terça-feira, 6 de setembro de 2016

A (falta de) visão de Estado na candidatura Doria



“É melhor do que nada”. É desta forma que a maior parte dos eleitores de João Doria Jr. que conheço defende a sua principal proposta para a área da saúde. O candidato pretende pagar hospitais particulares no período da madrugada para alocar aqueles pacientes que ainda não conseguiram ser atendidos no setor público. A campanha de Doria teve até o momento muitas situações em que fica clara a visão da elite paulistana, representada por este candidato, sobre o funcionamento do serviço público para os mais pobres, mas nenhuma foi mais clara do que esta.
Como uma patroa que se sente indo para o céu ao doar roupas velhas que não quer mais para a empregada, a solução de Doria é permitir aos pobres utilizar os mesmos hospitais dos ricos, mas nos horários que estes acham inadequados. Mais do que isto, acredita esta visão que os usuários destes serviços devem ficar felizes e gratos por este tipo de atendimento, uma vez que é “melhor do que nada”. Se não existissem os CEUs, muito provavelmente a proposta de Doria para resolver a educação na cidade seria colocar os alunos da periferia para estudar nas escolas particulares das regiões mais ricas no horário da madruga. O argumento dos defensores dessa sugestão seria dizer que é “melhor do que nada”. A proposta de Doria não apenas acredita que basta àqueles que precisam do serviço público o “resto” do que não é aproveitado pelo mais ricos no setor privado, como garante maior lucro aos empresários da saúde, que poderão alugar seus equipamentos no horário noturno ao Estado. Como as pessoas chegarão da periferia aos hospitais particulares das regiões centrais de madrugada, se o transporte público não funciona neste horário? Doria nunca responderá isto publicamente, mas muito provavelmente pensará algo do tipo, “Ah, aí já é querer demais.”
Nada até o momento foi mais marcante na eleição municipal de São Paulo do que a falta de conhecimento de Doria sobre a cidade. A quantidade de informações erradas ditas pelo candidato, seja por má fé ou por simples ignorância, é gritante. No último debate realizado na Rede TV, vimos dois exemplos claros deste desconhecimento. Ao questionar a candidata Marta Suplicy, o candidato tucano disse que a ex-petista não entregou nenhuma UBS em sua gestão. Foram 59. Cinquenta e nove. Não foram uma ou duas. Foram cinquenta e nove. Em outro momento, debatendo com Fernando Haddad, Doria disse que era um absurdo que nenhuma linha de ônibus funcionasse de madrugada. Já há várias linhas funcionando neste horário. Por fim, mostrou-se contra a proposta de Erundina de aumento de impostos para os mais ricos, dizendo que esta camada “já paga mais impostos”. Interessante que ele não quis usar o verbo “nós” ao falar esta frase, mas independentemente disso, mais uma informação falsa. A maior parte da carga tributária brasileira está em bens e serviços e não na renda. A maior parte dos rendimentos dos ricos vem de lucros e dividendos, que possuem alíquota tributária zero. É por isso que os mais pobres pagam uma parcela maior da sua renda em tributos do que os mais ricos.
Fica claro que a arrogância de Doria o impede, em alguns assuntos, de estudar os problemas da cidade. Típico empresário paulistano bem-sucedido nos negócios, ele é muito provavelmente cercado de bajuladores que só sabem elogiar, fazendo com que o ego do tucano esteja sempre afagado. Não sei se nos três exemplos acima Doria mentiu deliberadamente. Acredito que no caso da carga tributária sim, mas no exemplo das UBS de Marta e dos ônibus noturnos de Haddad, possivelmente ele apenas não saiba. E o pior, não sabe achando que sabe. Há alguns meses, o tucano disse em diversas entrevistas que um dos seus primeiros atos seria acabar com o fechamento da Av. Paulista aos domingos. Ao visitá-la neste dia da semana, porém, mudou de ideia. Disse que gostou da “vibe”. Esta experiência deveria ensiná-lo a conhecer melhor a cidade antes de fazer propostas. Mas isto não aconteceu.
Para Doria, administrar o Estado significa destruí-lo e repassar suas funções aos seus colegas do setor privado. Por isso, defende a privatização do Autódromo de Interlagos e do Pacaembu, achando que é o primeiro a ter esta ideia. Paulo Maluf, Celso Pitta, José Serra e Gilberto Kassab já foram prefeitos, por que não fizeram isto antes? Ainda mais no caso do estádio do Pacambu, em que tínhamos o maior clube da cidade sem estádio. Há razões para isto. Falando primeiramente do Pacaembu, trata-se de um local tombado, portanto nenhuma construtora poderia derrubá-lo para construir prédios. Os três times grandes da capital já possuem estádio, então nenhum deles estaria interessado. Nenhuma outra empresa de eventos estaria também interessada em comprá-lo, uma vez que shows são proibidos no local em horário noturno. Quem compraria então? A resposta é a mesma que impediu Maluf de concretizar a venda nos anos 1990, a Igreja Universal do Reino de Deus. Edir Macedo sonha em transformar o antigo estádio municipal em templo e já era claro mesmo há 20 anos que ele ganharia o leilão, mesmo com o poderoso Corinthians interessado. A questão neste caso é, portanto, a Prefeitura deve procurar alguma forma de tornar o Pacaembu viável ou deve permitir que  vire um templo da Universal? É isto que está em jogo. No caso de Interlagos, o Autódromo é responsável pelo evento mais lucrativo para a cidade, a Fórmula 1, além de ser uma opção de lazer para os moradores da região. Caso seja privatizado, obrigaria a Prefeitura a pagar um aluguel para garantir o espaço para este evento, caso contrário o comprador usaria o espaço para construção de prédios. Quanto a cidade perderia sem este evento? Quais opções de lazer os moradores da região teriam no lugar? Esta é a verdadeira discussão.
Além destas duas propostas, o tucano veio com mais duas ideias de privatizações que nenhum jornalista funcionário de empresas de mídia cujos chefes participam alegremente dos eventos patrocinados pela LIDE, empresa de Doria, quiseram questionar: a privatização de faixas de ônibus e do serviço funerário da cidade. Como privatizar uma faixa específica de uma rua? Vai ter pedágio? O que fazer com quem morrer e não puder pagar o funeral? Deixar num canto? Ou pagar pra empresa privada enterrar? Aparentemente ninguém quer saber.
A candidatura de Doria representa a pá de cal no que havia de resquício de socialdemocracia no PSDB. Uma atitude irresponsável de Alckmin, que interessado em garantir verba dos grandes empresários em sua possível candidatura presidencial em 2018, pode colocar a administração da cidade nas mãos de um empresário arrogante e egocêntrico, capaz de agradar àqueles eleitores que tem como única prioridade o ódio ao PT.
Por fim, há outra proposta de Doria que é muito simbólica sobre o perfil de seu eleitorado. Ele quer “reestatizar” o Controlar, tornando gratuita a revisão obrigatória de veículos. O eleitor de Doria não se preocupa muito em perder áreas de lazer como Interlagos para o setor privado. Mas não quer pagar a taxa de revisão do seu automóvel, acha que isto sim deve ser função do Estado. No fundo, o carro é a única coisa com a qual ele se preocupa. E o resto? Pode ser “melhor do que nada”.


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