segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Por que dizemos que foi golpe?


Era 01/04/1964. Neste dia, o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili, declarou vaga a Presidência da República, anunciando que o presidente legítimo João Goulart havia abandonado o país. Dizia a Constituição de 1945 que, estando vaga a presidência da República e não havendo mais vice para suceder o titular, a mesma seria exercida pelo presidente da Câmara, que deveria em 15 dias convocar uma eleição indireta no Congresso que elegeria o novo presidente para terminar o mandato. Assim foi feito e em 15/04/1964 o Congresso elegeu o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco para a presidência, em eleição acompanhada pelo presidente do Senado e pelo presidente do Supremo, que estavam lá para garantir que tudo ocorresse conforme previsto pela Constituição. Por que chamamos 1964 de golpe então? Porque João Goulart não havia abandonado a presidência. O golpe está na declaração de vacância da Presidência da República. O fato de que todo o processo foi realizado em seguida em conformidade com a Constituição não o legitima.
Dilma Rousseff foi reeleita presidenta do Brasil em outubro de 2014 e assumiu o seu segundo mandato em 01/01/2015. A primeira grande manifestação pedindo seu afastamento ocorreu em 15/03/2015, exatamente 75 dias após a sua posse. Aproximadamente sete meses antes do Tribunal de Contas da União recomendar a rejeição dqw contas da presidenta no ano eleitoral de 2014. Ou seja, já havia um claro interesse de uma parcela significativa da população em afastar a presidenta eleita antes mesmo que houvesse um crime que a afastasse. Em qualquer relação lógica, temos uma causa que gera uma consequência. No caso deste impeachment, primeiro tivemos a consequência e em seguida foi-se buscar uma causa.
A revista Piauí deste mês (novembro/2016) traz um perfil da advogada Janaina Paschoal, “mentora-intelectual” do impeachment/golpe. Ela diz que chorou com a reeleição de Dilma e que a partir daquele momento sentia que era uma espécie de “missão divina” tirar o PT do poder. Em junho de 2015, três meses após a primeira grande manifestação e quatro meses antes da reprovação das contas, Janaina saiu procurando alguém que a ajudasse nesta missão. Os motivos dados por ela eram muitos: Venezuela, Cuba, bolivarianismo, roubalheira na Petrobrás, economia e muitas outras razões, boa parte lunáticas, para desrespeitar a vontade popular expressa menos de um ano antes. Menos as tais pedaladas. Após ser recusada por boa parte dos partidos, inclusive o PSDB, encontrou apoio em duas pessoas: Helio Bicudo, ex-vice prefeito de SP na gestão de Marta Suplicy que havia se decepcionado com a gestão petista e Miguel Reale Jr., filho de um dos líderes do movimento integralista dos anos 1930. Após árdua procura, em outubro “encontraram” um motivo que permitisse algo que talvez justificasse a abertura de um processo de afastamento, mas ainda dependia da boa vontade do presidente da Câmara, Eduardo Cunha. A boa vontade veio em dezembro, quando ao não conseguir apoio petista contra seu processo de cassação, Cunha aceitou o pedido. O que veio depois, todos já sabem.
Um dos principais argumentos daqueles que dizem que não foi golpe é que o processo foi todo conforme a Constituição e que o STF acompanhou todo o processo. Como em 1964, o fato do processo ter sido seguido conforme previsto pela Constituição não o torna legal caso o seu início tenha sido feito com um argumento fajuto. O julgamento da Câmara aconteceu em março e os julgamentos do Senado ocorreram em maio e agosto. O TCU julgou as mesmas ilegais apenas no final de junho. Dilma foi condenada, portanto, por um “crime” que ainda não havia nem sido julgado pelo órgão competente em boa parte do processo. A anuência do Supremo ao processo, portanto, não o legitima. Não entrando no mérito de que outros governadores também usaram este expediente, o processo contra Dilma por este motivo poderia começar apenas em junho.

Por último, o resultado desastroso do PT nas eleições municipais de 2016 demonstra para alguns que houve apoio popular para o impeachment e isto o legitima. Na primeira eleição legislativa após o golpe de 1964, ocorrida em 1970, a ARENA, partido de apoio aos militares, recebeu aproximadamente 72%. Todas as pessoas que usam os argumentos citados acima (participação do Supremo, uso do processo citado na Constituição e resultado eleitoral da eleição seguinte) para justificar a legitimidade do processo de 2016 os usariam para justificar o processo de 1964. Assim como em 1964, o processo de 2016 foi iniciado por um argumento fajuto. No processo de “salvação”, o Poder Judiciário faz o papel que era dos militares. Este Poder é aplaudido e bajulado pela mídia cada vez que interfere nos outros poderes e ameaça com punições àqueles que ousam criticá-los. Votarão uma lei que pode impedir Renan Calheiros de permanecer na linha sucessória pouco depois deste criticar um juiz, para júbilo de quase todos. A consequência disso com o decorrer do tempo ainda não se sabe. Sabemos, porém, que o governo Dilma foi derrubado por sua ineficiência na área econômica e o suposto “crime” foi apenas uma desculpa encontrada para resolver o “problema” criado pelas urnas. Algo que só poderia ser resolvido de forma legítima em 2018. A democracia no país saiu disso tudo mais frágil e viveremos estas turbulências em todo momento de crise econômica. Se sairemos disso como uma ditadura? Em 1965 muitos achavam que não. Em 2016, já não somos uma democracia perfeita. Aceitamos que o Poder Judiciário influencie como nunca na política e que uma pessoa seja acusada com base em convicções, não em provas. Na semana passada, uma peça de teatro de rua foi interrompida pela polícia por causa de seu conteúdo político. A história nos ensina onde isto vai dar. Há coisas mais sérias do que a crise econômica acontecendo. Como em 1964...

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