quinta-feira, 26 de outubro de 2017

O uso político do medo do desemprego


“Pela manutenção da melhora nos dados de desemprego”. Um número significativo de deputados usou esta argumentação ao votar pelo arquivamento da segunda denúncia contra o presidente Michel Temer. O mesmo Congresso que afastou Dilma por uma “corrupção” nunca provada, inocentou Temer, que foi flagrado em gravação conversando sobre propina com um dos donos da JBS. A mesma linha de argumentos costuma ser usada pelos defensores do atual governo em elogios das medidas por ele tomadas. Tudo é feito para “criar empregos”. A Reforma Trabalhista vai facilitar a criação de empregos. A Reforma da Previdência vai facilitar a criação de empregos. As mudanças na legislação do Trabalho Escravo vai facilitar a criação de empregos.
Pesquisa realizada no começo do ano mostra que o desemprego é o terceiro maior medo do brasileiro. Fica atrás da traição e da morte. À frente de corrupção e desigualdade. Nada historicamente é mais usado por movimentos de extrema-direita, em qualquer lugar do planeta, do que a manipulação do medo. Por isso, segurança e desemprego são as pautas básicas adotadas em telejornais da grande mídia e devem ser os assuntos mais abordados nas eleições do ano que vem.
O uso político do medo do desemprego e da violência são as armas que explicam as vitórias de Trump nos EUA e o avanço dos partidos neofascistas na Europa. Numa era de individualismo extremo, as pessoas só enxergam como graves aqueles problemas que acham que em algum momento as afetaram ou podem afetá-las. Boa parte dos americanos se mostrou favorável a um candidato que propunha deportação de imigrantes por um simples motivo, isto tornaria mais fácil conseguir um emprego. Não importa se uma família mexicana com crianças for expulsa dos EUA, desde que isto deixe as vagas de trabalho livres.
A grande mídia brasileira, seja ela na TV, na internet, nos rádios, nas revistas ou nos jornais, é formada por pessoas de elite ou de classe média de grandes cidades informando pessoas de elite ou de classe média de grandes cidades aquilo que estas pessoas de elite ou de classe média de grande cidades querem saber. Quem define o que é importante é um público normalmente fútil e egocêntrico que busca informações com as quais se identifique. É por isso que um atentado que mata dez pessoas em Paris é mais noticiado por esta imprensa e choca mais este público do que um atentado que mata mais de trezentos na Somália. Há uma identificação destes com Paris que não há com a Somália. É por isso que uma bala perdida no Leblon gera choro e passeata entre globais enquanto uma chacina no Vidigal tem bem menos repercussão. E também porque uma matança de crianças no sertão nordestino não gerou tanto assunto quanto matança semelhante ocorreu no Rio de Janeiro há alguns anos. São pessoas que também enxergam fome e miséria como algo distante e desemprego como algo próximo. “Miséria avança no governo Temer” é uma notícia que tem menos destaque do que “Queda no desemprego”.
Flávio Rocha é dono da Riachuelo, uma das empresas com mais acusações de uso de trabalho escravo no Brasil. Ao receber uma notificação do Ministério Público na semana passada, esbravejou e expôs a vida da juíza que ousou condená-lo, pedindo para que ela o “deixasse criar empregos em paz”. Logo foi apoiado pelo MBL, que divulgou dados pessoais da magistrada em redes sociais.
O individualismo nos fez uma sociedade de incapazes de enxergar algo além do nosso próprio umbigo. O pior problema que existe é aquele que nos atinge, por isso desemprego virou algo pior do que miséria. E por isso um governo autoritário se torna cada vez mais aceito. Mate-se a oposição e os bandidos, mas criem-se empregos. Afaste aqueles que atrapalham.
O empresariado está sabendo muito bem utilizar este momento. Conseguiram convencer boa parte da população que o seu maior objetivo é criar empregos e não obter lucros, sendo o estado de proteção social o seu grande inimigo neste nobre intento. A classe média tende a comprar os interesses da elite e aprova, em geral, todas estas medidas. O patrão que demite em dezembro, passa férias na Disney em janeiro e recebe bônus em março agradece.

Como fruto do individualismo, formou-se uma sociedade de pessoas vazias, que se reconhecem apenas como força de trabalho e que conseguem alguma felicidade apenas quando compram algo. Ser “trabalhador” é praticamente a única “qualidade” que muitas pessoas são capazes de enxergar em si mesmas. Não há nada por trás destes indivíduos que só se veem como algo comprado e vendido no mercado de trabalho. Não há para estes, afinal, xingamento maior do que “vagabundo”. As raízes dos avanços da extrema-direita no Brasil, nos EUA e na Europa são individualismo e consumismo. Trabalhar e pagar boleto. No fundo é isto que a sociedade medíocre quer. E é ela que no Brasil sustenta o governo Temer. Pela melhora na situação do desemprego. O resto não interessa.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Como o PSDB se tornou refém do atraso


Fundado por intelectuais de centro-esquerda descontentes com o PMDB durante o governo Sarney em 1988, o PSDB hoje quebra a cabeça para saber como conseguirá manter a extrema-direita em seu eleitorado, atraído pelas ideias reacionárias de Jair Bolsonaro. Ao invés de renegar este tipo de gente, quer continuar os atraindo. O objetivo deste texto é analisar como, num espaço de 30 anos, um partido de intelectuais de ideologia social-democrata se tornou dependente de um eleitorado boçal e odioso, identificado com o MBL.
O PSDB nacional é basicamente o PSDB paulista. É a cúpula paulista do partido que basicamente decide os rumos que o partido tomará nacionalmente. Não à toa, nas sete eleições presidenciais disputadas desde a redemocratização, em seis o candidato havia feito a carreira em SP (Covas em 1989, FHC em 1994 e 1998, Serra em 2002 e 2010 e Alckmin em 2006. A exceção é Aécio Neves em 2014). À época, a política paulistana era basicamente polarizada entre PT à esquerda e Maluf e Jânio à direita, com PSDB e PMDB como opções de centro, um mais à esquerda e outro mais à direita. A direita paulistana sempre se identificou mais com pessoas do que com partidos, desde a época de Adhemar de Barros. Naquele momento, Maluf representava a direita “tocadora de obras”, enquanto Jânio representava a “direita fiscalizadora e dos bons costumes”. Com a saída de Jânio da política e sua morte em 1992, o eleitorado direitista de SP se uniu em Maluf e o levou à sua primeira, e única, vitória em eleição majoritária no mesmo ano. Disputando o segundo turno contra Eduardo Suplicy, Maluf venceu sem o apoio tucano, que ficou do lado petista neste embate. O mesmo ocorrera nas eleições presidenciais de 1989, quando o PSDB apoiou Lula contra Covas. É importante citar, aliás, que depois de Lula, Mario Covas era a pessoa mais odiada pelo eleitorado malufista e seu grande rival desde o período universitário.
A cisão entre PT e PSDB viria em 1994. Graças ao Plano Real, o PSDB, que chegara até a cogitar uma chapa com Lula nas eleições daquele ano, ganhou força nacionalmente e passou a rivalizar com o PT. Neste momento, a atração exercida pelo PSDB no eleitorado se dava por razões basicamente econômicas, com o sucesso do plano em combater aquela que era encarada como o grande problema do Brasil no momento, a inflação. Embora o PT já fosse em todo governo FHC o maior partido de oposição, sempre se aliava aos tucanos em SP no segundo turno contra o malufismo. Foi assim nas eleições municipais de 1996, em que o PSDB apoiou Luiza Erundina contra Celso Pitta, em 1998, quando o PT apoiou Mario Covas contra Maluf na disputa pelo governo de SP, e em 2000, quando o PSDB apoiou Marta Suplicy contra o mesmo Maluf na disputa municipal. A foto de Mario Covas saindo do hospital para votar em Marta e ganhando um beijo da petista, aliás, representa o último momento de amizade e união entre tucanos e petistas em SP.
Já em 1998, a popularidade de Paulo Maluf começou a cair em SP, devido a inúmeros escândalos de corrupção e principalmente devido ao fracasso da gestão Celso Pitta. Poucos políticos devem se arrepender tanto de uma frase quanto Maluf de “Se o Pitta não for um bom prefeito, nunca mais votem em mim”. Já era claro naquele momento que qualquer candidato que fosse para o segundo turno contra Maluf venceria, sempre com a união entre PT e PSDB. A partir das eleições estaduais de 2002, Maluf perdeu a força para chegar ao segundo turno e, pela primeira vez em SP, PT e PSDB passaram a rivalizar. O eleitorado malufista foi em massa para o PSDB. Covas já estava morto e Alckmin, seu sucessor, embora não representasse o ideal “tocador de obras” de Maluf, era uma opção mais aceitável para eles do que o PT.
A rivalidade PT e PSDB se acirrou na década de 2000 e o eleitorado de extrema-direita, inicialmente por pura rejeição a petistas e a Lula, aliou-se ao tucanato, uma vez que não possuía nenhum nome que a representasse. Nenhum estado rejeitou tanto a gestão Lula como SP e, durante um certo tempo, ser oposição a Lula bastava. Com o tempo, porém, o PSDB começou a se transformar para agradar este novo eleitorado. Pautas moralistas passaram a fazer parte dos programas tucanos. Alianças com evangélicos se tornaram comuns e aquelas pessoas que inicialmente estavam no PSDB apenas por rejeição ao PT começaram a mudar o partido. A sigla de intelectuais passou a ser representada por gente como Coronel Telhada, deputado estadual mais votado do partido em SP em 2010 e 2014.
A derrota em 2014 e o acirramento da polarização política fez com que o movimento de extrema-direita interno do PSDB explodisse. A juventude do partido buscou alianças com o MBL, uma milícia de tendências fascistas formada por jovens lunáticos metidos a empreendedores, o partido embarcou de cabeça na maluquice do impeachment, com seus deputados votando por “Deus e pela família” e Geraldo Alckmin inventou João Doria Jr para a cidade de São Paulo. Com Doria, o PSDB finalmente passou a ter um líder que se encaixa no perfil do eleitorado direitista paulistano, com um discurso janista de culto ao trabalho exagerado e lunático e a aprovação de um eleitorado que se identifica com isto. A sua história, aliás, mostra bem a transformação do partido. Entrou no partido apenas em 2001, apenas buscando uma oposição viável ao PT. Ganhou força com o tempo e agora domina.
Doria é o candidato do PSDB mais competitivo para a disputa do Planalto. E não é porque ele é o “novo” ou porque quer “vender tudo”. O motivo principal para Doria ser o tucano mais competitivo é que ele tem o perfil que mais agrada à extrema-direita e se houvesse alguma capacidade de reflexão dentro do ninho tucano as pessoas seriam capazes de enxergar o horror que isto representa. O outrora partido de intelectuais da social-democracia tornou-se dependente de gente que possui o ódio como grande forma de mobilização. Os eleitores de Bolsonaro adoram Doria pelo seu discurso vazio e seu antipetismo doente e obsessivo, não ligam muito para a total ineficiência do "gestor".

Ao inventar Doria, Alckmin criou um nome que hoje é mais forte do que o PSDB em SP. O eleitorado conservador paulistano sempre foi muito mais ligado a nomes do que a siglas e o discurso vazio de Doria se encaixa perfeitamente a estas pessoas. Assim como o prefeito, que provavelmente deixará o partido caso este não se curve a suas vontades, este eleitorado nunca teve identificação com a sigla e não pestanejará ao deixa-lo agora que possui duas opções que agradam mais suas “visões” políticas, Bolsonaro e Doria. Caberá agora ao PSDB decidir se quer perder e continuar existindo ou ganhar e ser dominado pelo reacionarismo do MBL. Os anos aceitando silenciosamente alianças com a extrema-direita para tentar chegar ao poder destruíram o partido original. O PSDB como oposição em nada contribuiu para algum avanço na qualidade do debate político no país, contentando-se em aliar a qualquer um que surgisse para tentar derrotar o PT. Em 1994, o PSDB tinha o apoio de Bresser-Pereira. Em 2014, tinha o apoio de Frota. O PSDB passou anos se contentando em ter o apoio dos medíocres. Agora, resta saber se aceitará ser comandado por estes.

domingo, 8 de outubro de 2017

O fim da gestão Doria


Nove meses após tomar posse, João Doria Jr. Se prepara para deixar a prefeitura de SP enquanto seus números de popularidade começam a cair. Em 31/03/18, Doria provavelmente fará aquilo que aparentemente já queria desde o primeiro dia de sua gestão: sair do cargo de prefeito para se candidatar a algo maior. Como um carreirista do setor privado. Caso consiga completar o chapéu em seu padrinho político Geraldo Alckmin, será candidato a presidente, para alegria dos rentistas do mercado financeiro e da extrema-direita representada pelo MBL. Caso não, sairá candidato a governador. A cidade já de São Paulo só tem a agradecer a saída precoce do prefeito, cuja gestão relâmpago foi um desastre quase que completo.
A eleição de Doria em 2016 foi um dos grandes símbolos dos efeitos que a histeria antipetista teve sobre a sociedade paulistana. Num momento de rejeição completa a qualquer coisa apresentada pelo PT, seja boa ou ruim, Doria se lançou como candidato a prefeitura sem se dar ao trabalho de ter sequer um projeto de governo minimamente consistente. Suas promessas eram basicamente o projeto Corujão da Saúde, a privatização de tudo que fosse possível, que na campanha incluía inclusive uma esdrúxula ideia de privatizar faixas de ônibus e ciclovias, e criticar o PT sempre que foi possível. Não havia desde a campanha nenhuma proposta para mobilidade urbana, moradia, educação, saneamento etc. Para uma sociedade cega de ódio pelo PT, porém, a criação do personagem “João trabalhador” e os xingamentos repetidos a Lula foram suficientes para garantir uma vitória esmagadora.
O investimento maciço em marketing e o uso obsessivo das redes sociais foram duas das características mais marcantes da quase ultrapassada gestão. Isto ficou claro já no início da administração, com o lançamento da operação Cidade Linda. Fantasiando-se de gari, a tática do prefeito para se destacar já era clara. Doria começa seus vídeos falando qual o plano mirabolante da vez, apresentando números falsos para justificar um sucesso inexistente, agradecendo a algum amigo empresário por ter doado algo “sem querer nada em troca” e terminava chamando Lula de safado ou vagabundo, para delírio da extrema-direita. Imitando seu colega americano de Aprendiz, Donald Trump, buscou o choque com a imprensa toda vez que esta apresentava contestações a seus números falsos, primeiro expondo ele mesmo jornalistas que faziam tal ousadia, depois usando seu braço-direito do MBL para realizar o trabalho sujo, investigando a vida pessoal destes profissionais  e acusando-os quase sempre de serem de “extrema-esquerda”. Não há como negar que neste ponto Doria provou que realmente trouxe métodos do setor privado para o setor público, onde críticas a gestores não costumam ser bem aceitas.
Os números do Programa Cidade Linda mostram que a cidade está mais suja e mais mal cuidada hoje do que em 2016. As filas para exames voltaram praticamente ao mesmo patamar de um ano após o fim do Corujão da Saúde. O número de mortos no trânsito subiu após o absurdo aumento de velocidade nas Marginais. O trânsito piorou. Empresários que doam para a prefeitura “sem esperar nada em troca” têm sido repetidamente beneficiados por contratos sem licitações. Acusações de que vendas de patrimônios públicos já tem vencedores decididos antes de acontecer se repetem. O principal evento cultural da cidade, a Virada Cultural, foi destruído. O premiado Plano Diretor apresentado pela gestão anterior vem aos poucos sendo substituído por um plano desenvolvido pelos amigos do setor imobiliário do prefeito, visando estimular a especulação imobiliária. Ciclovias foram desativadas.vA distribuição de merendas nas escolas foi diminuída. A tática de Doria para lidar com o resultado ruim é quase sempre a mesma. Contestação dos fatos, apresentação de uma versão alternativa e confronto com a pessoa que apresenta os números reais. Quase nunca há autocrítica. Dentre as versões alternativas apresentadas pelo prefeito, destaca-se a meu ver aquela em que ele disse que a diminuição na distribuição de merendas era uma tentativa de diminuir a obesidade infantil e aquela em que ele diz que o aumento do número de mortes na Marginal não é fruto do aumento de velocidade, e sim da recuperação econômica.
A frase mais icônica desta gestão foi, a meu ver, aquela em que ele disse que não ligava para a opinião de “istas”, citando petistas, ciclistas, ativistas e jornalistas. Podia ter citado também especialistas, que quase sempre discordam dos planos mirabolantes do gestor. Basta ver como exemplo a opinião contrária quase unânime de quem entende de urbanismo sobre as mudanças no Plano Diretor ou de quem entende de arte urbana sobre a retirada dos grafites na Avenida 23 de maio.
Incentivado por setores do mercado, animado com seu discurso pró-privatizações, e pela ala jovem da extrema-direita do MBL, Doria passou boa parte do seu mandato viajando, seja tentando vender o patrimônio público para empresas estrangeiras, seja passeando pelo país para tornar-se conhecido fora de SP. Neste momento está em Belém para um evento religioso. Diz que pode governar a cidade estando longe, uma vez que pode dar ordens a seus secretários usando o celular. Essa é a visão que o gestor que se apresentou como moderno tem de gestão, ele dando ordens de longe. A principal consequência disso até o momento é a implosão do PSDB, cada vez mais rachado pela figura pitoresca do prefeito. Alberto Goldman, vice-presidente do partido, foi chamado de fracassado pelo prefeito ao dizer que sua gestão não começou.

São Paulo só tem a agradecer o prefeito pelo fato dele querer sair logo da prefeitura. Bruno Covas, que assumirá em seu lugar, dificilmente conseguirá ser pior. A cidade, ao menos, voltará a ter um prefeito. A ideia de Doria ser presidente assusta, claro. Imagine o que seria alguém com a proximidade que ele tem com o MBL chegando ao poder. O que seria o Ministério da Educação nessa hipotética gestão, por exemplo. São Paulo tentará levar ao restante do país o grande símbolo de sua histeria. Mas não vamos sofrer por antecipação. Daqui um pouco menos de seis meses Doria abandona o cargo que claramente nunca quis. Até janeiro de 2018 não terá cargo público. Numa era de retrocessos, qualquer pequeno alívio já deve ser comemorado.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

O papel de Moro e da Lava Jato no avanço do autoritarismo


Um general defende publicamente uma possível intervenção militar. Pesquisa indica que mais de quarenta por cento dos jovens também a defendem. O jornal O Estado de São Paulo diz que esta intervenção poderia ser boa “dependendo do cenário”. Aquelas pessoas que estavam nas passeatas de 2015 com faixas pedindo “Intervenção Militar Já” parecem, afinal, não serem tão minoria quanto a grande mídia adorava alardear no período. O MBL, movimento que liderou aquelas passeatas midiáticas, passou a perseguir jornalistas e exposições de arte. Bolsonaro já tem 20% das opções de voto e lidera entre os mais ricos. O objetivo deste texto é refletir sobre o papel que a Operação Lava Jato no avanço desta onda autoritária no país.
Todo grande regime autoritário surge em momentos de “limpeza”. A rejeição à corrupção faz com que sociedades de “pessoas de bem” aceitem qualquer coisa para combatê-la. Ou ao menos a usem como justificativa para se livrar daqueles que consideram indesejados. Em nome do que diz ser a lei e a moral, o juiz Sérgio Moro e o restante da Operação fazem coisas ilegais e moralmente questionáveis, para dizer pouco. Abaixo alguns exemplos:
- Pessoas estão há mais de dois anos em prisão preventiva sendo chantageadas para delatar o que o juiz deseja ouvir;
 - Delações são tornadas públicas antes de investigadas;
- Conduções coercitivas são realizadas sem que tenha havido tentativa de intimação;
- Estas conduções e prisões são transformadas em espetáculos midiáticos;
- Condenações acontecem sem provas;
- O juiz age como acusador, quase unido à promotoria;
- O juiz exige que as provas sejam apresentadas pela defesa, invertendo a lógica de que é a acusação que deve apresenta-las e não o inverso;
- O juiz grampeia e divulga uma conversa telefônica de uma presidenta, algo explicitamente proibido pela Constituição.
Moro e os procuradores da Lava Jato se colocam acima da lei e não se sentem incomodados por isto. Nem eles nem a mídia que os bajulam. Moro praticamente nunca deu entrevistas a meios de comunicação nacionais. Não sente necessidade de explicar nada à sociedade. Quase todas as suas entrevistas foram dadas a órgãos estrangeiros, em que ele já disse que foi influenciado por heróis de quadrinhos. As únicas vezes em que conversou com órgãos nacionais foi para receber prêmios, na maioria das vezes inventados por revistas ou associações que basicamente querem bajula-lo. Um destes prêmios foi o da Revista IstoÉ, que o premiou como “juiz do ano”, na primeira e provavelmente única edição desta premiação. Esta revista foi a mesma que antecipou sua edição e bateu recordes quando vazou a delação de Delcídio Amaral, uma semana antes da passeata dos patos verde-amarelos. Aquelas em que as pessoas que pediam intervenção eram “minoria”. Dois anos depois, esta delação foi anulada porque o delator não conseguiu provar praticamente nada que havia delatado. O estrago já estava feito.
Nada é mais perigoso para uma sociedade democrática do que juízes e outros membros do Poder Judiciário que se consideram acima da lei. Um crime cometido por aquele que julga é mais grave do que aquele cometido pelo julgado. Todas as infrações cometidas pela Lava Jato são mais graves, inclusive, do que a corrupção que julgam. Uma das principais influências da Operação no avanço do autoritarismo no país é a legitimação do senso de que pode se passar por cima da lei para derrotar algo “maior”.
Outra influência marcante é a ideia de que justiça necessariamente significa punição. Moro raramente absolve. Quase todas as absolvições da Operação vieram na segunda instância, por falta de provas. Praticamente não há questionamentos a Moro do porquê ele ter condenado alguém sem provas, há sim descontentamento da sociedade com os juízes que absolvem, que estariam sendo “permissivos com a corrupção”.
Daltan Dallagnol, talvez o mais famoso e midiático dos procuradores da Operação, autor do já lendário Power Point, criou e divulgou dez medidas contra a corrupção. Entre elas, estão a praticamente extinção do habeas corpus e o quase fim de qualquer obstáculo à prisão preventiva. Coisas típicas de uma sociedade autoritária. Quase não houve questionamentos a ele sobre isto.
A Lava Jato virou filme antes mesmo da Operação acabar. Financiado por “patrocinadores ocultos”, o filme teve acesso a filmagens de prisões e conduções. Quase ninguém achou isto estranho. Moro foi à pré-estreia, onde foi tratado como herói. Seus fãs o consideram acima da lei. Quase todo fã de Bolsonaro é fã de Moro. Enxergam nos dois a capacidade de sobreposição a leis que “protegem bandidos”.

Moro nada faz para negar o personagem que lhe foi criado pela mídia. Pelo contrário, parece gostar de ser um herói como os que ele citou de quadrinhos. O juiz que não cumpre a lei e é amado por isso. Todo autoritarismo começa assim. O juiz dá indícios de estar cansado e querer sair da Lava Jato. Sairá provavelmente ovacionado por bolsonetes, mídia e MBL. Como dito anteriormente, o estrago já foi feito.