Uma lição que o processo de
destruição democrática vivido pelo Brasil deixará a quem estuda o assunto é a
fragilidade da estabilidade de regimes democráticos em países que não têm esta
tradição. Mais do que isto, a forma como o moralismo é sempre usado por forças
imorais para a instalação do autoritarismo. Aqui no Brasil, sem dúvida um falso
combate à corrupção foi o mecanismo para a destruição das instituições
democráticas. A grande maioria das pessoas, em determinado momento, se
preocupou muito mais em apoiar o combate à corrupção do que em defender
princípios democráticos, e desta forma o monstro autoritário foi crescendo.
Basta um vacilo no processo histórico e começa a tragédia. Ela pode começar
pequena e despercebida, mas está lá. O primeiro passo neste processo brasileiro
foi a Lei da Ficha Limpa. Foi ela que deu a membros do poder Judiciário o
direito de tirar do processo eleitoral candidatos que ainda não são
considerados constitucionalmente culpados. Deu a esta camada da elite o direito
de decidir em quem o povo pode ou não votar. A maioria da população achou lindo
este mecanismo de impedir que “bandidos” pudessem ser eleitos. Era o início do
fim.
Na era da aparência, em que o ser
e até mesmo o ter perderam espaço para o parecer, as novas ditaduras não
necessariamente terão tanques nas ruas. Elas fazem o possível para ter uma
aparência democrática, e em um país como o Brasil isto se manifesta através da
realização de eleições. Não deixaremos de ir às urnas por nada, pelo simples
fato de que a maior parte da população, com pouca educação democrática, acha
que votar é o único requisito necessário para se determinar se um país é
democrático ou não. Não importa se, por exemplo, o candidato que estiver
liderando a eleição for preso e censurado, ganhando em seu lugar um outro que
coloca o juiz que manipulou o processo eleitoral como ministro. O importante é
ir às urnas.
A Lava Jato é o grande símbolo da
nossa decadência. Quem comandou o processo de destruição democrática foi ela, e
não Bolsonaro. Este apenas aproveitou o bonde e lhe tomou o protagonismo. A
operação de Curitiba prendeu sem provas, manteve pessoas presas preventivamente
por tempo indeterminado como instrumento de tortura para a obtenção de delações
muitas vezes forjadas, condenou pessoas sem que elas tivessem direito de se
defender de todas as acusações, destruiu o preceito de presunção de inocência,
criou no imaginário da população a ideia de que o trabalho do juiz é ser
inimigo do réu. No Brasil da Lava Jato, inverteu-se a lógica. Se no mundo legal
a delação deveria ser o início do processo, cabendo à acusação investigar e
obter provas a partir desta delação, no novo Brasil da Lava Jato a delação
passou a ser a prova, suficiente não apenas para iniciar o processo e condenar,
cabendo à defesa tentar provar a inocência do réu. Quase nunca dava certo. A
condenação passou a ser vista como símbolo de justiça e a absolvição como
símbolo de impunidade. Muitas vezes, membros da Lava Jato, em suas ações
publicitárias, usavam o alto número de condenações como sinal de produtividade
da operação. Uma verdadeira máquina de prender pessoas, quase uma linha de
produção de fabricação de prisões.
A operação de Curitiba
transformou grandes órgãos de imprensa em aliados. Escolheu um grande órgão em
cada meio de comunicação e os transformou em cúmplices de seus crimes. A TV
Globo era a aliada televisiva, a Revista Isto É no meio impresso e o site O
Antagonista no meio virtual. Todos tinham Moro como informado e ajudaram a
transformar o combate à corrupção em espetáculo midiático, impedindo qualquer
tipo de análise mais crítica da população. E desta forma o direito à defesa e a
presunção de inocência foram descartados pelos mesmos jornalistas que na
matéria seguinte falavam da “importância do voto”. A sacada de Moro foi que
transformar estes meios em cúmplices, além de impedir uma análise crítica dos
meios utilizados pela operação, impediria a divulgação de notícias negativas. A
TV Globo, por exemplo, até hoje abafa o gigantesco escândalo da gravação de
conversas entre Moro e Dallagnol, em que conversas mostram o juiz e a acusação
combinando as táticas para condenar um acusado. Estas conversas foram
suficientes para acabar com boa parte do apoio internacional que a operação
recebia, mas nada mudou aqui dentro. Após sair do governo, inclusive, Moro
ganhou uma coluna no site do Antagonista. Moro não é mais apenas a fonte deste
órgãos, transformou-os em cúmplices.
Nesta semana tivemos dois exemplos
de como a grande mídia segue servindo de porta-voz para os crimes cometidos pela
operação, com as perseguições políticas contra Paes, hoje grande obstáculo do
programa bolsonarista no Rio de Janeiro, e contra os advogados de Lula, o que
incluiu inclusive a obtenção de conversas ilegalmente gravadas pelo então juiz
Sérgio Moro contra os escritórios que defendem o ex-presidente. Um país
minimamente preocupado com processos democráticos ficaria horrorizado ao saber
que um juiz grampeou um escritório de advocacia. Por aqui, ele segue tratado como
herói.
O Brasil passou os últimos anos
preparando uma barbárie. Sem dúvida, o grande motivo para o nosso fracasso na
luta contra o coronavírus é a precariedade das relações de trabalho. Boa parte
do nosso estado de proteção social é voltado para proteger apenas o trabalhador
formal, ao mesmo tempo em que todo o esforço das políticas públicas tem sido
para facilitar a informalização. Os especialistas do mercado, os mesmos que
financiaram a barbárie que vivemos, chamaram isto de “produtividade”. Mais da
metade do país não tem proteção social alguma e ficou a deriva durante a
tragédia. O governo federal fez tudo que pôde para atrasar e barrar o auxílio
emergencial, que só conseguiu ir em frente graças ao trabalho da oposição. Em
qualquer lugar sério, a pandemia geraria um debate sobre como ampliar o nosso
estado de proteção social. Não é o que acontece por aqui.
Punitivismo e individualismo. O
Brasil focou os últimos anos em estimular estes dois valores. Os direitos
sociais vão se convertendo em serviços a serem fornecidos pelos deus-mercado, o
que inclui o trabalho. O antigo trabalhador organizado em sindicatos vai sendo
substituído pelo trabalhador-empresa precarizado, sem nenhum tipo de associação
com outros trabalhadores, pelo contrário, enxergando-o como seu concorrente.
Neste novo mundo, a elite e a mídia incentivam este novo trabalhador-empresa a
enxergar os direitos sociais como privilégios e a ter ódio daqueles
privilegiados. É desta forma que o serviço público vai sendo destruído. O
trabalhador-empresa enxerga o empresário como seu igual e o funcionário público
como inimigo. A sociedade individualista enfrentou uma doença que precisava de
ação coletiva para ser enfrentada. Não deu certo. Foi cada um por si.
Quem iniciou o nosso processo de destruição democrática não foi Bolsonaro, foi Moro. Aquele simplesmente usa os métodos popularizados por este. Não há saída democrática para o Brasil sem combate ao punitivismo. Se o fim começou com a Lei da Ficha Limpa, o recomeço se dará com o fim deste lei. Mas não esperemos isto desta geração. Ela está mais preocupada com outras coisas. E ficará contente em votar uma vez a cada dois anos em eleições fajutas.
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