terça-feira, 7 de junho de 2022

Tiago e Alice

 




Um tiro. Tiago disse que prefere levar um tiro a escolher entre Jair e Luiz. Um tiro.

Tiago é filho de um diretor da Globo, fez viagens ao exterior desde a infância, estudou nas melhores escolas, teve todas as oportunidades que ser filho de um diretor pode garantir. Jovem, “revolucionou” o jornalismo esportivo da Globo, outrora baseado em reportagens mais sérias e jornalismo mais sofisticado. Com ele, ganharam espaço brincadeiras e piadas. Este estilo foi chamado de descontraído. Uma semana antes de dizer que preferia tomar um tiro a escolher entre Jair e Luiz, Tiago havia dito que sofria “preconceito” por ser rico na faculdade. Como resposta, mudou-se para Miami. Repetindo, Tiago disse que prefere levar um tiro a escolher entre Jair e Luiz. Um tiro.

Um tiro. Uma semana antes da entrevista de Tiago, a menina Aline Rocha, de 4 anos, levou um tiro enquanto comprava pipoca no subúrbio carioca. Ao mesmo tempo ocorria uma ação policial na região e uma bala, provavelmente saída da Polícia Militar, atingiu a criança. Nenhum policial foi punido. Nenhum será. As forças públicas trataram o assunto como “acidente”. Os “acidentes” ocorrem sempre com as mesmas pessoas. Ocorrem com Alices, nunca com Tiago. Tiago pode tranquilamente dizer que prefere tomar um tiro. Sabe que não tomará. Na pior (ou melhor) das hipóteses irá para Miami.

No fim de maio, uma chacina matou 25 pessoas na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro. A polícia justificou a ação, dizendo que foram localizadas armas na região. Uma das vítimas foi Gabrielle Cunha, nenhum antecedente criminal, que morreu em casa. “Bala perdida”. Olha quem morre então veja você quem mata, diz a música dos Racionais. Jair, o provável candidato de Tiago em 2018, elogiou a ação da Polícia.

O primeiro ato de Jair ao assumir o poder foi facilitar o porte de armas. O registro de armas triplicou desde que o atual presidente assumiu o poder. Teoricamente ficou mais fácil para Tiago tomar um tiro, mas ele não se importa. Sabe que não tomará. Os tiros são dados em nome de pessoas como ele nos “outros”. Ele está tranquilo, não se encaixa nestes “outros”. As vítimas são Alices, Gabriellas.

No começo do governo de Jair, o seu então ministro da Justiça, Sérgio, tentou passar uma lei que legalizava o excludente de ilicitude. Basicamente o policial estaria livre de qualquer punição a ações ocorridas em seu expediente de trabalho, podendo alegar que estava submetido a fortes emoções. A lei não foi aprovada, mas ela não é tão necessária assim. Os policiais que atiraram em Alice estão tranquilos. Os policiais que atiraram em Gabriella estão tranquilos. No fundo, Tiago também está tranquilo. Pode até fazer piada com tiro.

João, ex-governador de São Paulo, prometeu em campanha que no seu governo o policial atiraria para matar. Na cabeça. Linguagem de psicopata. Um ano depois, nove jovens foram assassinados em um baile funk em Paraisópolis. Muito barulho, muita bagunça. Nenhum policial foi punido. Nenhum será. Excludente de ilicitude. Talvez arrependido, João decidiu colocar câmeras nas roupas dos policiais em horário de trabalho. O número de mortos foi reduzido em mais de 30%. O candidato de Jair em SP já falou que vai acabar com isto. Que esta câmera atrapalha a ação policial. As vidas salvas não renderam muitos votos a João. Ele era mais popular quando falava coisas psicopatas.

Todo crime cometido por policiais é um crime cometido em nosso nome. Assassinatos financiados por nós, cometidos por nós. Não puxamos o gatilho, mas somos mandantes. Ao não reconhecermos nossa culpa, tornamo-nos cúmplices. Fomos nós também que atiramos em Alice. Fomos nós que matamos Gabriella. Fomos nós que matamos Genivaldo num camburão transformado em câmara de gás. Todos nós. Chega de passar pano. Passou da hora de dizermos basta. Passou da hora de falarmos “não em nosso nome”. Passou da hora de vivermos uma vida “tranquila” enquanto jovens são assassinados em nosso nome. Passou da hora de exigirmos mudança. Chega de tranquilidade. 

Tiago é homem rico e branco. Entre pessoas ricas, Jair lidera por 44 a 30. Alice é uma mulher pobre. Entre pessoas pobres, Luiz lidera por 49 a 28. A eleição é sobre isto. Olha quem morre então veja você quem mata. Tiago prefere dar um tiro. Nesses últimos 4 anos, o tiro dado em nome de Tiago. E no fundo ele fará o possível para que continue assim. Talvez morando em Miami. E tratando tiro como piada.


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