domingo, 30 de janeiro de 2022

Não desfaça amizades por politica

 


Nunca desfiz uma amizade por causa de política. Sou contra a autonomia do Banco Central, tenho muitos amigos que são a favor. Sou contra algumas privatizações e a favor de outras, tenho amigos que são a favor das algumas e contra as outras. Fui contra a Reforma da Previdência e a Reforma Trabalhista, mas não acho que uma pessoa que tenha sido a favor seja mau caráter. Nunca desfiz e jamais desfaria uma amizade por causa disto. Já mudei muito de opinião sobre política. Já votei no PT, no PSDB e depois voltei a votar no PT. Já cheguei até a votar no Garotinho, olha minha tosquice. O que acontece no Brasil desde a Lava Jato e com a gestão de Bolsonaro nada tem a ver com política. Tem a ver com humanidade. Tem a ver com caráter.

Quem vota em um candidato que defende a tortura não tem caráter;

Quem vota em um candidato que diz que crianças gays devem ser agredidas pelos pais não tem caráter;

Quem vota em um candidato que diz que opositores devem ser presos ou metralhados não tem caráter;

Quem vota em um candidato que diz que quilombolas devem ser pesados em arrobas não tem caráter;

Quem apoia um candidato que, governando o país na maior tragédia de nossa geração, imita caçoando pessoas sem ar, morrendo, não tem caráter;

Quem apoia um candidato que sabidamente criou um gabinete para criar e espalhar notícias falsas não tem caráter;

Quem apoia um candidato que louva a Ditadura Militar e diz que seu erro foi ter matado “pouca gente” não tem caráter;

 Quem apoia um candidato que boicota abertamente a vacinação é mau caráter;

Quem apoia um candidato que diz que as pessoas que recebem auxílios de renda são vagabundas é mau caráter;

Quem apoia um candidato que abertamente defende o genocídio indígena, que disse que o grande erro brasileiro foi não ter feito o que foi feito nos EUA, em que eles foram dizimados, é mau caráter;

Quem apoia um candidato que diversas vezes já manifestou o seu desprezo por mulheres é mau caráter;

Quem apoia um candidato que diz que a melhor coisa que existe no Maranhão é um presídio em que havia acabado de ocorrer uma chacina é mau caráter;

Quem apoia um candidato cujo vice disse que o problema do Brasil eram os filhos de mãe solteira é mau caráter;

Quem vota em um candidato que exalta um torturador em rede nacional no processo de julgamento de sua vítima é mau caráter;

Quem vota a favor de um candidato que promete dar licença às forças policiais para que elas matem suspeitos é mau caráter;

Quem silencia frente a tudo isto e opta pela neutralidade não tem caráter.

Desfiz minha amizade com boa parte das pessoas do meio que votaram em Bolsonaro em 2018. E também com as que votaram nulo. Em alguns pontos acho que estas são até piores. Ao não votarem em Bolsonaro, elas se mostraram capazes de entender que ele era ruim. Mas ao não votarem em Haddad, mostraram que acham que qualquer uma destas coisas que citei é tão grave quanto corrupção na Petrobrás ou um apartamento no Guarujá. Ser corrupto é o menor dos crimes de Bolsonaro. Ele é muito corrupto, mas isto não é pior do que nada que citei. Se Bolsonaro não fosse ladrão, continuaria sendo pior do que o pior corrupto do mundo. Por política nunca desfiz amizades. Desfiz pela defesa de direitos humanos. A eleição de 2018 foi sobre isto. A eleição 2022 será sobre isto. Qualquer outro assunto é perda de tempo. Coisa de mau caráter querendo disfarçar o próprio mau caratismo. Assim como em 2018, a eleição não será sobre esquerda e direita. Será sobre humanidade e barbárie.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

O juiz e o Exército

 


A vitória de Jair Bolsonaro em 2018 foi possível graças à união de duas forças retrógradas e fascistas, uma de natureza militar, liderada pelo próprio ex-capitão, e outra vinda das primeiras instâncias do Poder Judiciária, liderada por Sérgio Moro, ambas igualmente reacionárias e autoritárias. Se nos anos 1960 estes dois grupos não tinham problema em simplesmente dar um golpe, no novo século estas forças tentam dar uma aparência de legalidade à tomada de poder. É necessário que haja eleições, mesmo que elas sejam uma farsa. Coube a Moro o papel de impedir a candidatura de Lula, candidato que venceria as eleições, e de manipular processos de forma a ajudar os parceiros do projeto. Foi assim nas eleições estaduais de Rio de Janeiro, Paraná e Goiás. Coube ao Exército o papel de ameaçar as instituições que poderiam impedir que a farsa se concretizasse. Um país que aceita que um militar ameace dar um golpe de Estado por Twitter já se rendeu. A aliança ficou clara quando Moro aceitou tornar-se ministro da Justiça do governo que ajudou a eleger. Em qualquer lugar sério, o fato de o juiz prender o primeiro colocado e depois virar ministro do segundo já seria suficiente para que a fraude fosse denunciada. Por aqui não foi. No fundo porque quem apoiou isto sempre soube o que estava acontecendo.

Bolsonaro e Moro não se separaram por diferenças de visão de mundo, mas sim por ambições pessoais. Moro não fico puto porque Bolsonaro interveio na Polícia Federal, mas sim porque ele, Moro, não conseguiu intervir. Disse diversas vezes que havia sido uma promessa do presidente que as indicações da Polícia Federal seriam dele. Não tem nada a ver com independência. Moro não era e não é contra a interferência do governo no órgão, desde que a interferência seja dele. Até sair do governo, Moro não mostrou nenhuma discordância em relação ao rumo do governo durante a pandemia. Até elogiou o então chefe por comprar cloroquina mais barata da Índia.

A saída de Moro do governo poderia levar a uma cisão na aliança entre militares e baixo clero do Judiciário. Não levou, e isto me surpreendeu. O baixo clero do Judiciário não desembarcou do governo junto com o ex-líder. É importante lembrar que este baixo clero do Judiciário foi fundamental na desestabilização dos dois governos anteriores, de Dilma e Temer. Os dois não conseguiam fazer nada, nem escolher ministros, que ações na primeira instância travavam as nomeações. Bolsonaro segue até hoje fazendo e acontecendo sem que nada aconteça na primeira instância. Um caso emblemático deste apoio é a situação do ex-ministro Ricardo Salles, que deixou o governo quando seus crimes eram investigados pelo Supremo porque sabe que na primeira instância nada acontecerá.

O governo Bolsonaro, obviamente, fracassou. Não tinha como dar certo. Colocar um maníaco, lunático e psicopata que nunca escondeu sua psicopatia no poder não tinha como dar certo, afinal. Junte-se à personalidade do presidente a maior pandemia dos últimos cem anos e vivemos a maior tragédia da nossa geração enquanto o presidente passeava de jet ski, corria atrás de ema, promovia aglomerações e festas, boicotava a vacina e mentia. Mentia e mente muito e o tempo todo. Chegou ao governo assim e não tem razão para mudar agora que está no topo. Uma parte dos aliados deste projeto, vendo a possibilidade de derrota do projeto, resolveu desembarcar de Bolsonaro. E Moro parece estar ganhando espaço entre os militares.

Vemos um número considerável de militares de alta cúpula abandonando o presidente agora que o barco afunda. Como ratos. Todos eles se apresentado como “exemplos de responsabilidade” enquanto o governo que apoiaram segue cumprindo sua promessa de matar. A cartinha de Antônio Barra Torres, presidente da Anvisa, surge neste contexto. Estes militares estão entrando de cabeça na candidatura de Moro. General Santos Cruz, um dos que ameaçou golpe de Estado se o STF revisse a prisão em segunda instância em 2018, e ex-ministro do governo Bolsonaro, é um dos chefes de campanha de Moro. Se Bolsonaro conseguiu manter o apoio na primeira instância do Judiciário no divórcio em 2020, Moro agora avança entre os militares. Eles enxergam no ministro a chance de prosseguir no poder e de continuar o projeto, personalizando a tragédia em Bolsonaro. "Ele nos enganou", dizem estes dois grupos que apoiaram o candidato que prometeu matar ou expulsar opositores, entrar em guerra contra a Venezuela e que disse que a ditadura matou pouco, que deveria ter matado "uns 30 mil".

“A democracia é uma concessão do Exército”. Assim pensa Bolsonaro. Assim pensa a cúpula do Exército. Eles acham que estão fazendo um favor permitindo que a democracia exista. 2018 serviu para mostrar que ela já não existe mais. Nenhuma democracia existe em um lugar em que um militar ameaça um golpe de Estado e não é preso por isso. É importante tem isto em mente na eleição de 2022. Ela não vai acabar com a eleição de Lula. Os grupos de Bolsonaro e Moro não estarão dispostos a conceder. Esta turma não voltará para o quartel. E isto exigirá uma mobilização do que restou de democracia que não se resumirá ao dia da eleição e à festa na noite da vitória. Exigirá um esforço de reconstrução. E se destruir foi fácil, a reconstrução durará décadas. 

Bolsonaro era o plano A. Moro é o plano B. Esta turma pode até aceitar a posse de Lula. Mas estão desde já trabalhando no plano C.


quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Barra Torres, a Anvisa e as pessoas que não prestam

 


É importante ter uma coisa em mente. Nenhuma pessoa que tenha aceitado participar do governo Bolsonaro em qualquer momento presta. Bolsonaro foi um deputado de trabalho quase nulo e insignificante durante 28 anos de mandato, ganhou fama participando de programas de subcelebridade e de humor, que deram espaço para seu lunatismo em troca de audiência. Chegou ao poder graças a um processo de destruição exercido por membros corruptos do judiciário aliados a setores da grande mídia dispostos a tudo para evitar que a esquerda continuasse no poder. Seus momentos de maior “destaque” em sua carreira político estão sempre ligados a manifestação de algum preconceito. Negros, mulheres, movimentos sociais e principalmente gays. Disse que crianças gays deveriam apanhar, que preferia um filho morto a um filho gay. Disse que o maior erro da ditadura foi “matar pouco”. Em sua campanha presidencial, prometeu matar ou expulsar do país os seus opositores. Também prometeu entrar em guerra contra um país vizinho que nada nos fez e tirar o Brasil da ONU. Repetindo, qualquer pessoa que tenha aceitado trabalhar em um governo que tenha sido eleito com estas propostas não presta. Qualquer pessoa com acesso à informação que não tenha feito oposição a este governo desde o dia em que ele foi eleito deve ser vista com desconfiança. O horror não começou com a pandemia.

Antônio Barra Torres, presidente da Anvisa, é um picareta. Mesmo que tivesse presidido a Anvisa com técnica e competência, seria um picareta. Pelo simples fato de ter feito parte deste governo. Ele é almirante e foi um dos muitos militares incompetentes e inexperientes na gestão pública a assumir um cargo relevante. Sua gestão na Anvisa foi marcada pela liberação de um número nunca antes visto de agrotóxicos e pela burocracia na liberação (ou não de vacinas), na maior parte das vezes agradando Jair Bolsonaro.

A Anvisa fez tudo que pode para não liberar ou atrasar a Coronavac. Se não fosse a ação dura e correta do governador de São Paulo, João Doria Jr., e a pressão intensa da sociedade, a liberação da vacina possivelmente não teria acontecido. Se não fosse a Coronavac, estaríamos hoje ainda mais fodidos do que já estamos. Bolsonaro só aceitou comprar as outras vacinas quando Doria começou a vacinar com a Coronavac em SP e quando Lula voltou a ter direitos políticos. Até agora, a Anvisa não liberou a mesma vacina, a única que pode ser produzida em território nacional, para aplicação em crianças. Argumentos burocráticos. Mesmos argumentos que foram usados para não liberar a Sputnik, vacina usada em boa parte da América Latina e que já havia sido negociada pelos governadores do Nordeste, todos adversários do presidente. Muitas vidas teriam sido salvas se a Anvisa tivesse liberado o medicamento. A ideia de que a Anvisa trabalhou bem nas vacinas durante a pandemia é uma falácia. Na maior parte do tempo foi aliada de Bolsonaro no processo de criação de entraves na vacinação.

Em março de 2020, pandemia começando, Bolsonaro fazendo merda, lá estava Barra Torres participando de manifestação com o presidente. Ambos sem máscara. Festejando a tragédia que se anunciava. Pessoas como Barra Torres não estão acostumadas a cobranças pelo que fazem. Elas são muitas. As “enganadas”. As que dizem que votaram em Bolsonaro porque achavam que ele era “diferente”. Diferente sem dúvida ele é. Nada é mais diferente do que correr atrás de uma ema com um remédio que não tem eficácia durante uma pandemia. Nada é mais diferente do que boicotar a vacinação infantil. Nada é mais diferente do que gravar vídeo caçoando de pessoas sem ar no ápice da tragédia. Barra Torres e os imbecis que queriam alguém “diferente” para “acabar com tudo isto daí” tiveram a missão duplamente cumprida. Ele é diferente e acabou com tudo. Não sobrou nada.

Uma parte da cúpula do Exército, vendo o barco afundar, resolveu cair fora. Estão tentando embarcar na candidatura de Sérgio Moro, maior responsável pela eleição de Bolsonaro. Nada mais natural do que isto. Personalizar a tragédia em Bolsonaro e governar sem ele. Gente que tem o autoritarismo na veia. A aliança jurídico-militar. O juiz que prendeu o primeiro colocado e se tornou ministro do segundo, junto com os generais que ameaçaram dar um golpe de Estado caso o Supremo não mantivesse a decisão. Um bolsonarismo sem Bolsonaro. A cartinha de Barra Torres nada tem a ver com divergências com Bolsonaro. Tem a ver com um movimento político. Assim como o seu processo de "beatificação". Movimento de gente que em 2018 estava na rua celebrando a tragédia que começava. Gente que não acha que estava errada. Gente que não presta.


domingo, 9 de janeiro de 2022

A Reforma Trabalhista foi uma bosta

 


É muito fácil encontrar uma pessoa e responsabilizá-la por todas as nossas mazelas. Jair Bolsonaro é a pior pessoa do mundo, mas é fruto de uma sociedade doente, uma sociedade em que mais da metade dos eleitores topou ser cúmplice de um projeto de governo lunático e assassino. Mais do que isto, uma sociedade que fez tudo que pôde para permitir que esta pessoa chegasse ao poder, prendendo num processo completamente fajuto aquele que impediria este maníaco de chegar ao poder. Sim, a prisão de Lula custou vidas. Bolsonaro é sem dúvida o maior responsável pelo fracasso brasileiro na contenção da Covid. Fez o inferno para atrapalhar qualquer medida que impedisse a propagação do vírus e salvasse vidas. Boicotou as medidas de distanciamento social, incentivou aglomerações, atrasou o máximo que pôde o pagamento do auxílio que permitiria aos autônomos fazer algum tipo quarentena por algum período com alguma estabilidade financeira, caçoou dos doentes, atrapalhou a compra de vacinas, espalhou notícias falsas sobre as mesmas, incentivou o uso de um remédio ineficaz. Fez o diabo e não foi afastado. Em qualquer país minimamente decente, a classe política e a sociedade teriam se unido para tirar este maníaco do poder quando ficasse claro que a sua loucura significaria a morte de milhares de pessoas. Mas o país que fez impeachment por causa de um Fiat Elba e que inventou um crime chamado “pedalada fiscal” foi incapaz de realizar este impeachment. Como dito, Bolsonaro é fruto de uma sociedade doente.

Isto dito, uma outra causa importantíssima do nosso fracasso em salvar vidas foi a precariedade do trabalho. Quase a metade da população ativa brasileira trabalha na informalidade (40,6%). Temos um sistema de proteção social montado para proteger apenas os trabalhadores formais. Previdência, seguro-desemprego e auxílio-doença, apenas quem tem carteira assinada tem estes direitos. Estes 40,6% inicialmente tiveram sua renda reduzida basicamente a zero no começo da pandemia e a um pouco mais de metade de um salário mínimo após o auxílio emergencial que chegou atrasado. R$ 600 ou R$ 1200 ajudaram, mas não dá para um pai ou para uma mãe de família ficar em casa com este valor. Uma lição que a sociedade deveria retirar disto é que precisamos urgentemente trazer esta multidão para o sistema de proteção social, e isto se faz expandindo-o para os sem carteira assinada ou incentivando a contratação com carteira assinada.

Antes de falar mal desta bosta de Reforma, é importante dizer que a precarização do trabalho não é fruto da Reforma Trabalhista. Sempre fomos um lugar de trabalho precarizado. Não há nada mais insano do ponto de vista lógico, por exemplo, do que esta maluquice de MEI. Pare para pensar, por favor. Uma pessoa se cadastra como uma empresa, tendo a si mesma como proprietária e única funcionária, trabalha muitas vezes para uma única empresa e é tratada como uma fornecedora, e não como uma trabalhadora. A relação trabalhador x empresa se transforma em uma relação empresa x empresa, e o trabalhador-empresa que jogou pela janela todos os seus direitos em nome disto é enganado pela ideia de que vai pagar menos imposto. Se você acredita realmente que ter MEI é melhor para você, você está sendo enganado. Simplesmente não é. Chegamos ao ponto em que empresas simplesmente não aceitam mais contratar trabalhadores sem que eles sejam MEI. A MEI que ficou em casa durante a pandemia faliu. E o ministro da Fazenda maníaco do governo maníaco disse que não ia fazer nada para ajudar pequenas empresas porque elas não geram emprego. Vai se foder. O Brasil passou anos estimulando a ideia de que o trabalhador deve ser individualizado e qualquer tipo de união entre eles foi demonizada. Os sindicatos foram basicamente demolidos. Uma boa parte dos trabalhadores, os de classe média principalmente, foram convencidos da ideia de que qualquer dinheiro que seja gasto por alguma coletividade era roubo. Taxa sindical e imposto. Ele foi acostumado a lutar por si e se afastar destas coisas. Foi despolitizado. O grande problema da Reforma de 2017, fora o fato de que ela foi feita por um governo sem legitimidade e por um vice que foi eleito numa chapa que prometera o contrário, foi que com ela o Estado deu um gigante passo para reconhecer que esta realidade é “moderna” e que o problema não está na ausência de direitos trabalhistas deste mundo de pessoas, mas nos direitos daqueles que os têm. Não só nada é feito para incluir aqueles que não têm direitos como parte do sistema de proteção social, como ainda estimula que mais pessoas saiam deste sistema. Incentivou terceirização e prometeu empregos fictícios enquanto facilitou e barateou as demissões. Os empregos não vieram, o crescimento não veio, e isto me parece meio óbvio. O país não vai crescer tornando a vida das pessoas uma bosta.

Não gosto de dizer que deveríamos tirar um ensinamento da pandemia. Acho que às vezes isto acaba servindo para romantizar a tragédia. Mas é fato que a pandemia deveria ter servido para mostrar que nenhum ser humano é uma ilha. A saída para a pandemia era, e ainda é, coletiva. Não adiantava (e não adianta) apenas você ficar em casa do mesmo jeito que não adianta apenas você tomar vacina. É necessário que todos façam a sua parte para que a solução seja alcançada. Não há sucesso individual, apenas coletivo. Não adianta se fechar numa porra de um condomínio, morar no último andar, colocar 5 trancas na porta, contratar seguranças armados, viajar duas vezes por ano, pagar um plano de saúde, trocar de carro uma vez por ano, pôr o filho para aprender inglês. Uma hora a conta pelo seu egoísmo vai chegar. E vai chegar na forma de medo. E vai chegar na forma de demissão e falência. Vai chegar na forma de violência. Sua vida não ficará melhor enquanto você não pensar no coletivo e não entender que este individualismo nos leva a barbárie. A pandemia não vai acabar com você ficando em casa, mas com o garoto precarizado rodando a cidade de bicicleta para trazer o seu hambúrguer. A sociedade não vai melhorar enquanto este garoto não estiver recebendo o suficiente para ter uma vida decente e tendo um Estado que garanta a sua proteção caso algo o impeça de trabalhar.

Vivemos em uma sociedade em que o último presidente eleito recebeu mais de 50% dos votos prometendo prender e matar oponentes. Pessoas que votam em alguém assim perderam qualquer capacidade de enxergar o outro, e por isto é fundamental restabelecer os laços de comunidade. E o mundo do trabalho é um dos focos disto. O outro trabalhador deve ser visto como colega e não como concorrente. O coletivo precisa estar preparado para ajudar os mais carentes e falhamos fortemente nesta missão durante a pandemia. Uma possível revogação da Reforma Trabalhista seria um passo fundamental para iniciar uma nova era no Brasil. Um país que precisa ser reconciliado e reconstruído. O Brasil precisa de paz, e a paz só é obtida compartilhando.

E na boa, a Reforma foi uma bosta. Está tudo uma bosta. Se você acha que ela foi um avanço, na boa, não foi avanço porra nenhuma. Acorda e olha para o que está ao seu redor.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Djokovic e Austrália: O imbecil e a truculência

 


Novak Djokovic é um imbecil. Esta é a causa inicial da confusão que o deixou preso em um aeroporto na Austrália. Todas as pessoas que estão se recusando a tomar a vacina por um motivo que não seja muito sério são imbecis. Todas. E “não querer” não é um motivo sério. São pessoas que estão colocando em risco a saúde pública por egoísmo e ignorância. E quando a gente fala de Djokovic, a gente fala de bastante ignorância. A esposa do tenista, Jelena, foi bloqueada por alguns dias no Instagram no começo da pandemia por compartilhar um vídeo que dizia que a Covid era transmitida pela rede 5G. Djokovic não é responsável pelo que a esposa posta, claro, mas sua atitudes durante a pandemia mostram que é bem provável que ele compartilhe este tipo de maluquice. É um grau muito elevado de tosquice.

Djokovic é um tipo específico e perigoso de idiota: o idiota bem-sucedido. Djokovic é possivelmente o melhor tenista de todos os tempos. O maior campeão da modalidade, mobiliza uma multidão de fãs por onde vai. Isto significa que muito provavelmente Djokovic não deve ouvir um não na vida desde os 18 anos. Pessoas bem-sucedidas normalmente se cercam de pessoas que aplaudem tudo que elas fazem, e quando esta pessoa é idiota ela normalmente se cerca de idiotas. Estas pessoas idiotas provavelmente aplaudiram a ideia idiota do idiota do Djokovic de organizar um torneio idiota durante a primeira onda da pandemia. E quando a gente fala de uma pessoa bem-sucedida e idiota, um dos maiores problemas é que ela acha que o fato de ser bem-sucedida é uma prova clara de que ela não é idiota. O dinheiro e a fama trazem tudo que ele quer, portanto se ele quer ficar sem tomar vacina, ele acha que pode.

Dentre as muitas coisas que me incomodam muito na pessoas que são anti-vacinas é a forma como elas simplesmente não querem lidar com nenhuma consequência da sua escolha. Não sei de nenhum país em que as pessoas estejam realmente sendo obrigadas a tomar vacina. Talvez a China, mas não sei. Ninguém está sendo preso ou tendo a casa invadida por não tomar vacina. Elas só estão, com razão, enfrentando restrições. Num momento de pandemia, é totalmente racional que pessoas que façam a escolha de não tomar a vacina sofram algumas restrições enquanto a doença persistir. Primeiro pela falta de vontade de participar do esforço coletivo para superá-la, e segundo pelo risco sanitário que ela representa. Não quer tomar a vacina, então se isole enquanto a pandemia durar.

Isto não tem nada a ver com o conceito real de liberdade. Liberdade é uma conquista coletiva. Se você acha que liberdade é fazer o que você quer e quando quer enquanto outra pessoa está se fodendo porque você faz isto, você está errado. Isto não é liberdade, é privilégio. Não há liberdade real enquanto a sua suposta “liberdade” individual foi possível graças a exploração e opressão de outras pessoas. Você não está curtindo sua liberdade quando vai fazer curso em Amsterdã pago pelo pai enquanto sua família paga uma miséria à sua empregada doméstica. Você está curtindo seu privilégio. A liberdade real só existe quando obtida por todos e para todos e é uma luta constante de todos. A ideia atual de liberdade está muito ligada a comércio e à realização de vontade. “Você é livre porque compra o quer e faz o que quer”. Não. Quando você compra uma roupa barata feita por mão-de-obra escrava você não está sendo livre porque escolheu comprar aquela roupa, você está sendo um instrumento de opressão. Liberdade não é olhar apenas para o próprio umbigo. É pensar nas consequências coletivas de suas escolhas. É meter uma vacina no braço quando a sociedade precisa.

Isto dito, o governo da Austrália está agindo de forma babaca. A Austrália tem toda a razão, toda toda, toda memo, ao exigir que apenas pessoas vacinadas entrem em seu país. É o que países governados por gente minimamente decente fazem. Porém a Austrália LIBEROU a entrada de Djokovic. Ele só entrou no avião quando a liberação foi dada. A decisão do governo australiano gerou mal-estar, óbvio, e só depois disso é que Djokovic foi barrado no aeroporto por um suposto problema no visto. Um problema que provavelmente não existe, porque ninguém diz ao certo qual é. Djokovic conseguiu a liberação para entrar através de uma regra de exceção, sem que ninguém também explicasse em qual ponto desta regra ele entrou. Ser um idiota bem-sucedido, talvez. Mas o certo é que a liberação aconteceu e pará-lo no aeroporto fazendo publicidade política disto é um ato de truculência. Se aceitaram a ida dele, que aceitem a entrada e lidem com a consequência ao invés de fazer este show patético agora.

Há um certo populismo que se alimenta de duas coisas. A primeira é a truculência contra pessoas ricas, que muitas vezes serve para justificar as ações cometidas diariamente contra pessoas pobres. Aqui no Brasil, muitas vezes analistas aplaudiam a Lava-Jato porque “pela primeira vez víamos pessoas ricas presas no Brasil”. Não se importavam com a truculência das ações e com as inúmeras e claras arbitrariedades cometidas pela operação. Ao invés de buscarmos uma sociedade mais humana, passamos a aplaudir a expansão da desumanidade e aplaudíamos cada vez que Sérgio Cabral era humilhado por juízes justiceiros. A porta do horror se abriu. Uma segunda é a truculência com estrangeiros, com pessoas que vem achando que “aqui é bagunça”. Vimos isto aqui no Brasil na ação da Anvisa em Brasil x Argentina, quando a agência parou a partida porque quatro jogadores argentinos estariam no país irregularmente, quando teve todas as oportunidades de resolver o assunto antes da partida e impedir o circo. Até hoje a Anvisa não apresentou os supostos documentos falsificados dos argentinos, mas ninguém foi atrás disso. Ninguém quer ir atrás ou impedir o circo. Pelo contrário, monta-se tudo para realizar o circo. A Anvisa conseguiu ter sua ação transmitida ao vivo em rede nacional e foi ovacionada pela sociedade sedenta por “justiça”.

O primeiro-ministro da Austrália já se pronunciou em rede social dizendo que na Austrália as regras servem para todos e aquilo que já sabemos. Está sendo aplaudido. Todos estão errados. E normalmente quando todos estão errados, todos acham que estão certos. Djokovic é um imbecil. O pior tipo de imbecil. Mas neste caso está sendo vítima de truculência. O fato de sermos todos vítimas de seu egoísmo e de sua ignorância não deveria permitir que fossemos favorável à humilhação que ele está sofrendo. Até o maior dos imbecis deve ter algum direito assegurado e não pode ser usado como brinquedo por um governo buscando autopromoção.   


segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

O último ano

 


O último ano chegou. Pelo menos não consigo imaginar uma situação diferente. Uma vez tentei imaginar como será se eu acordar na última segunda de outubro e descobrir que isto vai continuar. Não vai. Não é possível.

O Brasil passou desde 2016 por um processo de auto implosão que eu sinceramente  não conheço igual. Era inimaginável. Tá, houve sim papel americano na Lava Jato. Mas todo o processo de destruição foi praticado por agentes nacionais. Foi a grande mídia nacional, o Judiciário nacional, a classe média nacional e, principalmente, o eleitorado nacional. Não conheço nenhum caso em que uma pessoa tão abjeta como Bolsonaro tenha chegado ao poder com mais da metade dos votos da população. Foi o Brasil que fodeu o Brasil. Ok, houve toda a fraude para tirar Lula do páreo, mas ok, mesmo assim, é inacreditável que a saída de uma pessoa do processo tenha sido suficiente para que a pior pessoa do mundo se tornasse presidente. Nos últimos seis anos assistimos a destruição do sistema democrático, de quase todo o aparato público, da proteção social, da presunção de inocência, do direito à defesa, do sentimento de sociedade. Sim, porque uma sociedade que escolhe um candidato que ameaça matar ou expulsar seus opositores não existe mais. Uma sociedade que não tira do poder uma pessoa que caçoa das vítimas da maior tragédia da geração não existe mais. Uma sociedade que sucumbiu, em que a relação com o outro não é marcada pela empatia e pela solidariedade, mas pelo medo e pela desconfiança.

01/01/23 será um dia de festa. Mas não se engane, o que acontecerá neste ano de 22 é algo inimaginável. Com base em antecedentes históricos, podemos perceber que o último ano de governos de pessoas como Bolsonaro costumam ser o pior. O que será pior do que o que vivemos desde 2016? Algo que ainda não sabemos. Mas quanto mais Bolsonaro e sua turma perceberem que a casa deles está caindo, maiores serão as loucuras e maiores serão as radicalizações? O que é mais radical do que atrapalhar vacinação de criança? Não sei. Bolsonaro joga com o inimaginável. Ele é o “diferente”. Será o “diferente” até o fim.

2022 será bem foda. Os dois nomes de 2016 farão o possível para que o último ano não seja o último ano. Vão fazer o possível para não perderem o que “conquistaram”. Sim, eles veem o Brasil atual como fruto de uma “conquista”. Em algum momento o juiz e o capitão vão se unir novamente. Falando de lei e de ordem. Falando de prender e matar. Fustigando o caos. Dê uma olhada na rede social do juiz. É apenas caos disfarçado por slogans de algum marqueteiro especialista em autoajuda. Tentarão repetir 2018. Mas desta vez vão perder. E se esta turma só soube semear o caos enquanto estava ganhando, você vai ver o que farão quando perderem. Imagine o que serão os dois meses entre a vitória e a posse do Lula? Com Bolsonaro presidente... Não dá para imaginar. 

A reconstrução exige paz. E a paz não se faz conversando com os amigos, e sim com os adversários. O metalúrgico e o médico entenderam isto. Quando duas pessoas minimamente civilizadas, dá para imaginar o que vai acontecer. A reconstrução passa por este gesto. Mas até lá, teremos que viver o último ano do Horror. E ele será mais horroroso do que nunca. Inimaginável até para quem o viveu até agora. 2023 será o ano da paz. Mas 2022 será o último da guerra. O pior.