Morar no centro sem morar no centro.
Esta é a grande qualidade que possui a região de Higienópolis segundo aqueles
que moram ou querem morar lá. O bairro é central, mas não é aquela zona que é o
centro. Já foi assim em sua construção. Higienópolis foi um dos primeiros
bairros planejados do Brasil. Grandes produtores rurais buscavam se estabelecer
na capital que crescia, mas numa região só deles. A escolha por lá se deu por
dois motivos: a proximidade já citada em relação ao centro, onde ficavam as
melhores opções de entretenimento e a Bolsa de Valores, e a topografia. Se hoje
a preocupação central de quem mora na região é assalto, naquela época eram
doenças, principalmente a varíola. A elite brasileira, tendo já a elite
paulista como líder, colocava em prática na época um projeto de
embranquecimento da população, tentando atrair imigrantes especialmente
italianos para trabalhar nos campos e nas recém-inauguradas fábricas. Junto com
os italianos veio a doença, que se espalhava com maior facilidade pois estes eram
basicamente jogados amontoados no bairro do Bixiga. Higienópolis foi o primeiro
bairro com saneamento básico na história do Brasil, mostrando que a elite já
possuía lá o tipo de pensamento que marcou a sua relação com o Brasil, que é
resolver o problema para ela, e o resto que se foda. Hoje, em 2022, Guarulhos,
a segunda maior cidade do estado, trata 4% de seu esgoto, jogando o resto no
rio Tietê. 35 milhões de brasileiros não tem acesso à água tratada, enquanto
100 milhões seguem sem acesso à esgoto. A elite paulistana construiu sua cidade
da higiene e deixou o resto abandonado.
Ser latifundiário no Brasil nesta
época significava basicamente que você era beneficiário direto do sistema de
escravidão. Basicamente não havia mobilidade social, então não é uma
generalização tão perigosa a se fazer. Sempre que você abrir um livro e ler
“barão do café” pense em escravocrata. O Brasil seria um lugar bem melhor se
escolhesse os termos certos para descrever as coisas. Isto quer dizer que
Higienópolis foi basicamente um bairro criado por e para escravocratas no
momento em que a escravidão havia, ao menos no papel, acabado, e em que a
aristocracia escravocrata brasileira buscava novas formas de viver, explorar e
continuar prosperando. Basicamente toda a elite paulista e brasileira à época
era formada por estas pessoas, havia tido pouco tempo para que alguns poucos
prosperassem na indústria, por exemplo. Toda a intelectualidade paulistana era
formada por estas pessoas. A Semana de Arte Moderna de 1922, por exemplo, foi
realizada basicamente por herdeiros de escravocratas. Mário de Andrade, Oswald
de Andrade e Tarsila do Amaral são três exemplos de “filhos de latifundiários”.
O papel desta herança escravocrata, aliás, foi muito pouco abordado no
centenário da Semana. De certa forma o “pensamento paulistano”, se é que isto existe,
foi moldado por herdeiros do escravismo. E isto não significa tirar o valor cultural
do movimento. Significa apenas tirar o pano desta eterna mancha em nossa
história. Significa entender que o escravismo está em tudo. Até hoje, quase
todas as nossas relações são baseadas nisto. A intelectualidade paulistana nunca
se esforçou para resolver esta desigualdade. É simbólico que a USP tenha sido
uma das últimas universidades públicas do país a adotar o sistema de cotas.
Nos anos 1920 o bairro de
Higienópolis se desenvolveu. Uma epidemia de febre amarela assolou a cidade de
Campinas, forçando 75% dos seus habitantes a mudar de cidade. A elite
campineira veio para cá, para o meio dos seus pares, naquela ilha de
prosperidade e saneamento construída em meio ao caos. Em 1929 a casa caiu. Ou
começou a cair, literalmente. Com a quebra da Bolsa de NY, a elite agrária
paulistana começava a viver sua decadência. Com os donos endividados, os
casarões de Higienópolis começaram a cair para dar lugar a prédios, o primeiro
exatamente em 1933, um ano após a derrota desta mesma elite paulistana na guerra
contra o governo federal. Com a revolução de 1930, o desenvolvimento
sub-desenvolvimentista paulistano perdeu espaço para um novo país. A geração de
1922 foi superada pelo regionalismo. SP nunca perdoou a derrota. Não há uma
Avenida Getúlio Vergas em SP. Mas há uma rodovia dos Bandeirantes. A arquitetura
escravocrata dos casarões que lembravam fazendas deu lugar a um novo tipo de
arquitetura, mantendo porém o quartinho de empregada. Décadence avec élégance.
Até hoje, passeando pela região e chegando até a Paulista, achamos uns casarões
destes perdidos, quase sempre caindo aos pedaços. A especulação imobiliária
deve pirar com isto.
Morar no centro sem morar no centro.
Este segue sendo o sonho realizado dos novos habitantes do bairro. Mais de cem
anos depois de sua construção, segue sendo o objetivo. Se a arquitetura da
cidade hoje é dominada por hiper condomínios com lógica semelhante à de um presídio-empresa
de luxo, com grades e isolamentos separando a cidade do seu mundinho, Higienópolis
tem uma barreira invisível, o Minhocão. Do lado de lá, tudo é feio. Do lado de
cá, tudo é lindo. Há muitos poucos mendigos em Higienópolis, por exemplo. Os
que aparecem logo desaparecem. Ninguém sabe a razão, mesmo que todos saibam a
razão. O sentimento dos habitantes de Higienópolis quando um mendigo some não é
de preocupação, é de alívio. Pessoas cujo desaparecimento geram alívio normalmente
desaparecem. O grau de barbárie de uma sociedade pode ser medido pelo grau de
alívio que esta sente quando há estes desaparecimentos. Higienópolis pode até
ter saneamento básico, mas não resolveu os problemas básicos de barbárie em que
foi construído.
A mulher da Casa Abandonada é uma
caricatura, e as pessoas amam estes personagens. Ela pode se tornar o bode
expiatório. Ela é um problema, mas está longe de ser o problema. O problema hoje
não está no casarão abandonado. Está na cobertura do prédio ao lado. Ou na cobertura do prédio que será construído quando o bairro se livrar da mulher. Ela ter feito uma mulher de escrava por trinta anos não é problema para a vizinhança. Esta provavelmente via o que acontecia e não enxergava problema algum. Pelo contrário, rolava identificação. A mulher da Casa Abandonada é a "tia do interior". Higienópolis se incomoda com ela agora porque ela é um entrave ao seu desenvolvimento. E porque ela traz sujeira. E se tem uma coisa que Higienópolis detesta desde o seu início é sujeira. Mas podridão da mulher é a mesma do bairro. Boa parte dos habitantes do bairro ainda pertence a herdeiros daquela turma que construiu o
bairro. O problema está em todo um sistema que segue beneficiando esta turma,
que se recusa a fazer um acerto de contas. Se um dia ela começar, terá que
começar por Higienópolis.
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