sexta-feira, 6 de agosto de 2021

O fim dos Correios

 



A privatização dos Correios é uma nova etapa do processo de precarização do trabalho que o Brasil vem passando na últimas décadas e que se acelerou a partir de 2016. A sociedade brasileira, e nisto incluo boa parte dela, acostumou-se com a ideia de que precarizar é modernizar e que direitos trabalhistas e impostos são a causa da nossa ausência de competitividade. Transformamos empresas públicas e seus funcionários em inimigos a serem combatidos. Em uma terra que aposta na miséria, ter direito se tornou privilégio.

Normalizamos a transformação de trabalhadores em empresas. Achamos normal que tenhamos um CNPJ e não mais uma carteira de trabalho. O trabalhador nestas condições não se enxerga mais como trabalhador, e sim como um empresário que não considera seus companheiros de trabalho como colegas, e sim como concorrentes. Este “empresário” fornece um preço menor ao seu cliente, pois enfrenta forte concorrência de ex-colegas e paga menos impostos. Trabalhar mais para ganhar menos, eis o caminho escolhido pelo país que busca este tipo tosco de eficiência. Os sindicatos, que garantiam algum tipo de coletividade aos interesses do trabalhador, foram em geral destruídos. O ódio a este coletivo foi por anos plantado pela elite nos trabalhadores, acostumados cada vez mais a ideia do cada um por si.

A elite brasileira foi muito bem-sucedida na forma como vendeu a precarização do trabalho como modernidade. A classe média, sem perceber que a hora dela perder a segurança do trabalho formal também vai chegar, aderiu em peso às benesses desta precarização. Uber, Rappi e todas estas empresas controladas por investidores do mercado financeiro que enriquecem pagando migalhas a jovens desesperados e sem perspectivas. Se a comida chegar fria, é nota ruim para o jovem desesperado, que precisará trabalhar mais horas para recuperar o seu prestígio no aplicativo dos jovens investidores. A classe média gosta de punir. Por que não fazer isto com os Correios, afinal? Mais “oportunidades” para estes jovens desesperados, que agora poderão entregar cartas a algo do tipo R$ 0,10 a unidade e serem julgados pelos clientes de classe média com carinhas positivas ou negativas.

Assim como acontecia com os taxistas, os Correios possibilitavam (triste já pensar nisto no passado) uma vida decente a seus funcionários. Todo o formato de empresa pública foi pensado deste jeito, aliás. O funcionário público tem direitos e este é o principal motivo do ódio que a elite empresarial tem por eles. Cada direito é um entrave na melhoria do lucro para o setor privado. Os funcionários dos Correios tinham um salário que possibilitava um estilo de vida saudável. Assim como os taxistas, aliás. Mas a classe média foi convencida de que ela não tem que sustentar isto. Bom mesmo é pagar metade do preço para pegar o Uber, ganhar uma balinha e dar nota num aplicativo.

A parte todas as maluquices do governo federal e a sandice de uma parte da sociedade que colocou um psicopata paranoico no poder, duas foram as causas do enorme fracasso do Brasil no combate à pandemia. O primeiro foi precarização do trabalho. Todo nosso serviço de proteção social está articulado ao trabalho formal e mais da metade da população está na informalidade. Não enxergamos isto como problema, pelo contrário, realizamos uma Reforma Trabalhista para incentivar esta informalidade. Num momento em que precisávamos que todos ficassem em casa, esta parcela gigantesca da população não tinha o que fazer. O governo federal, após boicotar todas as medidas de distanciamento, aprovou com atraso um auxílio emergencial, na maioria das vezes incapaz de servir ao atendimento deste trabalhador desamparado. Uma parcela das pessoas não ficou em casa simplesmente porque não podia, a bomba preparada por anos de descaso explodiu (esta foi uma das bombas, apenas). E não, não há comparação entre esta galera e aquele bando de playboy filho da puta fazendo festa, viajando para a puta que pariu e postando foto na porra do Instagram. O trabalhador desamparado que não pôde ficar em casa é uma vítima e merece todo respeito. Quem foi para a festa tem que se foder. A segunda onda de Covid coincidiu com o momento em que o governo federal suspendeu o pagamento do auxílio em janeiro e com a primeira tentativa de abertura das escolas. O segundo motivo é o individualismo. Estamos tão acostumados com a ideia de fazer o melhor para nós sem pensar no coletivo que não conseguimos convencer quase ninguém a ficar em casa com o argumento de que isto era perigoso para os outros. Pare para pensar, se todo mundo ficasse 14 dias em casa, a pandemia acabaria. 14 dias. Mas “não tem como”. E nesta de não ter como estamos nesta merda há um ano e meio. Cada um correndo atrás do seu.

Privatizar não é um verbo intransitivo. As pessoas se acostumaram a serem favoráveis ou contrárias a privatizações sem dizer do quê. Para dar um exemplo, aqui em SP o impacto social da privatização do Anhembi é bem diferente do impacto da privatização do Parque do Ibirapuera. E poucas privatizações terão impacto social tão negativo quanto a dos Correios. Milhares de funcionários terão suas vidas impactadas, perdendo a segurança do trabalho e ficando a mercê dos interesses de investidores financeiros que se mostram cada vez mais dispostos a espremer com agressividade o sangue e o suor da juventude pobre. Urubus. Mais do que isto, boa parte das cidades pequenos do país perderão sua porta de contato com o mundo exterior. Sim, é isto que as agências de Correios representam em boa parte dos pequenos municípios e isto será perdido.

A classe média comemora. Tornamo-nos mais “produtivos e competitivos” com a noite de ontem. Salários menores, menos custos, mais lucro, mais “investimento”. Estamos nesta loucura há algumas décadas, mas nos últimos cinco anos tratamos a aceleração deste processo como prioridade. No entanto, a vida só piora. É só piora por motivos óbvios, muito óbvios. Só não são óbvios para quem trata o assunto como religião. A Reforma Trabalhista não gerou empregos e crescimento. A Reforma da Previdência não gerou empregos e crescimento. A Reforma Tributária também não vai gerar. Por mais fé que se tenha nestas sandices. Basta olhar pela janela para ver que está dando merda. Se você mora em SP, vá na Praça da Sé e veja o que está acontecendo. Coloque uma máscara, saia e veja.

A classe média comemora e compra. Não vai mais nem no mercado, de tão barato que se tornou mandar um jovem pobre ir fazer suas compras. Não vê a hora de poder fazer isto com suas cartas. Mandar mercadoria por portador já é mais barato do que pelos Correios, afinal. Ela não percebe, ou simplesmente não liga, que o portador é mais barato porque recebe uma miséria. Mas acho que se pá não percebe mesmo. Quanto mais compra, mais ansiosa fica esta classe média. Mais trancada, mais paranoica, mais medrosa. Mais gasta em terapia e antidepressivo. Mais medo tem do coletivo. Mais se isola. E não é o isolamento social, ainda necessário no combate à pandemia. É um isolamento que a torna incapaz de enxergar e sentir o outro. A classe média não percebe duas coisas. A primeira é que a hora dela vai chegar. Engenheiros e contadores, preparem-se. A segunda é que a vida só piorará. Você pode até ficar alegre. A alegria é algo individual. Mas a felicidade é coletiva. E não há como uma sociedade prosperar quando uma parcela dela achar que está se dando bem enquanto a outra esta se fodendo. Porque, como diria Brecht, com outras palavras, o ruim de não ligar quando alguém se fode é que quando é sua vez de se foder ninguém vai estar nem aí. 


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