terça-feira, 16 de agosto de 2022

Bolsonaro e o Senhor das Moscas

 


Em O Senhor das Moscas, obra clássica de William Golding, um avião cai em uma ilha e os únicos sobreviventes são um grupo de garotos, que tentam a partir disto criar um tipo de autogoverno. O poder é dividido basicamente entre dois garotos, Ralph, mais racional, e Jack, o líder da caça. Em um determinado momento, Jack consegue convencer os demais garotos da existência de um monstro, contrariando Ralph, que sempre diz que este não existe. O medo em relação a esta fera inexistente se torna o foco do grupo e é a principal arma para a tomada de poder de Jack. Enquanto a paranoia vai tomando conta do grupo, Ralph estipula que os garotos devem montar um sinal de fogo para o caso de algum navio passar perto. Seria a forma deles mostrarem que estão ali e serem salvos. Os garotos se revezariam em turnos noturnos para impedir que o fogo fosse apagado. Em um determinado dia, na vez de Jack olhar o fogo, ele convence as demais crianças a sair para caçar. Com o descuidado de Jack, o fogo e apaga, e bem neste dia um navio passa ao lado da ilha. No dia seguinte, as crianças refazem o sinal, ao que Ralph responde “mas agora o navio já passou”.

A principal arma de Bolsonaro para vencer a eleição de 2022 é a caça ao monstro inexistente. Daqui até outubro ele vai investir em todo tipo de paranoia. O PT vai fechar templos evangélicos, o PT vai mudar o sexo de crianças nas escolas, estamos enfrentando uma ameaça comunista, dinheiro cubano vem em caixa de uísque para ajudar o Lula, os globalistas, vacinas causam AIDS etc. Deu certo em 2018.

Foi linda a carta pela democracia lida na Faculdade de Direito da USP na semana passada. Ela seria ainda mais linda em 2018. Pena que o navio já passou. O sinal de fogo só foi aceso quatro anos depois de quando deveria ter sido aceso. Bolsonaro fez exatamente o que prometeu na campanha de 2018. Chego até a arriscar dizer que na verdade fez menos. Ainda não iniciou uma guerra contra a Venezuela, nem tirou o Brasil da ONU. Apenas as palavras não foram suficientes para que o fogo fosse aceso. Foram necessários os 600 mil mortos da pandemia e o descaso único de um presidente que ria imitando pessoas sem ar enquanto as UTIs estavam superlotadas e que atrasava propositalmente a compra de vacinas, estimulando em seguida seus seguidores a não toma-las.

Bolsonaro foi muito bem-sucedido em continuar a tática da Lava Jato de apropriação dos símbolos nacionais para sua causa. Ao fazer isto, todos os que estão contra ele deixam de ser apenas adversários, tornam-se inimigos da pátria. Fez com a bandeira, com o hino, e agora conseguiu com o 7 de setembro. Pelo segundo ano seguido, promete um golpe de estado na data da independência. A primeira tentativa não foi suficiente para que as instituições o barrassem. Ele tentou, deu errado, mas está aí. Uma hora dá certo. O lado bom de ter como prioridade à caça a um monstro inexistente é que você nunca o encontra, portanto pode manter seus seguidores dominados e com medo eternamente. Desta vez, ao menos, mais gente acendeu o sinal de fogo. O problema é que o navio já passou. Agora resta torcer para que ele passe de novo.


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