A
privatização dos Correios é uma nova etapa do processo de precarização do
trabalho que o Brasil vem passando na últimas décadas e que se acelerou a
partir de 2016. A sociedade brasileira, e nisto incluo boa parte dela,
acostumou-se com a ideia de que precarizar é modernizar e que direitos
trabalhistas e impostos são a causa da nossa ausência de competitividade. Transformamos
empresas públicas e seus funcionários em inimigos a serem combatidos. Em uma
terra que aposta na miséria, ter direito se tornou privilégio.
Normalizamos
a transformação de trabalhadores em empresas. Achamos normal que tenhamos um
CNPJ e não mais uma carteira de trabalho. O trabalhador nestas condições não se
enxerga mais como trabalhador, e sim como um empresário que não considera seus
companheiros de trabalho como colegas, e sim como concorrentes. Este “empresário”
fornece um preço menor ao seu cliente, pois enfrenta forte concorrência de ex-colegas
e paga menos impostos. Trabalhar mais para ganhar menos, eis o caminho
escolhido pelo país que busca este tipo tosco de eficiência. Os sindicatos, que
garantiam algum tipo de coletividade aos interesses do trabalhador, foram em
geral destruídos. O ódio a este coletivo foi por anos plantado pela elite nos
trabalhadores, acostumados cada vez mais a ideia do cada um por si.
A
elite brasileira foi muito bem-sucedida na forma como vendeu a precarização do
trabalho como modernidade. A classe média, sem perceber que a hora dela perder
a segurança do trabalho formal também vai chegar, aderiu em peso às benesses
desta precarização. Uber, Rappi e todas estas empresas controladas por
investidores do mercado financeiro que enriquecem pagando migalhas a jovens
desesperados e sem perspectivas. Se a comida chegar fria, é nota ruim para o
jovem desesperado, que precisará trabalhar mais horas para recuperar o seu prestígio
no aplicativo dos jovens investidores. A classe média gosta de punir. Por que
não fazer isto com os Correios, afinal? Mais “oportunidades” para estes jovens
desesperados, que agora poderão entregar cartas a algo do tipo R$ 0,10 a
unidade e serem julgados pelos clientes de classe média com carinhas positivas
ou negativas.
Assim
como acontecia com os taxistas, os Correios possibilitavam (triste já pensar
nisto no passado) uma vida decente a seus funcionários. Todo o formato de
empresa pública foi pensado deste jeito, aliás. O funcionário público tem
direitos e este é o principal motivo do ódio que a elite empresarial tem por
eles. Cada direito é um entrave na melhoria do lucro para o setor privado. Os funcionários
dos Correios tinham um salário que possibilitava um estilo de vida saudável.
Assim como os taxistas, aliás. Mas a classe média foi convencida de que ela não
tem que sustentar isto. Bom mesmo é pagar metade do preço para pegar o Uber,
ganhar uma balinha e dar nota num aplicativo.
A
parte todas as maluquices do governo federal e a sandice de uma parte da
sociedade que colocou um psicopata paranoico no poder, duas foram as causas do
enorme fracasso do Brasil no combate à pandemia. O primeiro foi precarização do
trabalho. Todo nosso serviço de proteção social está articulado ao trabalho
formal e mais da metade da população está na informalidade. Não enxergamos isto
como problema, pelo contrário, realizamos uma Reforma Trabalhista para
incentivar esta informalidade. Num momento em que precisávamos que todos
ficassem em casa, esta parcela gigantesca da população não tinha o que fazer. O
governo federal, após boicotar todas as medidas de distanciamento, aprovou com
atraso um auxílio emergencial, na maioria das vezes incapaz de servir ao
atendimento deste trabalhador desamparado. Uma parcela das pessoas não ficou em
casa simplesmente porque não podia, a bomba preparada por anos de descaso
explodiu (esta foi uma das bombas, apenas). E não, não há comparação entre esta
galera e aquele bando de playboy filho da puta fazendo festa, viajando para a
puta que pariu e postando foto na porra do Instagram. O trabalhador desamparado
que não pôde ficar em casa é uma vítima e merece todo respeito. Quem foi para a
festa tem que se foder. A segunda onda de Covid coincidiu com o momento em que
o governo federal suspendeu o pagamento do auxílio em janeiro e com a primeira
tentativa de abertura das escolas. O segundo motivo é o individualismo. Estamos
tão acostumados com a ideia de fazer o melhor para nós sem pensar no coletivo
que não conseguimos convencer quase ninguém a ficar em casa com o argumento de
que isto era perigoso para os outros. Pare para pensar, se todo mundo ficasse
14 dias em casa, a pandemia acabaria. 14 dias. Mas “não tem como”. E nesta de
não ter como estamos nesta merda há um ano e meio. Cada um correndo atrás do seu.
Privatizar
não é um verbo intransitivo. As pessoas se acostumaram a serem favoráveis ou
contrárias a privatizações sem dizer do quê. Para dar um exemplo, aqui em SP o
impacto social da privatização do Anhembi é bem diferente do impacto da
privatização do Parque do Ibirapuera. E poucas privatizações terão impacto
social tão negativo quanto a dos Correios. Milhares de funcionários terão suas
vidas impactadas, perdendo a segurança do trabalho e ficando a mercê dos
interesses de investidores financeiros que se mostram cada vez mais dispostos a
espremer com agressividade o sangue e o suor da juventude pobre. Urubus. Mais
do que isto, boa parte das cidades pequenos do país perderão sua porta de
contato com o mundo exterior. Sim, é isto que as agências de Correios
representam em boa parte dos pequenos municípios e isto será perdido.
A
classe média comemora. Tornamo-nos mais “produtivos e competitivos” com a noite
de ontem. Salários menores, menos custos, mais lucro, mais “investimento”. Estamos
nesta loucura há algumas décadas, mas nos últimos cinco anos tratamos a
aceleração deste processo como prioridade. No entanto, a vida só piora. É só
piora por motivos óbvios, muito óbvios. Só não são óbvios para quem trata o
assunto como religião. A Reforma Trabalhista não gerou empregos e crescimento.
A Reforma da Previdência não gerou empregos e crescimento. A Reforma Tributária
também não vai gerar. Por mais fé que se tenha nestas sandices. Basta olhar
pela janela para ver que está dando merda. Se você mora em SP, vá na Praça da Sé
e veja o que está acontecendo. Coloque uma máscara, saia e veja.
A
classe média comemora e compra. Não vai mais nem no mercado, de tão barato que
se tornou mandar um jovem pobre ir fazer suas compras. Não vê a hora de poder fazer
isto com suas cartas. Mandar mercadoria por portador já é mais barato do que
pelos Correios, afinal. Ela não percebe, ou simplesmente não liga, que o
portador é mais barato porque recebe uma miséria. Mas acho que se pá não
percebe mesmo. Quanto mais compra, mais ansiosa fica esta classe média. Mais
trancada, mais paranoica, mais medrosa. Mais gasta em terapia e antidepressivo.
Mais medo tem do coletivo. Mais se isola. E não é o isolamento social, ainda
necessário no combate à pandemia. É um isolamento que a torna incapaz de enxergar
e sentir o outro. A classe média não percebe duas coisas. A primeira é que a
hora dela vai chegar. Engenheiros e contadores, preparem-se. A segunda é que a
vida só piorará. Você pode até ficar alegre. A alegria é algo individual. Mas a
felicidade é coletiva. E não há como uma sociedade prosperar quando uma parcela
dela achar que está se dando bem enquanto a outra esta se fodendo. Porque, como
diria Brecht, com outras palavras, o ruim de não ligar quando alguém se fode é
que quando é sua vez de se foder ninguém vai estar nem aí.
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