terça-feira, 26 de julho de 2022

Higienópolis

 


Morar no centro sem morar no centro. Esta é a grande qualidade que possui a região de Higienópolis segundo aqueles que moram ou querem morar lá. O bairro é central, mas não é aquela zona que é o centro. Já foi assim em sua construção. Higienópolis foi um dos primeiros bairros planejados do Brasil. Grandes produtores rurais buscavam se estabelecer na capital que crescia, mas numa região só deles. A escolha por lá se deu por dois motivos: a proximidade já citada em relação ao centro, onde ficavam as melhores opções de entretenimento e a Bolsa de Valores, e a topografia. Se hoje a preocupação central de quem mora na região é assalto, naquela época eram doenças, principalmente a varíola. A elite brasileira, tendo já a elite paulista como líder, colocava em prática na época um projeto de embranquecimento da população, tentando atrair imigrantes especialmente italianos para trabalhar nos campos e nas recém-inauguradas fábricas. Junto com os italianos veio a doença, que se espalhava com maior facilidade pois estes eram basicamente jogados amontoados no bairro do Bixiga. Higienópolis foi o primeiro bairro com saneamento básico na história do Brasil, mostrando que a elite já possuía lá o tipo de pensamento que marcou a sua relação com o Brasil, que é resolver o problema para ela, e o resto que se foda. Hoje, em 2022, Guarulhos, a segunda maior cidade do estado, trata 4% de seu esgoto, jogando o resto no rio Tietê. 35 milhões de brasileiros não tem acesso à água tratada, enquanto 100 milhões seguem sem acesso à esgoto. A elite paulistana construiu sua cidade da higiene e deixou o resto abandonado.

Ser latifundiário no Brasil nesta época significava basicamente que você era beneficiário direto do sistema de escravidão. Basicamente não havia mobilidade social, então não é uma generalização tão perigosa a se fazer. Sempre que você abrir um livro e ler “barão do café” pense em escravocrata. O Brasil seria um lugar bem melhor se escolhesse os termos certos para descrever as coisas. Isto quer dizer que Higienópolis foi basicamente um bairro criado por e para escravocratas no momento em que a escravidão havia, ao menos no papel, acabado, e em que a aristocracia escravocrata brasileira buscava novas formas de viver, explorar e continuar prosperando. Basicamente toda a elite paulista e brasileira à época era formada por estas pessoas, havia tido pouco tempo para que alguns poucos prosperassem na indústria, por exemplo. Toda a intelectualidade paulistana era formada por estas pessoas. A Semana de Arte Moderna de 1922, por exemplo, foi realizada basicamente por herdeiros de escravocratas. Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral são três exemplos de “filhos de latifundiários”. O papel desta herança escravocrata, aliás, foi muito pouco abordado no centenário da Semana. De certa forma o “pensamento paulistano”, se é que isto existe, foi moldado por herdeiros do escravismo. E isto não significa tirar o valor cultural do movimento. Significa apenas tirar o pano desta eterna mancha em nossa história. Significa entender que o escravismo está em tudo. Até hoje, quase todas as nossas relações são baseadas nisto. A intelectualidade paulistana nunca se esforçou para resolver esta desigualdade. É simbólico que a USP tenha sido uma das últimas universidades públicas do país a adotar o sistema de cotas.

Nos anos 1920 o bairro de Higienópolis se desenvolveu. Uma epidemia de febre amarela assolou a cidade de Campinas, forçando 75% dos seus habitantes a mudar de cidade. A elite campineira veio para cá, para o meio dos seus pares, naquela ilha de prosperidade e saneamento construída em meio ao caos. Em 1929 a casa caiu. Ou começou a cair, literalmente. Com a quebra da Bolsa de NY, a elite agrária paulistana começava a viver sua decadência. Com os donos endividados, os casarões de Higienópolis começaram a cair para dar lugar a prédios, o primeiro exatamente em 1933, um ano após a derrota desta mesma elite paulistana na guerra contra o governo federal. Com a revolução de 1930, o desenvolvimento sub-desenvolvimentista paulistano perdeu espaço para um novo país. A geração de 1922 foi superada pelo regionalismo. SP nunca perdoou a derrota. Não há uma Avenida Getúlio Vergas em SP. Mas há uma rodovia dos Bandeirantes. A arquitetura escravocrata dos casarões que lembravam fazendas deu lugar a um novo tipo de arquitetura, mantendo porém o quartinho de empregada. Décadence avec élégance. Até hoje, passeando pela região e chegando até a Paulista, achamos uns casarões destes perdidos, quase sempre caindo aos pedaços. A especulação imobiliária deve pirar com isto.

Morar no centro sem morar no centro. Este segue sendo o sonho realizado dos novos habitantes do bairro. Mais de cem anos depois de sua construção, segue sendo o objetivo. Se a arquitetura da cidade hoje é dominada por hiper condomínios com lógica semelhante à de um presídio-empresa de luxo, com grades e isolamentos separando a cidade do seu mundinho, Higienópolis tem uma barreira invisível, o Minhocão. Do lado de lá, tudo é feio. Do lado de cá, tudo é lindo. Há muitos poucos mendigos em Higienópolis, por exemplo. Os que aparecem logo desaparecem. Ninguém sabe a razão, mesmo que todos saibam a razão. O sentimento dos habitantes de Higienópolis quando um mendigo some não é de preocupação, é de alívio. Pessoas cujo desaparecimento geram alívio normalmente desaparecem. O grau de barbárie de uma sociedade pode ser medido pelo grau de alívio que esta sente quando há estes desaparecimentos. Higienópolis pode até ter saneamento básico, mas não resolveu os problemas básicos de barbárie em que foi construído.

A mulher da Casa Abandonada é uma caricatura, e as pessoas amam estes personagens. Ela pode se tornar o bode expiatório. Ela é um problema, mas está longe de ser o problema. O problema hoje não está no casarão abandonado. Está na cobertura do prédio ao lado. Ou na cobertura do prédio que será construído quando o bairro se livrar da mulher. Ela ter feito uma mulher de escrava por trinta anos não é problema para a vizinhança. Esta provavelmente via o que acontecia e não enxergava problema algum. Pelo contrário, rolava identificação. A mulher da Casa Abandonada é a "tia do interior". Higienópolis se incomoda com ela agora porque ela é um entrave ao seu desenvolvimento. E porque ela traz sujeira. E se tem uma coisa que Higienópolis detesta desde o seu início é sujeira. Mas podridão da mulher é a mesma do bairro. Boa parte dos habitantes do bairro ainda pertence a herdeiros daquela turma que construiu o bairro. O problema está em todo um sistema que segue beneficiando esta turma, que se recusa a fazer um acerto de contas. Se um dia ela começar, terá que começar por Higienópolis. 

 

 


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