“A empresa escravista, fundada na
apropriação de seres humanos através da violência mais crua e da coerção
permanente, exercida através dos castigos mais atrozes, atua como uma mó
desumanizadora e deculturadora de eficácia incomparável. Submetido a essa
compreensão, qualquer povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio,
primeiro, para ser ninguém ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente,
como um animal de carga” (Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro)
Moisés Santos, 53 anos,
funcionário de uma loja do Carrefour em Recife, morreu vítima de um infarto
fulminante durante o expediente de trabalho. Enquanto o corpo não pôde ser
removido, a gerência da loja teve uma ideia que condiz bem com a forma como
lidamos com as tragédias de nossa história: cobriu o corpo com um guarda-sol. A
preocupação é manter a loja funcionando, pensou o gerente. A preocupação é
manter a economia rodando, pensaram os empresários brasileiros.
Enquanto mais de mil pessoas
seguem morrendo por dia em razão da Covid-19, vamos cobrindo os corpos com
guarda-sóis. A história do Brasil é uma grande sequência de desumanizações. O
que não vemos não nos incomoda. O morto é apenas um transtorno, algo passageiro
que deve ser tirado o mais breve possível do caminho daqueles que vivem.
Uma coisa que a tragédia que
vivemos explicitou é a completa falta de empatia social que temos. É impossível
convencer boa parte das pessoas a qualquer tipo de sacrifício se elas não acham
que serão atingidas pessoalmente pela tragédia. Vemos parcela
significativamente grande de pessoas jovens e ricas simplesmente
desconsiderando que a epidemia existe e tocando a vida como se nada estivesse
acontecendo. O fato de que elas não são do grupo de risco já é suficiente para
que elas achem que o assunto não lhes toca. E mais do que isto, estas pessoas
não se preocupam com o fato de que, embora muito provavelmente não desenvolvam
a doença com maior risco, podem transmitir o vírus a pessoas que correm risco.
O máximo que conseguem é se preocupar com alguém da família. De resto, basta o
guarda-sol.
Num belo editorial feito durante
a pandemia, o Jornal Nacional disse que a história cobraria aqueles que hoje
estão sendo omissos enquanto vivemos a nossa maior tragédia coletiva em cem
anos. Por mais que o editorial tenha sido bonito, ele está errado. Diversos
escravagistas, por exemplo, são homenageados pelo Brasil. Os torturadores da
ditadura foram restabelecidos pelo presidente genocida. Achar que nossa
história é marcada pela justiça e pelo acerto de contas é desconhecimento.
Quando houve as manifestações que derrubaram estátuas de escravagistas nos EUA,
a primeira preocupação do governo de SP foi colocar a polícia para proteger as
estátuas daqui. Em janeiro deste ano, uma ação da polícia de SP resultou na
morte de nove jovens negros e pobres na favela de Paraisópolis. Três dias
depois, o governador do estado, chefe desta polícia, recebeu o prêmio de
brasileiro do ano da revista Isto É. Nossa história é marcada por mortes e pelo
guarda-sol. E mais do que isto, pela proteção ao guarda-sol.
No começo da pandemia, o
empresário Roberto Justus criticou duramente as medidas de prevenção adotadas
pelos governos dos estados. “Não podemos sacrificar a economia por causa de 10,
15 mil vidas”, disse o empresário. Cem mil mortos depois, o empresário anunciou
que seu reality show seria adiado em razão da pandemia. Mas disse que estava tranquilo,
todas as cotas de publicidade já estavam vendidas. Nenhuma empresa ficou com
vergonha de ligar seu nome a um apresentador que acha que 10 ou 15 mil vidas
não valem nada.
O grande guarda-sol vai sendo
aberto não apenas para esconder os mortos, mas também para esconder os
culpados. Com sempre. E toda vez que alguém tenta arrancar o guarda-sol, tudo é
feito para desacreditá-lo. Tivemos nas décadas de 2000 e 2010 o único momento
em nossa história em que houve alguma força governamental tentando tirar o guarda-sol.
Mesmo que a brecha tenha sido bem pequena, já foi suficiente para causar muito
incômodo. Mantê-lo de pé é fundamental para manter a engrenagem funcionando. Os
defensores do guarda-sol inventaram um mito, colocaram-no no poder e agora estão
se armando para defender o guarda-sol.
Do ponto de vista pessoal, nunca
tinha sentido tanto que o Brasil tinha fracassado como nação quanto neste
período da pandemia. Eu realmente achava que, sem querer romantizar a tragédia,
que isto de certa forma criaria algum tipo de sentimento coletivo que nos faria
sair da barbárie que vivemos. Eu estava errado. Quanto maior a tragédia, maior
o guarda-sol. E continuará assim. Até um dia em que o guarda-sol não der conta.
Uma nação é aquela em que seus habitantes se cuidam e se preocupam entre si. Cada pessoa é um mundo e cada
morte é o fim deste mundo. Perdemos mais de cem mil mundos na tragédia. Perderemos
mais muitos outros. Moisés e as vítimas da Covid são vítimas da mesma tragédia.
A tragédia de uma sociedade que se esforça para não enxergar. O Carrefour
lamentou a morte de seu funcionário e disse que vai “rever os protocolos”.
Possivelmente a loja entrará em promoção. Nada acontecerá com o Carrefour. Nada acontecerá com Justus. Nada acontece enquanto tudo acontece. “Moinhos de gastar gente” é o nome do
capítulo do livro de Darcy Ribeiro cuja citação dá início ao texto. É a melhor
definição do Brasil. O Brasil é uma empresa, um moinho que mói pessoas. Não é uma nação.
Momento num café [Manuel
Bandeira]
Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a
vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.
Um no entanto se descobriu num
gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma
agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma
extinta.
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