sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Tropa de Elite, CQC e o Brasil da barbárie

 

Algumas obras definem gerações. É assim com Tropa de Elite, aquele que, chego a afirmar, é o mais importante e influente filme de nossa história. É óbvio que há milhares de filmes nacionais melhores do que aquela porcaria, mas nenhum foi tão influente. Nele, o herói é um psicopata deprimido, o Capitão Nascimento, que usa sua farda para espalhar a barbárie em regiões pobres do Rio de Janeiro. Pouco importava que Nascimento fosse o maior criminoso do filme. Sim, ninguém comete tantos crimes no filme quanto ele. Nascimento mata e tortura sem nenhum medo de punição. O público brasileiro lotou os cinemas e as bancas de camelôs, urrando de alegria cada vez que Nascimento espancava um jovem negro em busca da “verdade”, culminando com a cena em que ele enfia um saco plástico na cabeça de um suspeito. A cena tem um realismo chocante, mas ninguém fechou os olhos. O público sentia prazer vendo a tortura. Tudo vale pela “verdade”, inclusive o crime. O maior dos criminosos se tornou o exemplo a ser seguido pelo público médio brasileiro.

O personagem principal do filme, a meu ver, não é o herói criminoso, mas o aspirante Matias. Matias é um de nós, um cidadão esforçado que só quer fazer o bem. Cansado das injustiças da sociedade, é facilmente atraído pelo herói psicopata (eles são sedutores, afinal) até se transformar em um. A cena final, em que Matias coloca uma arma na cabeça de um bandido, não aceitando seu pedido de clemência e estourando seus miolos, completa o processo de desumanização do personagem e do público. Nascimento venceu. O estado criminoso é glorificado. Não é apenas Matias que foi transformado em psicopata por Nascimento, mas também o público. Aquele que aceita que um funcionário do estado pratique crimes é criminoso. Nascimento nos tornou cúmplices da barbárie. Um pouco depois do lançamento do filme, Luciano Huck escreveu um texto em algum jornal em que era colunista (não me lembro se na Folha ou no Estadão, acho que na Folha) em que reclamava da sociedade porque tinham roubado seu relógio. Huck escreveu que tudo o que queria era um Capitão Nascimento que resolvesse seu problema. Naquele dia, Huck, o cidadão normal, deixou claro que não via nada de errado em um membro do estado enfiar um saco na cabeça de uma pessoa para que ela devolvesse o seu relógio. Huck estouraria os miolos do ser humano que roubou o seu relógio.

Nascimento não realiza nenhuma prisão legal em todo o filme. Todas as suas ações são baseadas na truculência, no assassinato e na tortura. Assim nascia o herói, assim nascia o mito. O público de Tropa de Elite, nove anos depois, aplaudiria outro torturador nas telas. Quando Jair Bolsonaro dedicou seu voto ao torturador Carlos Ulstra na trágica sessão de impeachment de Dilma Rousseff, o então deputado sabia que a população já estava desumanizada a ponto de não achar que a tortura seja um crime. Não há erro em torturar bandido e se a mídia passou anos repetindo “o PT é bandido, o PT é bandido, o PT é bandido”, eles merecem ser torturados. O urro por Nascimento em 2007 foi o urro por Bolsonaro em 2016. Bolsonaro, porém, não é Nascimento. Bolsonaro é o miliciano picareta. Aquele que entra na favela depois que Nascimento matou para tomar conta da distribuição de gás e de luz. É o que transforma o trabalho assassino de Nascimento em lucro. O papel de Nascimento na história é de Moro. Era ele quem prendia e deixava preso de forma ilegal até que a delação montada se convertesse em “verdade”. Era ele quem não se precisava se preocupar com a lei. Era ele que combinava a produção de provas com a acusação. Ele se tornou o verdadeiro guia dos Matias da vida real. Não há nada mais perigoso do que o criminoso agente do Estado liberado para cometer crimes.  Nascimento e o miliciano picareta se encontraram em 2018, com Bolsonaro presidente e Moro ministro. A união durou pouco. Assim como na segunda parte do filme, o miliciano logo arrumou um jeito de se livrar do capitão psicopata.

A vida imita a arte. Menos de um ano depois que Tropa de Elite preparou o grande público para a psicopatia, um grupo de jovens de classe média vestindo terno conquistou a TV brasileira com frases vazias, arrogância, agressividade e provocações em vídeos, tudo isto patrocinado por grandes marcas. O caro leitor pode pensar que estou falando do MBL, mas não, estamos falando do CQC. Mas sim, a estética é a mesma. O CQC apresentou para o brasileiro de classe média aquelas que seriam suas grande armas na guerra contra todos aqueles que não concordavam e que passaram a chamar de “bandidos”: o celular e a agressividade. Não importa se a outra pessoa não quisesse dar a entrevista, na era do celular ela é obrigada. A outra pessoa não tem mais o direito de não ser humilhada, ela é obrigada a isto pelo repórter, quase sempre com o argumento de que “eu pago seu salário”. A partir do momento em que uma pessoa paga seu salário, argumentava o programa, ela tem o direito de fazer e falar o que quiser. Não à toa, embora a audiência do programa não fosse exatamente estrondosa, sua repercussão era gigantesca e a publicidade o adorava. Quer mensagem melhor para a elite do que esta? “Eu pago seu salário, então cala a boca”.

 A edição era a alma do negócio e o foco não era o entrevistado, mas sim o entrevistador. O entrevistado, muitas vezes forçado a isto, era convertido em escada para a ascensão do entrevistador, que ganhava muito dinheiro como garoto propaganda. Este entrevistador que lacrava passou a ser o exemplo a ser seguido pela classe média consumidora. Danilo Gentili e Rafinha Bastos se tornaram fenômenos em redes sociais e criaram a estética da “inteligência” dos anos 2010. Se antes a inteligência era fruto do conhecimento adquirido no mundo acadêmico, nos livros ou na experiência de vida, a “nova inteligência” dos anos 2010 era fruto de séries, viagens para a Europa, cerveja artesanal, vinho, investimento em bolsa de valores e reclamações. Muitas reclamações, principalmente contra o politicamente correto. Num país em que temos um milhão de coisas incorretas, o principal alvo da “nova inteligência” era algo que tem o termo “correto”. É o politicamente correto que ainda impedia, por exemplo, uma parcela da população de enxergar o heroísmo de um psicopata com uma metralhadora e fardado matando pobres na favela, por exemplo.

Numa geração com cada vez mais pressa, o tipo de comunicação do CQC foi muito atraente para a juventude das redes sociais. Eles faziam o que o Datena faz, mas sem ser popularesco. Se Moro quis passar uma lei que permitia ao estado fazer “pegadinhas” contra investigados, em que uma pessoa ofereceria propina a um servidor público apenas para saber se ele é honesto, filmando tudo isto, o CQC já fazia isto há muito tempo. Políticos eram convidados para falsas entrevistas, em que eram ridicularizados sem saber o que estava acontecendo. “Eles são nossos funcionários, afinal”. Mais do que ser inteligente, o que importa neste mundo da classe média é parecer inteligente. Não à toa o líder desta “turma da pesada de jovens mudando tudo” é Marcelo Tas. Nenhum nome na história da TV brasileira ganhou tanta fama com pose de intelectual, com falsas provocações e denúncias que tem como principal foco valorizar o jornalista. Em busca de audiência, o CQC foi o programa que possivelmente mais deu espaço ao então deputado Jair Bolsonaro para que ele falasse suas asneiras. A principal arma do programa era ridicularizar os convidados e impedir eles convidados falassem algo útil. Num ambiente deste, ganhou destaque o convidado mais ridículo e que não tinha nada útil para falar.

Como dito, toda a estética da direita fanática de classe média foi trazida pelo CQC. Se hoje temos pessoas ligando aparelhos celulares em aviões para xingar políticos, devemos isto aos jovens uniformizados de Tas. Mais do que isto, a forma como a mídia tradicional passou a cobrir política mudou muito a partir deste programa. Nas entrevistas dos presidenciáveis do JN de 2018, por exemplo, William Bonner falou mais do que todos os candidatos. E mais do que isto, o foco passou a ser totalmente nos defeitos dos candidatos, sem que houvesse nenhum espaço para que eles apresentassem suas qualidades. Marina Silva não pôde falar sobre meio-ambiente, Ciro Gomes não pôde falar sobre economia, Fernando Haddad não pôde falar sobre educação. Num cenário em que ninguém pôde falar sobre suas qualidades, ganhou aquele que não tinha qualidade alguma. Ter qualificação é coisa do politicamente correto, e no mundo em que ele é combatido, vence aquele que não tem qualificação nenhuma.

Kim Kataguiri, líder do MBL, se encaixaria perfeitamente como repórter do CQC. Isto porque a estética do grupo é a mesma do programa. Classe média revoltada falando para classe média revoltada, para alegria da elite pronta para manipular esta classe média. Não à toa, Kataguiri ganhou espaços em todos os tipos de mídia, mesmo sem qualificação alguma. Em uma entrevista, afirmou que havia abandonado a faculdade pois “sabia mais que o professor”. Isto foi um pouco antes de dizer que Marx havia se arrependido do comunismo ao ver a Primeira Guerra Mundial. Marx morreu 30 anos antes da guerra começar. Mas não importa. A inteligência para seu público vem da estética e não do conhecimento. Vídeos curtos e editados, buscando ridicularizar o oponente, com poucas informações e muitos slogans, frases que nem sempre dizem algo, mas que ficam. “Just do it”. “I am loving it”. “Muda Brasil”. “Vem pra rua”. Apenas faça o que? Você está amando o que? Mudar o Brasil em que direção? Ir para a rua fazer o quê? Não importa. Nada importa no mundo dos slogans. Temos até um partido cujo nome é um slogan, o Novo. Marcelo Tas, apresentador do CQC, disse hoje em entrevista que é um “radical do contra. Um polemista, um cara que nasceu errado”. O que isto quer dizer? Absolutamente nada. O CQC é a estética do nada. Digo no presente porque, embora o programa tenha sido encerrado, sua influência ficará por muito tempo. Pelo tempo da barbárie.


quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O guarda-sol

 

“A empresa escravista, fundada na apropriação de seres humanos através da violência mais crua e da coerção permanente, exercida através dos castigos mais atrozes, atua como uma mó desumanizadora e deculturadora de eficácia incomparável. Submetido a essa compreensão, qualquer povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro, para ser ninguém ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente, como um animal de carga” (Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro)

Moisés Santos, 53 anos, funcionário de uma loja do Carrefour em Recife, morreu vítima de um infarto fulminante durante o expediente de trabalho. Enquanto o corpo não pôde ser removido, a gerência da loja teve uma ideia que condiz bem com a forma como lidamos com as tragédias de nossa história: cobriu o corpo com um guarda-sol. A preocupação é manter a loja funcionando, pensou o gerente. A preocupação é manter a economia rodando, pensaram os empresários brasileiros.

Enquanto mais de mil pessoas seguem morrendo por dia em razão da Covid-19, vamos cobrindo os corpos com guarda-sóis. A história do Brasil é uma grande sequência de desumanizações. O que não vemos não nos incomoda. O morto é apenas um transtorno, algo passageiro que deve ser tirado o mais breve possível do caminho daqueles que vivem.

Uma coisa que a tragédia que vivemos explicitou é a completa falta de empatia social que temos. É impossível convencer boa parte das pessoas a qualquer tipo de sacrifício se elas não acham que serão atingidas pessoalmente pela tragédia. Vemos parcela significativamente grande de pessoas jovens e ricas simplesmente desconsiderando que a epidemia existe e tocando a vida como se nada estivesse acontecendo. O fato de que elas não são do grupo de risco já é suficiente para que elas achem que o assunto não lhes toca. E mais do que isto, estas pessoas não se preocupam com o fato de que, embora muito provavelmente não desenvolvam a doença com maior risco, podem transmitir o vírus a pessoas que correm risco. O máximo que conseguem é se preocupar com alguém da família. De resto, basta o guarda-sol.

Num belo editorial feito durante a pandemia, o Jornal Nacional disse que a história cobraria aqueles que hoje estão sendo omissos enquanto vivemos a nossa maior tragédia coletiva em cem anos. Por mais que o editorial tenha sido bonito, ele está errado. Diversos escravagistas, por exemplo, são homenageados pelo Brasil. Os torturadores da ditadura foram restabelecidos pelo presidente genocida. Achar que nossa história é marcada pela justiça e pelo acerto de contas é desconhecimento. Quando houve as manifestações que derrubaram estátuas de escravagistas nos EUA, a primeira preocupação do governo de SP foi colocar a polícia para proteger as estátuas daqui. Em janeiro deste ano, uma ação da polícia de SP resultou na morte de nove jovens negros e pobres na favela de Paraisópolis. Três dias depois, o governador do estado, chefe desta polícia, recebeu o prêmio de brasileiro do ano da revista Isto É. Nossa história é marcada por mortes e pelo guarda-sol. E mais do que isto, pela proteção ao guarda-sol.

No começo da pandemia, o empresário Roberto Justus criticou duramente as medidas de prevenção adotadas pelos governos dos estados. “Não podemos sacrificar a economia por causa de 10, 15 mil vidas”, disse o empresário. Cem mil mortos depois, o empresário anunciou que seu reality show seria adiado em razão da pandemia. Mas disse que estava tranquilo, todas as cotas de publicidade já estavam vendidas. Nenhuma empresa ficou com vergonha de ligar seu nome a um apresentador que acha que 10 ou 15 mil vidas não valem nada.

O grande guarda-sol vai sendo aberto não apenas para esconder os mortos, mas também para esconder os culpados. Com sempre. E toda vez que alguém tenta arrancar o guarda-sol, tudo é feito para desacreditá-lo. Tivemos nas décadas de 2000 e 2010 o único momento em nossa história em que houve alguma força governamental tentando tirar o guarda-sol. Mesmo que a brecha tenha sido bem pequena, já foi suficiente para causar muito incômodo. Mantê-lo de pé é fundamental para manter a engrenagem funcionando. Os defensores do guarda-sol inventaram um mito, colocaram-no no poder e agora estão se armando para defender o guarda-sol.

Do ponto de vista pessoal, nunca tinha sentido tanto que o Brasil tinha fracassado como nação quanto neste período da pandemia. Eu realmente achava que, sem querer romantizar a tragédia, que isto de certa forma criaria algum tipo de sentimento coletivo que nos faria sair da barbárie que vivemos. Eu estava errado. Quanto maior a tragédia, maior o guarda-sol. E continuará assim. Até um dia em que o guarda-sol não der conta. 

Uma nação é aquela em que seus habitantes se cuidam e se preocupam entre si. Cada pessoa é um mundo e cada morte é o fim deste mundo. Perdemos mais de cem mil mundos na tragédia. Perderemos mais muitos outros. Moisés e as vítimas da Covid são vítimas da mesma tragédia. A tragédia de uma sociedade que se esforça para não enxergar. O Carrefour lamentou a morte de seu funcionário e disse que vai “rever os protocolos”. Possivelmente a loja entrará em promoção. Nada acontecerá com o Carrefour. Nada acontecerá com Justus. Nada acontece enquanto tudo acontece. “Moinhos de gastar gente” é o nome do capítulo do livro de Darcy Ribeiro cuja citação dá início ao texto. É a melhor definição do Brasil. O Brasil é uma empresa, um moinho que mói pessoas. Não é uma nação.

 

Momento num café [Manuel Bandeira]

 

Quando o enterro passou

Os homens que se achavam no café

Tiraram o chapéu maquinalmente

Saudavam o morto distraídos

Estavam todos voltados para a vida

Absortos na vida

Confiantes na vida.

 

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado

Olhando o esquife longamente

Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade

Que a vida é traição

E saudava a matéria que passava

Liberta para sempre da alma extinta.


sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Cemitérios, finados, pai e Vitória 2x3 Corinthians

 


Eu sempre achei que uma das coisas mais feias que existe nas cidades grandes são estes cemitérios de pedra. Eles contam muito sobre o que nos tornamos. Não basta mais os esforços para nos diferenciarmos em vida, passamos a buscar a diferenciação na morte. Isto, claro, sempre existiu. Basta ver as pirâmides do Egito, afinal. Mas desde o século XIX, possivelmente, houve uma massificação deste processo. Algumas pessoas constroem verdadeiros mini templos em seus jazigos. Acho brega e prepotente.

Meu pai faleceu no dia 02/11/1998. Todo ano meu pai me levava ao cemitério no feriado de Finados, era um feriado sagrado para ele. O túmulo da família dele fica no cemitério São Paulo, que é um deste cemitério de pedra feios que existem espalhados por aqui.  Na entrada, temos os túmulos das pessoas mais importantes, com seus pequenos templos de gesso feito por artistas talentosos, mas de mau gosto. O túmulo da família do meu fica um pouco depois do centro do cemitério. Você sobre, entra a esquerda num corredor que não sei se tem nome, em dado momento entra à direita, sobre mais um pouco, e chega. Fica ao lado de uma pia, que sempre foi o meu ponto de referência naquele labirinto.

Eu tinha 14 anos quando meu pai morreu de câncer, o que quer dizer que ele esteve doente basicamente em todo período que convivemos neste planeta. Eu era completamente adaptado ao fato de ter um pai doente e achava totalmente normais as idas e vindas do hospital. Não sei se toda pessoa é assim antes de perder alguma pessoa próxima que ama, mas eu achava completamente impossível que meu pai morresse. Mesmo com câncer, esta ideia nunca tinha me passado pela cabeça. Coisas claras indicando que ele estava partindo aconteciam sem que eu me ligasse disso. 02/11/1998 foi uma segunda-feira e na sexta-feira todas as irmãs dele que moravam no interior vieram visitá-lo. No sábado ele foi para o hospital e no domingo um tio me levou para aquela que seria minha última visita a ele. Meu pai ainda não havia sido sedado e nossa última conversa foi sobre o jogo Vitória 2x3 Corinthians pelo Campeonato Brasileiro de 1998. Às vezes eu acho que sou a única pessoa no mundo que lembra que este jogo existiu.

Meu pai era corintiano fanático. Em 1977, por exemplo, ele simplesmente não conseguiu assistir ao terceiro e decisivo jogo da final contra a Ponte Preta. Trancou-se no cinema e se isolou do mundo numa sessão do filme O Inferno na Torre. Ele faz parte daquela geração que chamo de corintianos azarados. Até 1998, o Corinthians era basicamente uma porcaria. Era campeão de vez em nunca. A juventude dele foi vivida nos 23 anos de fila. Foi neste ano que o Corinthians ganhou o segundo título brasileiro, já sem ele vendo. De lá para cá, o Corinthians ganhou tudo. Penso nele cada vez que o Corinthians ganha algo, aliás.

A grande marca deste Vitória 2x3 Corinthians pelo Campeonato Brasileiro de 1998 é que o segundo tempo foi até os 60 minutos. Não lembro por quê, só lembro que foi até os 60 minutos porque esta foi a última coisa que disse a meu pai. Ele acordou, sorriu, perguntou quanto tinha sido o jogo, eu respondi “3x2, e o segundo tempo foi até os 60 minutos” e ele voltou a dormir. Ele já estava respirando por aparelhos, mas isto não foi o suficiente para me tirar da bolha. Eu só percebi que meu pai estava morrendo quando encontrei a minha irmã no mesmo dia. Ela tinha ido viajar com a equipe de basquete da universidade e voltou ao saber o que estava acontecendo. Assim que ela voltou, olhei nos olhos dela e a abracei, e neste abraço minha ficha caiu. Fui com ela ao hospital e bateu o desespero quando soube que meu já estava sedado e não acordaria mais. Um dos motivos deste desespero era ter que conviver com o fato de que minhas últimas palavras a ele não seriam “eu te amo”, mas “o jogo foi até os 60 minutos do segundo tempo”.

Minha relação com a morte foi totalmente moldada por este evento. Se antes eu achava que ninguém do meu mundo iria morrer, a partir daquele momento eu passei a achar que elas iam morrer a qualquer momento. Na semana passada, por exemplo, liguei para minha irmã e ela me respondeu que tinha ido dar uma volta de bicicleta, que me ligava na volta. Eram 18:00 e ela me ligou às 20:00. Eu passei estas duas horas com o telefone em cima da perna. Deixei de morar com a minha mãe há 5 anos e pelo menos uma vez a cada seis meses eu faço uma visita surpresa porque ela não atendeu ao telefone. Uma característica minha, por exemplo, é que muito raramente uma briga comigo dura mais de um dia. Para que eu não peça desculpas, mesmo estando certo, é necessário que o assunto seja muito importante e que eu esteja muito certo. E política é um destes assuntos importantes, para deixar claro. No momento atual, em que somos governados por um genocida lunático cercado de um grupo de fanático, não apenas se pode como se deve brigar por política. É um dever moral. Se estas duas características não estiverem presentes na briga, eu peço desculpas em umas duas horas, mesmo estando certo. Não há nada pior, aliás, do que quando peço desculpas para uma pessoa, mesmo sabendo que eu estava certo, e esta pessoa não as aceita.

Quando eu ia ao cemitério com meu pai no dia de Finados, uma das coisas que me fascinava naquele labirinto de pedras era ver as plaquinhas dos mortos, especialmente quando aparecia alguém que tinha nascido em mil oitocentos e bolinhas. Achava fascinante que pudesse ter havido vida cem anos antes de eu nascer. E começava a achar fascinante que haveria vida cem anos depois de eu nascer. Eu sempre tive noção de que ia morrer, apesar de achar que meu pai nunca morreria. Foi no dia 02/11/1998 que eu passei a ser confrontado com o dia 07/05/2024. Meu pai morreu de câncer de próstata, meu avô morreu de câncer de próstata e, a partir deste dia, o conselho que mais recebi na vida foi: “Não se esqueça que você precisa começar a fazer os exames aos 40 anos”. Achava este conselho uma bobagem quando tinha 14 anos. Agora tenho 36. Quando eu tinha 14, parecia que o dia em que eu teria 40 estava muito longe. Me aproximo dos 40 e agora acho que o dia em que eu tinha 14 está tão perto.

Cada uma daquelas plaquinhas tem uma vida repleta de acasos. Sou do tipo que acha que é ele que rege nossas vidas, antes mesmo de nascermos. Por exemplo, um dos grandes acasos da minha vida aconteceu trinta anos antes de eu nascer, quando meu pai ganhou na loteria. Não era o prêmio de loteria de hoje, claro, mas garantiu uma série de regalias a ele e boa parte dos privilégios da minha vida. Com este dinheiro, meu pai comprou uma casa no Cambuci, para a qual eu, minha mãe e minha irmã nos mudamos nos anos 1990 e que vendemos em 2011, comprando o apartamento em que minha mãe mora. Parece simples, mas demorei muito tempo para perceber o papel da sorte e do privilégio na minha vida. Defendia com unhas e dentes a meritocracia, gostava de pensar que tinha “direito” as coisas que tenho porque trabalhei muito por elas. Bobagem gigantesca. Boa parte delas veio por um golpe de sorte.

Meu pai tinha duas famílias. Não vou entrar no mérito de como isto aconteceu, mas entre estas duas famílias rolou aquela briga quase clichê que acontece quando alguém nesta situação morre. Para quem gosta de brincar com o acaso, como eu, esta briga foi determinada lá em algum ano dos 1950, quando cinco bolinhas determinaram o futuro de um ser que nasceria em 1984. Uns dez anos depois da morte do meu pai, eu percebi que ele tinha sido um filho da puta na história. Lembrem-se que claramente sou uma pessoa que demora muito para perceber as coisas. Descobri isto convivendo com uma pessoa que tinha vivido uma situação inversa à minha. Eu sou fruto da segunda família e esta pessoa era da primeira. Até aquele dia, eu nunca tinha me posto no lugar da família que tinha sido enganada. Foi uma merda de período que durou uns dois anos. Passou numa conversa aleatória. Nunca toquei neste assunto com ninguém, até um dia em que numa viagem de carro com minha irmã resolvi mencionar algo do tipo com a minha irmã. Perguntei, sem usar estes termos, claro, se ela não achava que meu pai tinha sido um filho da puta na história. A resposta da minha irmã foi: “Não vale a pena pensar nisso”. Foi libertador. Nem sempre vale a pena pensar nas coisas, afinal. Se meu pai foi um filho da puta, ele pagou por isto tendo filhos que se odeiam e que entram em guerra por causa de imóveis. Deve ser a pior sensação do mundo.

Na época em que meu pai morreu, eu era viciado em comprar CDs. Era minha paixão, usava todo meu dinheiro nisto. Na semana de 02/11/1998, comprei dois CDs. Uma coletânea dos Ramones e um CD especial que o U2 lançou exatamente naquele dia. Era uma coletânea com as músicas deles dos anos 1980, com numeração especial. Meu pai faleceu na noite de 01 para 02/11 e minha irmã resolveu me levar neste lançamento como primeira tentativa de tocar a vida. Foi uma enorme bobagem. Eu nunca consegui ouvir estes dois CDs direito na vida e passei a relacioná-los diretamente ao evento da morte do meu pai. Em 2018, resolvi me livrar destes CDs. Isto aconteceu assistindo ao programa Gol, o Grande Momento do Futebol. Eu sempre saía aos domingos, gostava de curtir a Paulista aos domingos. Naquele dia choveu e eu estava de ressaca, resolvi ver TV. Bem naquele dia, por algum motivo X, a Bandeirantes resolveu passar os gols daquele jogo. Fazia uns 15 anos que não chorava por aquele assunto, e lá estava o Corinthians x Vitória de 1998 arrancando as lágrimas de um assunto que eu julgava cicatrizado. Naquele momento, estava decidido que ia me livrar dos CDs. Na segunda de manhã, atrasei no trabalho porque passei num sebo do centro. Recebi R$ 5 pelos CDs. Comprei dois pães-de-queijo. De certa forma, eu achava que manter aqueles CDs era uma obrigação, que eu precisava me manter preso àquele momento, que precisava me punir por não ter tido uma última conversa decente com meu pai. Me libertei. Senti que o acaso me libertou. A chuva do domingo, o produtor do Gol, o Grande Momento passando estes gols de um jogo que não significou nada para ninguém bem naquele dia, na minha cabeça tudo aquilo foi um sinal. “Não vale a pena pensar nisso”.

Superar não é esquecer, é aprender a conviver com as lembranças. Nunca vai cicatrizar. Toda vez que o Vitória é rebaixado no Campeonato Brasileiro sinto um enorme alívio. Um ano sem o jogo. Mas por mais que venda os CDs no sebo, o 02/11/1998 estará sempre na minha vida. Como o sentimento triste no dia dos pais. E seguirá sendo assim, para o bem e para o mal. Saber que a pessoa que amamos não era perfeita, mas que isto não é motivo para deixarmos de amá-las. Saber que cada plaquinha do cemitério de pedra ainda vive em alguém e que daqui a cem anos eu viverei em alguém. A vida é um ciclo regido pelo acaso. Um ciclo de aprendizado e de traumas. Vivemos a maior tragédia coletiva da nossa geração, com mais de 100 mil mortos de Covid nos últimos cinco meses e com mil pessoas morrendo por dia. Enquanto há um esforço para naturalizar a tragédia, para seguir a vida como se isto fosse uma “gripezinha”, só consigo pensar no meu pai. Colocar-se no lugar do outro é uma forma de entender a dor. A minha dor é a dor do outro. A dor do outro é a minha. 


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Ozônio no rabo dos outros é refresco


Em um novo capítulo deste conto que mistura surrealismo, tragédia e comédia pastelão que se tornou o Brasil, ganhou espaço nesta semana um novo “tratamento” para a Covid-19: enfiar ozônio no cu. Embora ainda não tenha ganho o apoio oficial do governo e do presidente, os defensores do ozônio no cu já foram recebidos pelo atual eterno provisório ministro da Saúde. Parece ser questão de tempo para que o presidente embarque na campanha pelo ozônio no cu.

Eu não sei vocês, mas às vezes eu fico pensando se é a mesma pessoa que cria estas histórias e que de certa forma fica se divertindo ao ver até onde elas podem ir neste manicômio que virou o Brasil. Tipo, será que um dia um cara não pensou: “vamos inventar que o PT quer criar uma mamadeira no formato de piroca para ver se as pessoas acreditam”, rindo e se animando ao ver que as pessoas acreditaram? Será que este mesmo cara depois não inventou “vamos dizer que querem mudar o sexo das crianças nas escolas para ver se eles são imbecis o suficiente para acreditar” e mais uma vez viu sua história ir para frente? Agora este mesmo cara pode ter decidido “vamos dar um passo além, vamos ver se as pessoas estão dispostas a enfiar ozônio no próprio cu se a gente inventar que, sei lá, cura o coronavirus?” Já consagrada, a ideia ganhará o sucesso final com o apoio do presidente, o Messias da imbecilidade.

A porcentagem de pessoas que se cura da Covid-19 é algo em torno de 95%. A porcentagem de pessoas que se cura da Covid-19 usando cloroquina é de 95%. Já para o ozônio no cu, também deve ser de 95%, isto considerando que não haja algum efeito colateral que reduza esta taxa e que, sei lá, mate a pessoa. Não deve fazer bem, afinal, enfiar ozônio no cu. O fato é que a maioria das pessoas com Covid-19 que enfiarem ozônio no cu se curarão da doença, obviamente não graças ao ozônio no cu, mas apesar dele. Mesmo assim, porém, elas realmente acreditarão que foi este produto que salvou suas vidas. Elas dirão aos conhecidos: “fiquei doente, mas foi só colocar ozônio no cu que melhorei”. A pessoa que ouvir a história correrá aos conhecidos dizendo “conheço um cara que teve Covid-19, enfiou ozônio no cu e melhorou na hora” e assim uma verdadeira corrente de ode ao ozônio no cu tomará conta do manicômio. É provável que em poucas semanas já veremos Osmar Terra com espaço na Globonews e na CNN defendendo o uso do ozônio para cu, para desespero de algum especialista em medicina que verá sua opinião igualada a de um fanático imbecil.

Pode ser ignorância minha, mas eu não sei nem onde vende ozônio, se é fácil comprar e se existe um ozônio específico para cus. Mas se eu tivesse loja de alguma coisa, já estaria estocando o produto para atender esta nova demanda. Não sei se tem empresa que comercializa ozônio para cu na Bolsa de Valores, mas se houver, minha dica é que os investidores corram em busca destes valiosos papéis, especialmente se o presidente embarcar na campanha. Quem fizer isto ganhará mais dinheiro do que no boom dos bitcoins. Ozônio para cu e armas, os dois produtos que mais valorizaram no governo Bolsonaro.

Há umas duas ou três semanas, aconteceu aquela que eu achava que seria a cena mais bizarra deste manicômio que é o Brasil durante a pandemia. Numa quinta-feira ensolarada, lá estava o presidente do país correndo atrás de uma ema que o havia bicado, mostrando uma caixa de remédio que, embora já tenha a ineficácia para o tratamento da Covid mais do que comprovada, ele jura que é a cura para a pandemia. Eu estava errado. A história do ozônio no cu consegue ser ainda mais bizarra do que isto e não duvido nada que em duas ou três semanas veremos o presidente correndo atrás da ema para aplicar um pouco de ozônio no cu dela. Eu tenho estado errado há muito tempo, aliás. Achava que era impossível que o Brasil elegesse um completo imbecil insignificante como presidente, que o país se uniria contra ele caso esta possibilidade existisse. Eu estava errado. Achei também que esta enorme tragédia, sem querer romantizá-la, iria de alguma forma restaurar algum espírito de coletividade em nossa sociedade individualizada, que todos veriam como ações individuais podem trazer consequências negativas, achei que o conhecimento seria valorizado, que todos faríamos uma autocrítica sobre nossos comportamentos nos últimos anos. Eu estava errado. Ao invés disso, estamos reabrindo lojas, escolas e voltando partidas de futebol enquanto mais de mil pessoas morrem por dia. Eu achava que a pandemia seria uma chance de humanizar uma sociedade que se desumanizou pelo ódio da última década, processo este que chegou ao ápice na eleição de 2018, com a vitória de um candidato que possui todos os preconceitos possíveis, que ameaçou guerra contra vizinhos que não nos ameaçam e que prometeu matar ou expulsar do país aqueles que não concordassem com ele. Eu estava errado. Ao invés disso, estamos enfiando ozônio no cu. Talvez já façamos isto deste outubro de 2018. Naquele momento tínhamos duas opções, a civilização e a barbárie, representada dois anos depois pelo ozônio no cu. Venceu o ozônio no cu.