quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O guarda-sol

 

“A empresa escravista, fundada na apropriação de seres humanos através da violência mais crua e da coerção permanente, exercida através dos castigos mais atrozes, atua como uma mó desumanizadora e deculturadora de eficácia incomparável. Submetido a essa compreensão, qualquer povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro, para ser ninguém ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente, como um animal de carga” (Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro)

Moisés Santos, 53 anos, funcionário de uma loja do Carrefour em Recife, morreu vítima de um infarto fulminante durante o expediente de trabalho. Enquanto o corpo não pôde ser removido, a gerência da loja teve uma ideia que condiz bem com a forma como lidamos com as tragédias de nossa história: cobriu o corpo com um guarda-sol. A preocupação é manter a loja funcionando, pensou o gerente. A preocupação é manter a economia rodando, pensaram os empresários brasileiros.

Enquanto mais de mil pessoas seguem morrendo por dia em razão da Covid-19, vamos cobrindo os corpos com guarda-sóis. A história do Brasil é uma grande sequência de desumanizações. O que não vemos não nos incomoda. O morto é apenas um transtorno, algo passageiro que deve ser tirado o mais breve possível do caminho daqueles que vivem.

Uma coisa que a tragédia que vivemos explicitou é a completa falta de empatia social que temos. É impossível convencer boa parte das pessoas a qualquer tipo de sacrifício se elas não acham que serão atingidas pessoalmente pela tragédia. Vemos parcela significativamente grande de pessoas jovens e ricas simplesmente desconsiderando que a epidemia existe e tocando a vida como se nada estivesse acontecendo. O fato de que elas não são do grupo de risco já é suficiente para que elas achem que o assunto não lhes toca. E mais do que isto, estas pessoas não se preocupam com o fato de que, embora muito provavelmente não desenvolvam a doença com maior risco, podem transmitir o vírus a pessoas que correm risco. O máximo que conseguem é se preocupar com alguém da família. De resto, basta o guarda-sol.

Num belo editorial feito durante a pandemia, o Jornal Nacional disse que a história cobraria aqueles que hoje estão sendo omissos enquanto vivemos a nossa maior tragédia coletiva em cem anos. Por mais que o editorial tenha sido bonito, ele está errado. Diversos escravagistas, por exemplo, são homenageados pelo Brasil. Os torturadores da ditadura foram restabelecidos pelo presidente genocida. Achar que nossa história é marcada pela justiça e pelo acerto de contas é desconhecimento. Quando houve as manifestações que derrubaram estátuas de escravagistas nos EUA, a primeira preocupação do governo de SP foi colocar a polícia para proteger as estátuas daqui. Em janeiro deste ano, uma ação da polícia de SP resultou na morte de nove jovens negros e pobres na favela de Paraisópolis. Três dias depois, o governador do estado, chefe desta polícia, recebeu o prêmio de brasileiro do ano da revista Isto É. Nossa história é marcada por mortes e pelo guarda-sol. E mais do que isto, pela proteção ao guarda-sol.

No começo da pandemia, o empresário Roberto Justus criticou duramente as medidas de prevenção adotadas pelos governos dos estados. “Não podemos sacrificar a economia por causa de 10, 15 mil vidas”, disse o empresário. Cem mil mortos depois, o empresário anunciou que seu reality show seria adiado em razão da pandemia. Mas disse que estava tranquilo, todas as cotas de publicidade já estavam vendidas. Nenhuma empresa ficou com vergonha de ligar seu nome a um apresentador que acha que 10 ou 15 mil vidas não valem nada.

O grande guarda-sol vai sendo aberto não apenas para esconder os mortos, mas também para esconder os culpados. Com sempre. E toda vez que alguém tenta arrancar o guarda-sol, tudo é feito para desacreditá-lo. Tivemos nas décadas de 2000 e 2010 o único momento em nossa história em que houve alguma força governamental tentando tirar o guarda-sol. Mesmo que a brecha tenha sido bem pequena, já foi suficiente para causar muito incômodo. Mantê-lo de pé é fundamental para manter a engrenagem funcionando. Os defensores do guarda-sol inventaram um mito, colocaram-no no poder e agora estão se armando para defender o guarda-sol.

Do ponto de vista pessoal, nunca tinha sentido tanto que o Brasil tinha fracassado como nação quanto neste período da pandemia. Eu realmente achava que, sem querer romantizar a tragédia, que isto de certa forma criaria algum tipo de sentimento coletivo que nos faria sair da barbárie que vivemos. Eu estava errado. Quanto maior a tragédia, maior o guarda-sol. E continuará assim. Até um dia em que o guarda-sol não der conta. 

Uma nação é aquela em que seus habitantes se cuidam e se preocupam entre si. Cada pessoa é um mundo e cada morte é o fim deste mundo. Perdemos mais de cem mil mundos na tragédia. Perderemos mais muitos outros. Moisés e as vítimas da Covid são vítimas da mesma tragédia. A tragédia de uma sociedade que se esforça para não enxergar. O Carrefour lamentou a morte de seu funcionário e disse que vai “rever os protocolos”. Possivelmente a loja entrará em promoção. Nada acontecerá com o Carrefour. Nada acontecerá com Justus. Nada acontece enquanto tudo acontece. “Moinhos de gastar gente” é o nome do capítulo do livro de Darcy Ribeiro cuja citação dá início ao texto. É a melhor definição do Brasil. O Brasil é uma empresa, um moinho que mói pessoas. Não é uma nação.

 

Momento num café [Manuel Bandeira]

 

Quando o enterro passou

Os homens que se achavam no café

Tiraram o chapéu maquinalmente

Saudavam o morto distraídos

Estavam todos voltados para a vida

Absortos na vida

Confiantes na vida.

 

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado

Olhando o esquife longamente

Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade

Que a vida é traição

E saudava a matéria que passava

Liberta para sempre da alma extinta.


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