Algumas obras definem gerações. É
assim com Tropa de Elite, aquele que, chego a afirmar, é o mais importante
e influente filme de nossa história. É óbvio que há milhares de filmes
nacionais melhores do que aquela porcaria, mas nenhum foi tão influente. Nele,
o herói é um psicopata deprimido, o Capitão Nascimento, que usa sua farda para
espalhar a barbárie em regiões pobres do Rio de Janeiro. Pouco importava que
Nascimento fosse o maior criminoso do filme. Sim, ninguém comete tantos crimes
no filme quanto ele. Nascimento mata e tortura sem nenhum medo de punição. O
público brasileiro lotou os cinemas e as bancas de camelôs, urrando de alegria
cada vez que Nascimento espancava um jovem negro em busca da “verdade”, culminando
com a cena em que ele enfia um saco plástico na cabeça de um suspeito. A cena
tem um realismo chocante, mas ninguém fechou os olhos. O público sentia prazer
vendo a tortura. Tudo vale pela “verdade”, inclusive o crime. O maior dos criminosos
se tornou o exemplo a ser seguido pelo público médio brasileiro.
O personagem principal do filme,
a meu ver, não é o herói criminoso, mas o aspirante Matias. Matias é um de nós,
um cidadão esforçado que só quer fazer o bem. Cansado das injustiças da
sociedade, é facilmente atraído pelo herói psicopata (eles são sedutores,
afinal) até se transformar em um. A cena final, em que Matias coloca uma arma
na cabeça de um bandido, não aceitando seu pedido de clemência e estourando seus
miolos, completa o processo de desumanização do personagem e do público.
Nascimento venceu. O estado criminoso é glorificado. Não é apenas Matias que
foi transformado em psicopata por Nascimento, mas também o público. Aquele que
aceita que um funcionário do estado pratique crimes é criminoso. Nascimento nos
tornou cúmplices da barbárie. Um pouco depois do lançamento do filme, Luciano
Huck escreveu um texto em algum jornal em que era colunista (não me lembro se
na Folha ou no Estadão, acho que na Folha) em que reclamava da sociedade porque
tinham roubado seu relógio. Huck escreveu que tudo o que queria era um Capitão
Nascimento que resolvesse seu problema. Naquele dia, Huck, o cidadão normal,
deixou claro que não via nada de errado em um membro do estado enfiar um saco
na cabeça de uma pessoa para que ela devolvesse o seu relógio. Huck estouraria
os miolos do ser humano que roubou o seu relógio.
Nascimento não realiza nenhuma prisão
legal em todo o filme. Todas as suas ações são baseadas na truculência, no
assassinato e na tortura. Assim nascia o herói, assim nascia o mito. O público
de Tropa de Elite, nove anos depois, aplaudiria outro torturador nas
telas. Quando Jair Bolsonaro dedicou seu voto ao torturador Carlos Ulstra na trágica
sessão de impeachment de Dilma Rousseff, o então deputado sabia que a população
já estava desumanizada a ponto de não achar que a tortura seja um crime. Não há
erro em torturar bandido e se a mídia passou anos repetindo “o PT é bandido, o
PT é bandido, o PT é bandido”, eles merecem ser torturados. O urro por
Nascimento em 2007 foi o urro por Bolsonaro em 2016. Bolsonaro, porém, não é
Nascimento. Bolsonaro é o miliciano picareta. Aquele que entra na favela depois
que Nascimento matou para tomar conta da distribuição de gás e de luz. É o que transforma
o trabalho assassino de Nascimento em lucro. O papel de Nascimento na história é
de Moro. Era ele quem prendia e deixava preso de forma ilegal até que a delação
montada se convertesse em “verdade”. Era ele quem não se precisava se preocupar
com a lei. Era ele que combinava a produção de provas com a acusação. Ele se
tornou o verdadeiro guia dos Matias da vida real. Não há nada mais perigoso do
que o criminoso agente do Estado liberado para cometer crimes. Nascimento e o miliciano picareta se encontraram
em 2018, com Bolsonaro presidente e Moro ministro. A união durou pouco. Assim
como na segunda parte do filme, o miliciano logo arrumou um jeito de se livrar
do capitão psicopata.
A vida imita a arte. Menos de um
ano depois que Tropa de Elite preparou o grande público para a psicopatia, um
grupo de jovens de classe média vestindo terno conquistou a TV brasileira com
frases vazias, arrogância, agressividade e provocações em vídeos, tudo isto
patrocinado por grandes marcas. O caro leitor pode pensar que estou falando do
MBL, mas não, estamos falando do CQC. Mas sim, a estética é a mesma. O CQC apresentou
para o brasileiro de classe média aquelas que seriam suas grande armas na
guerra contra todos aqueles que não concordavam e que passaram a chamar de “bandidos”:
o celular e a agressividade. Não importa se a outra pessoa não quisesse dar a
entrevista, na era do celular ela é obrigada. A outra pessoa não tem mais o
direito de não ser humilhada, ela é obrigada a isto pelo repórter, quase sempre
com o argumento de que “eu pago seu salário”. A partir do momento em que uma
pessoa paga seu salário, argumentava o programa, ela tem o direito de fazer e
falar o que quiser. Não à toa, embora a audiência do programa não fosse
exatamente estrondosa, sua repercussão era gigantesca e a publicidade o adorava.
Quer mensagem melhor para a elite do que esta? “Eu pago seu salário, então cala
a boca”.
A edição era a alma do negócio e o foco não
era o entrevistado, mas sim o entrevistador. O entrevistado, muitas vezes
forçado a isto, era convertido em escada para a ascensão do entrevistador, que
ganhava muito dinheiro como garoto propaganda. Este entrevistador que lacrava
passou a ser o exemplo a ser seguido pela classe média consumidora. Danilo
Gentili e Rafinha Bastos se tornaram fenômenos em redes sociais e criaram a
estética da “inteligência” dos anos 2010. Se antes a inteligência era fruto do
conhecimento adquirido no mundo acadêmico, nos livros ou na experiência de
vida, a “nova inteligência” dos anos 2010 era fruto de séries, viagens para a
Europa, cerveja artesanal, vinho, investimento em bolsa de valores e
reclamações. Muitas reclamações, principalmente contra o politicamente correto.
Num país em que temos um milhão de coisas incorretas, o principal alvo da “nova
inteligência” era algo que tem o termo “correto”. É o politicamente correto que
ainda impedia, por exemplo, uma parcela da população de enxergar o heroísmo de
um psicopata com uma metralhadora e fardado matando pobres na favela, por exemplo.
Numa geração com cada vez mais
pressa, o tipo de comunicação do CQC foi muito atraente para a juventude das
redes sociais. Eles faziam o que o Datena faz, mas sem ser popularesco. Se Moro
quis passar uma lei que permitia ao estado fazer “pegadinhas” contra investigados,
em que uma pessoa ofereceria propina a um servidor público apenas para saber se
ele é honesto, filmando tudo isto, o CQC já fazia isto há muito tempo.
Políticos eram convidados para falsas entrevistas, em que eram ridicularizados
sem saber o que estava acontecendo. “Eles são nossos funcionários, afinal”.
Mais do que ser inteligente, o que importa neste mundo da classe média é
parecer inteligente. Não à toa o líder desta “turma da pesada de jovens mudando
tudo” é Marcelo Tas. Nenhum nome na história da TV brasileira ganhou tanta fama
com pose de intelectual, com falsas provocações e denúncias que tem como
principal foco valorizar o jornalista. Em busca de audiência, o CQC foi o programa
que possivelmente mais deu espaço ao então deputado Jair Bolsonaro para que ele
falasse suas asneiras. A principal arma do programa era ridicularizar os
convidados e impedir eles convidados falassem algo útil. Num ambiente deste,
ganhou destaque o convidado mais ridículo e que não tinha nada útil para falar.
Como dito, toda a estética da
direita fanática de classe média foi trazida pelo CQC. Se hoje temos pessoas
ligando aparelhos celulares em aviões para xingar políticos, devemos isto aos
jovens uniformizados de Tas. Mais do que isto, a forma como a mídia tradicional
passou a cobrir política mudou muito a partir deste programa. Nas entrevistas
dos presidenciáveis do JN de 2018, por exemplo, William Bonner falou mais do
que todos os candidatos. E mais do que isto, o foco passou a ser totalmente nos
defeitos dos candidatos, sem que houvesse nenhum espaço para que eles apresentassem
suas qualidades. Marina Silva não pôde falar sobre meio-ambiente, Ciro Gomes
não pôde falar sobre economia, Fernando Haddad não pôde falar sobre educação.
Num cenário em que ninguém pôde falar sobre suas qualidades, ganhou aquele que
não tinha qualidade alguma. Ter qualificação é coisa do politicamente correto,
e no mundo em que ele é combatido, vence aquele que não tem qualificação
nenhuma.
Kim Kataguiri, líder do MBL, se encaixaria
perfeitamente como repórter do CQC. Isto porque a estética do grupo é a mesma
do programa. Classe média revoltada falando para classe média revoltada, para
alegria da elite pronta para manipular esta classe média. Não à toa, Kataguiri
ganhou espaços em todos os tipos de mídia, mesmo sem qualificação alguma. Em
uma entrevista, afirmou que havia abandonado a faculdade pois “sabia mais que o
professor”. Isto foi um pouco antes de dizer que Marx havia se arrependido do
comunismo ao ver a Primeira Guerra Mundial. Marx morreu 30 anos antes da guerra
começar. Mas não importa. A inteligência para seu público vem da estética e não
do conhecimento. Vídeos curtos e editados, buscando ridicularizar o oponente,
com poucas informações e muitos slogans, frases que nem sempre dizem algo, mas
que ficam. “Just do it”. “I am
loving it”. “Muda Brasil”. “Vem pra rua”. Apenas faça o que? Você está amando
o que? Mudar o Brasil em que direção? Ir para a rua fazer o quê? Não importa.
Nada importa no mundo dos slogans. Temos até um partido cujo nome é um slogan,
o Novo. Marcelo Tas, apresentador do CQC, disse hoje em entrevista que é um “radical
do contra. Um polemista, um cara que nasceu errado”. O que isto quer dizer?
Absolutamente nada. O CQC é a estética do nada. Digo no presente porque, embora
o programa tenha sido encerrado, sua influência ficará por muito tempo. Pelo tempo da barbárie.
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