparência de legalidade à tomada de poder. É necessário que haja eleições, mesmo que elas sejam uma farsa. Coube a Moro o papel de impedir a candidatura de Lula, candidato que venceria as eleições, e de manipular processos de forma a ajudar os parceiros do projeto. Foi assim nas eleições estaduais de Rio de Janeiro, Paraná e Goiás. Coube ao Exército o papel de ameaçar as instituições que poderiam impedir que a farsa se concretizasse. Um país que aceita que um militar ameace dar um golpe de Estado por Twitter já se rendeu. A aliança ficou clara quando Moro aceitou tornar-se ministro da Justiça do governo que ajudou a eleger. Em qualquer lugar sério, o fato de o juiz prender o primeiro colocado e depois virar ministro do segundo já seria suficiente para que a fraude fosse denunciada. Por aqui não foi. No fundo porque quem apoiou isto sempre soube o que estava acontecendo.

Bolsonaro e Moro não se separaram por diferenças de visão de mundo, mas sim por ambições pessoais. Moro não fico puto porque Bolsonaro interveio na Polícia Federal, mas sim porque ele, Moro, não conseguiu intervir. Disse diversas vezes que havia sido uma promessa do presidente que as indicações da Polícia Federal seriam dele. Não tem nada a ver com independência. Moro não era e não é contra a interferência do governo no órgão, desde que a interferência seja dele. Até sair do governo, Moro não mostrou nenhuma discordância em relação ao rumo do governo durante a pandemia. Até elogiou o então chefe por comprar cloroquina mais barata da Índia.

A saída de Moro do governo poderia levar a uma cisão na aliança entre militares e baixo clero do Judiciário. Não levou, e isto me surpreendeu. O baixo clero do Judiciário não desembarcou do governo junto com o ex-líder. É importante lembrar que este baixo clero do Judiciário foi fundamental na desestabilização dos dois governos anteriores, de Dilma e Temer. Os dois não conseguiam fazer nada, nem escolher ministros, que ações na primeira instância travavam as nomeações. Bolsonaro segue até hoje fazendo e acontecendo sem que nada aconteça na primeira instância. Um caso emblemático deste apoio é a situação do ex-ministro Ricardo Salles, que deixou o governo quando seus crimes eram investigados pelo Supremo porque sabe que na primeira instância nada acontecerá.

O governo Bolsonaro, obviamente, fracassou. Não tinha como dar certo. Colocar um maníaco, lunático e psicopata que nunca escondeu sua psicopatia no poder não tinha como dar certo, afinal. Junte-se à personalidade do presidente a maior pandemia dos últimos cem anos e vivemos a maior tragédia da nossa geração enquanto o presidente passeava de jet ski, corria atrás de ema, promovia aglomerações e festas, boicotava a vacina e mentia. Mentia e mente muito e o tempo todo. Chegou ao governo assim e não tem razão para mudar agora que está no topo. Uma parte dos aliados deste projeto, vendo a possibilidade de derrota do projeto, resolveu desembarcar de Bolsonaro. E Moro parece estar ganhando espaço entre os militares.

Vemos um número considerável de militares de alta cúpula abandonando o presidente agora que o barco afunda. Como ratos. Todos eles se apresentado como “exemplos de responsabilidade” enquanto o governo que apoiaram segue cumprindo sua promessa de matar. A cartinha de Antônio Barra Torres, presidente da Anvisa, surge neste contexto. Estes militares estão entrando de cabeça na candidatura de Moro. General Santos Cruz, um dos que ameaçou golpe de Estado se o STF revisse a prisão em segunda instância em 2018, e ex-ministro do governo Bolsonaro, é um dos chefes de campanha de Moro. Se Bolsonaro conseguiu manter o apoio na primeira instância do Judiciário no divórcio em 2020, Moro agora avança entre os militares. Eles enxergam no ministro a chance de prosseguir no poder e de continuar o projeto, personalizando a tragédia em Bolsonaro. "Ele nos enganou", dizem estes dois grupos que apoiaram o candidato que prometeu matar ou expulsar opositores, entrar em guerra contra a Venezuela e que disse que a ditadura matou pouco, que deveria ter matado "uns 30 mil".

“A democracia é uma concessão do Exército”. Assim pensa Bolsonaro. Assim pensa a cúpula do Exército. Eles acham que estão fazendo um favor permitindo que a democracia exista. 2018 serviu para mostrar que ela já não existe mais. Nenhuma democracia existe em um lugar em que um militar ameaça um golpe de Estado e não é preso por isso. É importante tem isto em mente na eleição de 2022. Ela não vai acabar com a eleição de Lula. Os grupos de Bolsonaro e Moro não estarão dispostos a conceder. Esta turma não voltará para o quartel. E isto exigirá uma mobilização do que restou de democracia que não se resumirá ao dia da eleição e à festa na noite da vitória. Exigirá um esforço de reconstrução. E se destruir foi fácil, a reconstrução durará décadas. 

Bolsonaro era o plano A. Moro é o plano B. Esta turma pode até aceitar a posse de Lula. Mas estão desde já trabalhando no plano C.


quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Barra Torres, a Anvisa e as pessoas que não prestam

 


É importante ter uma coisa em mente. Nenhuma pessoa que tenha aceitado participar do governo Bolsonaro em qualquer momento presta. Bolsonaro foi um deputado de trabalho quase nulo e insignificante durante 28 anos de mandato, ganhou fama participando de programas de subcelebridade e de humor, que deram espaço para seu lunatismo em troca de audiência. Chegou ao poder graças a um processo de destruição exercido por membros corruptos do judiciário aliados a setores da grande mídia dispostos a tudo para evitar que a esquerda continuasse no poder. Seus momentos de maior “destaque” em sua carreira político estão sempre ligados a manifestação de algum preconceito. Negros, mulheres, movimentos sociais e principalmente gays. Disse que crianças gays deveriam apanhar, que preferia um filho morto a um filho gay. Disse que o maior erro da ditadura foi “matar pouco”. Em sua campanha presidencial, prometeu matar ou expulsar do país os seus opositores. Também prometeu entrar em guerra contra um país vizinho que nada nos fez e tirar o Brasil da ONU. Repetindo, qualquer pessoa que tenha aceitado trabalhar em um governo que tenha sido eleito com estas propostas não presta. Qualquer pessoa com acesso à informação que não tenha feito oposição a este governo desde o dia em que ele foi eleito deve ser vista com desconfiança. O horror não começou com a pandemia.

Antônio Barra Torres, presidente da Anvisa, é um picareta. Mesmo que tivesse presidido a Anvisa com técnica e competência, seria um picareta. Pelo simples fato de ter feito parte deste governo. Ele é almirante e foi um dos muitos militares incompetentes e inexperientes na gestão pública a assumir um cargo relevante. Sua gestão na Anvisa foi marcada pela liberação de um número nunca antes visto de agrotóxicos e pela burocracia na liberação (ou não de vacinas), na maior parte das vezes agradando Jair Bolsonaro.

A Anvisa fez tudo que pode para não liberar ou atrasar a Coronavac. Se não fosse a ação dura e correta do governador de São Paulo, João Doria Jr., e a pressão intensa da sociedade, a liberação da vacina possivelmente não teria acontecido. Se não fosse a Coronavac, estaríamos hoje ainda mais fodidos do que já estamos. Bolsonaro só aceitou comprar as outras vacinas quando Doria começou a vacinar com a Coronavac em SP e quando Lula voltou a ter direitos políticos. Até agora, a Anvisa não liberou a mesma vacina, a única que pode ser produzida em território nacional, para aplicação em crianças. Argumentos burocráticos. Mesmos argumentos que foram usados para não liberar a Sputnik, vacina usada em boa parte da América Latina e que já havia sido negociada pelos governadores do Nordeste, todos adversários do presidente. Muitas vidas teriam sido salvas se a Anvisa tivesse liberado o medicamento. A ideia de que a Anvisa trabalhou bem nas vacinas durante a pandemia é uma falácia. Na maior parte do tempo foi aliada de Bolsonaro no processo de criação de entraves na vacinação.

Em março de 2020, pandemia começando, Bolsonaro fazendo merda, lá estava Barra Torres participando de manifestação com o presidente. Ambos sem máscara. Festejando a tragédia que se anunciava. Pessoas como Barra Torres não estão acostumadas a cobranças pelo que fazem. Elas são muitas. As “enganadas”. As que dizem que votaram em Bolsonaro porque achavam que ele era “diferente”. Diferente sem dúvida ele é. Nada é mais diferente do que correr atrás de uma ema com um remédio que não tem eficácia durante uma pandemia. Nada é mais diferente do que boicotar a vacinação infantil. Nada é mais diferente do que gravar vídeo caçoando de pessoas sem ar no ápice da tragédia. Barra Torres e os imbecis que queriam alguém “diferente” para “acabar com tudo isto daí” tiveram a missão duplamente cumprida. Ele é diferente e acabou com tudo. Não sobrou nada.

Uma parte da cúpula do Exército, vendo o barco afundar, resolveu cair fora. Estão tentando embarcar na candidatura de Sérgio Moro, maior responsável pela eleição de Bolsonaro. Nada mais natural do que isto. Personalizar a tragédia em Bolsonaro e governar sem ele. Gente que tem o autoritarismo na veia. A aliança jurídico-militar. O juiz que prendeu o primeiro colocado e se tornou ministro do segundo, junto com os generais que ameaçaram dar um golpe de Estado caso o Supremo não mantivesse a decisão. Um bolsonarismo sem Bolsonaro. A cartinha de Barra Torres nada tem a ver com divergências com Bolsonaro. Tem a ver com um movimento político. Assim como o seu processo de "beatificação". Movimento de gente que em 2018 estava na rua celebrando a tragédia que começava. Gente que não acha que estava errada. Gente que não presta.


domingo, 9 de janeiro de 2022

A Reforma Trabalhista foi uma bosta

 


É muito fácil encontrar uma pessoa e responsabilizá-la por todas as nossas mazelas. Jair Bolsonaro é a pior pessoa do mundo, mas é fruto de uma sociedade doente, uma sociedade em que mais da metade dos eleitores topou ser cúmplice de um projeto de governo lunático e assassino. Mais do que isto, uma sociedade que fez tudo que pôde para permitir que esta pessoa chegasse ao poder, prendendo num processo completamente fajuto aquele que impediria este maníaco de chegar ao poder. Sim, a prisão de Lula custou vidas. Bolsonaro é sem dúvida o maior responsável pelo fracasso brasileiro na contenção da Covid. Fez o inferno para atrapalhar qualquer medida que impedisse a propagação do vírus e salvasse vidas. Boicotou as medidas de distanciamento social, incentivou aglomerações, atrasou o máximo que pôde o pagamento do auxílio que permitiria aos autônomos fazer algum tipo quarentena por algum período com alguma estabilidade financeira, caçoou dos doentes, atrapalhou a compra de vacinas, espalhou notícias falsas sobre as mesmas, incentivou o uso de um remédio ineficaz. Fez o diabo e não foi afastado. Em qualquer país minimamente decente, a classe política e a sociedade teriam se unido para tirar este maníaco do poder quando ficasse claro que a sua loucura significaria a morte de milhares de pessoas. Mas o país que fez impeachment por causa de um Fiat Elba e que inventou um crime chamado “pedalada fiscal” foi incapaz de realizar este impeachment. Como dito, Bolsonaro é fruto de uma sociedade doente.

Isto dito, uma outra causa importantíssima do nosso fracasso em salvar vidas foi a precariedade do trabalho. Quase a metade da população ativa brasileira trabalha na informalidade (40,6%). Temos um sistema de proteção social montado para proteger apenas os trabalhadores formais. Previdência, seguro-desemprego e auxílio-doença, apenas quem tem carteira assinada tem estes direitos. Estes 40,6% inicialmente tiveram sua renda reduzida basicamente a zero no começo da pandemia e a um pouco mais de metade de um salário mínimo após o auxílio emergencial que chegou atrasado. R$ 600 ou R$ 1200 ajudaram, mas não dá para um pai ou para uma mãe de família ficar em casa com este valor. Uma lição que a sociedade deveria retirar disto é que precisamos urgentemente trazer esta multidão para o sistema de proteção social, e isto se faz expandindo-o para os sem carteira assinada ou incentivando a contratação com carteira assinada.

Antes de falar mal desta bosta de Reforma, é importante dizer que a precarização do trabalho não é fruto da Reforma Trabalhista. Sempre fomos um lugar de trabalho precarizado. Não há nada mais insano do ponto de vista lógico, por exemplo, do que esta maluquice de MEI. Pare para pensar, por favor. Uma pessoa se cadastra como uma empresa, tendo a si mesma como proprietária e única funcionária, trabalha muitas vezes para uma única empresa e é tratada como uma fornecedora, e não como uma trabalhadora. A relação trabalhador x empresa se transforma em uma relação empresa x empresa, e o trabalhador-empresa que jogou pela janela todos os seus direitos em nome disto é enganado pela ideia de que vai pagar menos imposto. Se você acredita realmente que ter MEI é melhor para você, você está sendo enganado. Simplesmente não é. Chegamos ao ponto em que empresas simplesmente não aceitam mais contratar trabalhadores sem que eles sejam MEI. A MEI que ficou em casa durante a pandemia faliu. E o ministro da Fazenda maníaco do governo maníaco disse que não ia fazer nada para ajudar pequenas empresas porque elas não geram emprego. Vai se foder. O Brasil passou anos estimulando a ideia de que o trabalhador deve ser individualizado e qualquer tipo de união entre eles foi demonizada. Os sindicatos foram basicamente demolidos. Uma boa parte dos trabalhadores, os de classe média principalmente, foram convencidos da ideia de que qualquer dinheiro que seja gasto por alguma coletividade era roubo. Taxa sindical e imposto. Ele foi acostumado a lutar por si e se afastar destas coisas. Foi despolitizado. O grande problema da Reforma de 2017, fora o fato de que ela foi feita por um governo sem legitimidade e por um vice que foi eleito numa chapa que prometera o contrário, foi que com ela o Estado deu um gigante passo para reconhecer que esta realidade é “moderna” e que o problema não está na ausência de direitos trabalhistas deste mundo de pessoas, mas nos direitos daqueles que os têm. Não só nada é feito para incluir aqueles que não têm direitos como parte do sistema de proteção social, como ainda estimula que mais pessoas saiam deste sistema. Incentivou terceirização e prometeu empregos fictícios enquanto facilitou e barateou as demissões. Os empregos não vieram, o crescimento não veio, e isto me parece meio óbvio. O país não vai crescer tornando a vida das pessoas uma bosta.

Não gosto de dizer que deveríamos tirar um ensinamento da pandemia. Acho que às vezes isto acaba servindo para romantizar a tragédia. Mas é fato que a pandemia deveria ter servido para mostrar que nenhum ser humano é uma ilha. A saída para a pandemia era, e ainda é, coletiva. Não adiantava (e não adianta) apenas você ficar em casa do mesmo jeito que não adianta apenas você tomar vacina. É necessário que todos façam a sua parte para que a solução seja alcançada. Não há sucesso individual, apenas coletivo. Não adianta se fechar numa porra de um condomínio, morar no último andar, colocar 5 trancas na porta, contratar seguranças armados, viajar duas vezes por ano, pagar um plano de saúde, trocar de carro uma vez por ano, pôr o filho para aprender inglês. Uma hora a conta pelo seu egoísmo vai chegar. E vai chegar na forma de medo. E vai chegar na forma de demissão e falência. Vai chegar na forma de violência. Sua vida não ficará melhor enquanto você não pensar no coletivo e não entender que este individualismo nos leva a barbárie. A pandemia não vai acabar com você ficando em casa, mas com o garoto precarizado rodando a cidade de bicicleta para trazer o seu hambúrguer. A sociedade não vai melhorar enquanto este garoto não estiver recebendo o suficiente para ter uma vida decente e tendo um Estado que garanta a sua proteção caso algo o impeça de trabalhar.

Vivemos em uma sociedade em que o último presidente eleito recebeu mais de 50% dos votos prometendo prender e matar oponentes. Pessoas que votam em alguém assim perderam qualquer capacidade de enxergar o outro, e por isto é fundamental restabelecer os laços de comunidade. E o mundo do trabalho é um dos focos disto. O outro trabalhador deve ser visto como colega e não como concorrente. O coletivo precisa estar preparado para ajudar os mais carentes e falhamos fortemente nesta missão durante a pandemia. Uma possível revogação da Reforma Trabalhista seria um passo fundamental para iniciar uma nova era no Brasil. Um país que precisa ser reconciliado e reconstruído. O Brasil precisa de paz, e a paz só é obtida compartilhando.

E na boa, a Reforma foi uma bosta. Está tudo uma bosta. Se você acha que ela foi um avanço, na boa, não foi avanço porra nenhuma. Acorda e olha para o que está ao seu redor.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Djokovic e Austrália: O imbecil e a truculência

 


Novak Djokovic é um imbecil. Esta é a causa inicial da confusão que o deixou preso em um aeroporto na Austrália. Todas as pessoas que estão se recusando a tomar a vacina por um motivo que não seja muito sério são imbecis. Todas. E “não querer” não é um motivo sério. São pessoas que estão colocando em risco a saúde pública por egoísmo e ignorância. E quando a gente fala de Djokovic, a gente fala de bastante ignorância. A esposa do tenista, Jelena, foi bloqueada por alguns dias no Instagram no começo da pandemia por compartilhar um vídeo que dizia que a Covid era transmitida pela rede 5G. Djokovic não é responsável pelo que a esposa posta, claro, mas sua atitudes durante a pandemia mostram que é bem provável que ele compartilhe este tipo de maluquice. É um grau muito elevado de tosquice.

Djokovic é um tipo específico e perigoso de idiota: o idiota bem-sucedido. Djokovic é possivelmente o melhor tenista de todos os tempos. O maior campeão da modalidade, mobiliza uma multidão de fãs por onde vai. Isto significa que muito provavelmente Djokovic não deve ouvir um não na vida desde os 18 anos. Pessoas bem-sucedidas normalmente se cercam de pessoas que aplaudem tudo que elas fazem, e quando esta pessoa é idiota ela normalmente se cerca de idiotas. Estas pessoas idiotas provavelmente aplaudiram a ideia idiota do idiota do Djokovic de organizar um torneio idiota durante a primeira onda da pandemia. E quando a gente fala de uma pessoa bem-sucedida e idiota, um dos maiores problemas é que ela acha que o fato de ser bem-sucedida é uma prova clara de que ela não é idiota. O dinheiro e a fama trazem tudo que ele quer, portanto se ele quer ficar sem tomar vacina, ele acha que pode.

Dentre as muitas coisas que me incomodam muito na pessoas que são anti-vacinas é a forma como elas simplesmente não querem lidar com nenhuma consequência da sua escolha. Não sei de nenhum país em que as pessoas estejam realmente sendo obrigadas a tomar vacina. Talvez a China, mas não sei. Ninguém está sendo preso ou tendo a casa invadida por não tomar vacina. Elas só estão, com razão, enfrentando restrições. Num momento de pandemia, é totalmente racional que pessoas que façam a escolha de não tomar a vacina sofram algumas restrições enquanto a doença persistir. Primeiro pela falta de vontade de participar do esforço coletivo para superá-la, e segundo pelo risco sanitário que ela representa. Não quer tomar a vacina, então se isole enquanto a pandemia durar.

Isto não tem nada a ver com o conceito real de liberdade. Liberdade é uma conquista coletiva. Se você acha que liberdade é fazer o que você quer e quando quer enquanto outra pessoa está se fodendo porque você faz isto, você está errado. Isto não é liberdade, é privilégio. Não há liberdade real enquanto a sua suposta “liberdade” individual foi possível graças a exploração e opressão de outras pessoas. Você não está curtindo sua liberdade quando vai fazer curso em Amsterdã pago pelo pai enquanto sua família paga uma miséria à sua empregada doméstica. Você está curtindo seu privilégio. A liberdade real só existe quando obtida por todos e para todos e é uma luta constante de todos. A ideia atual de liberdade está muito ligada a comércio e à realização de vontade. “Você é livre porque compra o quer e faz o que quer”. Não. Quando você compra uma roupa barata feita por mão-de-obra escrava você não está sendo livre porque escolheu comprar aquela roupa, você está sendo um instrumento de opressão. Liberdade não é olhar apenas para o próprio umbigo. É pensar nas consequências coletivas de suas escolhas. É meter uma vacina no braço quando a sociedade precisa.

Isto dito, o governo da Austrália está agindo de forma babaca. A Austrália tem toda a razão, toda toda, toda memo, ao exigir que apenas pessoas vacinadas entrem em seu país. É o que países governados por gente minimamente decente fazem. Porém a Austrália LIBEROU a entrada de Djokovic. Ele só entrou no avião quando a liberação foi dada. A decisão do governo australiano gerou mal-estar, óbvio, e só depois disso é que Djokovic foi barrado no aeroporto por um suposto problema no visto. Um problema que provavelmente não existe, porque ninguém diz ao certo qual é. Djokovic conseguiu a liberação para entrar através de uma regra de exceção, sem que ninguém também explicasse em qual ponto desta regra ele entrou. Ser um idiota bem-sucedido, talvez. Mas o certo é que a liberação aconteceu e pará-lo no aeroporto fazendo publicidade política disto é um ato de truculência. Se aceitaram a ida dele, que aceitem a entrada e lidem com a consequência ao invés de fazer este show patético agora.

Há um certo populismo que se alimenta de duas coisas. A primeira é a truculência contra pessoas ricas, que muitas vezes serve para justificar as ações cometidas diariamente contra pessoas pobres. Aqui no Brasil, muitas vezes analistas aplaudiam a Lava-Jato porque “pela primeira vez víamos pessoas ricas presas no Brasil”. Não se importavam com a truculência das ações e com as inúmeras e claras arbitrariedades cometidas pela operação. Ao invés de buscarmos uma sociedade mais humana, passamos a aplaudir a expansão da desumanidade e aplaudíamos cada vez que Sérgio Cabral era humilhado por juízes justiceiros. A porta do horror se abriu. Uma segunda é a truculência com estrangeiros, com pessoas que vem achando que “aqui é bagunça”. Vimos isto aqui no Brasil na ação da Anvisa em Brasil x Argentina, quando a agência parou a partida porque quatro jogadores argentinos estariam no país irregularmente, quando teve todas as oportunidades de resolver o assunto antes da partida e impedir o circo. Até hoje a Anvisa não apresentou os supostos documentos falsificados dos argentinos, mas ninguém foi atrás disso. Ninguém quer ir atrás ou impedir o circo. Pelo contrário, monta-se tudo para realizar o circo. A Anvisa conseguiu ter sua ação transmitida ao vivo em rede nacional e foi ovacionada pela sociedade sedenta por “justiça”.

O primeiro-ministro da Austrália já se pronunciou em rede social dizendo que na Austrália as regras servem para todos e aquilo que já sabemos. Está sendo aplaudido. Todos estão errados. E normalmente quando todos estão errados, todos acham que estão certos. Djokovic é um imbecil. O pior tipo de imbecil. Mas neste caso está sendo vítima de truculência. O fato de sermos todos vítimas de seu egoísmo e de sua ignorância não deveria permitir que fossemos favorável à humilhação que ele está sofrendo. Até o maior dos imbecis deve ter algum direito assegurado e não pode ser usado como brinquedo por um governo buscando autopromoção.