segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Sobre jet skis, poupança e imbecis



Não há nada pior no mundo do que um rico idiota. Todas as grandes tragédias da história da humanidade, no fundo, foram causadas por ricos idiotas. Quando eles se juntam para fazer merda, normalmente sai algo gigantesco. No caso brasileiro, não há símbolo maior da idiotice entre os ricos do que o jet ski.
O jet ski não serve para nada. Sua única função é causar risco à vida do seu condutor e das pessoas próximas. É estatisticamente impossível que uma pessoa que é dona de um jet ski não seja idiota. Rico de vez em quando gosta de pagar para arriscar a vida. Eles devem enxergar nisto uma forma de mostrar coragem, sei lá. Ou talvez a vida seja tão vazia que eles só enxerguem algum sentido no prazer de arriscá-la. O conceito de coragem desta galera é diferente. Aí eles fazem idiotices. Há outras, tipo comprar um kart. Mas neste caso, ao menos, eles não arriscam uma vida que não seja a própria. Pular de paraquedas também é meio idiotice, embora neste caso ao menos as pessoas tenham uma vista legal. Não tenho nada contra pessoas arriscarem a própria vida por diversão, desde que seja só a própria vida. Não é o caso do jet ski.
Quer ver uma pessoa de classe média achar que está subindo na vida é coloca-la em contato com alguém que tem um jet ski. A classe média pira quando faz coisas de rico. Classe média fica uma semana falando quando vai numa festa chique. Uma semana antes e uma semana depois. Conta para todo mundo. Enlouquece quando compra um apartamento em prestação de trinta anos num prédio com piscina. Mas nada a deixa mais maluca do que andar num jet ski.
De todos os bens e serviços supérfluos do planeta nenhum é mais supérfluo do que o jet ski. Eu sinto que todas as babaquices de quem é muito rico tem alguma função, exceto o jet ski. A piscina ao menos refresca. O iate é ao menos um meio de transporte. Vinho pelo menos deixa bêbado. O jet ski não faz nada. É apenas um jeito de jogar muito dinheiro fora.
“Crescer na vida” no estágio classe média – elite não significa nada além de inventar novos supérfluos. E a classe média não mede esforços no sonho de querer parecer cada vez mais com a elite que venera. Para quem não me conhece, eu sou um paulistano de classe média, faço parte do grupo social mais imbecil da história da humanidade, embora tente ao máximo sair disso. Sou o hipócrita, como dizem meus amigos de classe média descontentes com as minhas críticas. Nenhum assunto no momento me causa mais brigas com os meus amigos deste mundo do que casamentos. A impressão que tenho é que paulistanos de classe média simplesmente não conseguem mais casar em SP. Tem que ser um casamento “mágico”, normalmente copiado das séries americanas dos anos 90. Eles não conseguem mais casar num salão de festas na Lapa num sábado à tarde, tem que ser numa fazenda ou na praia e tem que durar o fim de semana todo. E tem que ser tudo exagerado, quase um jet ski. Isto vai criando uma espécie de rede de desperdícios. Vendo que a classe média agora casa na praia no fim de semana, o casamento do rico acontece na Europa e dura sei lá quantos dias. E assim vamos.
A nossa hierarquia social se reflete na rede de conselhos. É muito raro uma pessoa mais pobre dar conselhos para alguém mais rico. É raro não só o rico ter interesse em ouvir o que o mais pobre tem a dizer, mas também o próprio pobre se sentir à vontade para falar. Mais do que isto, é muito raro a pessoa mais rica ter interesse real na vida da pessoa mais pobre e ocorre certa aversão do mais rico quando ele acha que o mais pobre exagerou no consumo. O rico dono do jet ski fica bem contrariado quando vê o gerente da sua empresa aparecer com um carrão novo na firma. “Ele deu um passo maior do que as pernas”, pensa o rico. A mesma coisa acontece com a pessoa de classe média quando vê alguém mais pobre, por exemplo, comprar um Iphone. Aliás, poucas coisas revoltam mais uma pessoa de classe média do que pobre de Iphone. “Que irresponsabilidade!”. É neste contexto de país que chegamos a Paulo Guedes.
Em entrevista à Folha de São Paulo neste fim de semana, o ministro da Fazenda do Brasil disse que rico sabe poupar, mas pobre não. Não sei se Paulo Guedes tem um jet ski, mas neste texto eu o tratarei como dono de um. Paulo Guedes é o dono do jet ski que não entende como um pai de família que ganha um salário mínimo por mês não consegue poupar. Paulo Guedes é o dono de jet ski que matricula os filhos numa escola que custa cinco dígitos, mas não sabe como um pai de família que ganha um salário mínimo por mês não consegue poupar. Paulo Guedes é o dono de jet ski que gasta cinco dígitos numa garrafa de vinho, mas não sabe como um pai de família que ganha um salário mínimo por mês não consegue poupar.
No Brasil vivemos em bolhas. Do mesmo jeito que a minha bolha é a da classe média que quer casar na praia tipo os personagens de séries americanas, a bolha de Paulo Guedes é a dos donos de jet ski. Imagino que uma vez por mês, os donos de jet ski se reúnam uma vez em Trancoso, em Jurerê Internacional ou em New York para debater os rumos do mundo. Eles são as pessoas que dão os conselhos e, como tais, não precisam ouvir ninguém. Poupar é fácil para quem tem jet ski. Eles não estão dispostos a ouvir os que estão abaixo e conhecer suas dificuldades. Não é a função social deles. Eles decidem e aconselham, e o conselho do momento é poupar.
Poucas atitudes são tão arrogantes quanto o ato de aconselhar. A pessoa que aconselha se enxerga sempre como superior moralmente à aconselhada. Ela sabe o que é melhor para a vida do outro, mesmo sem saber os detalhes e as dificuldades reais da vida do aconselhado. “Pobre tem que gastar menos”, diz o dono do jet ski. Aqueles que enxergam o dono do jet ski como supra sumo da verdade, dono de um “conhecimento” que só o status de dono de jet ski pode trazer, elogiam o ministro, mesmo que estejam atolados em dívidas impagáveis pelo apartamento no prédio com piscina que quase nunca usam e pelo carro com câmbio automático, “porque sabe como é, desacostumei do câmbio automático”.
Paulo Guedes não sabe nada e foi alçado ao cargo de economista sábio do momento pela associação dos donos de jet ski. Esta associação cria heróis que facilmente são comprados pela classe média. Não tem conhecimento algum sobre a realidade do país. Conseguiu convencer a classe média que casa na praia, porque, afinal, se ele tem um jet ski é porque deve saber de algo. Paulo Guedes, o mesmo ministro que diz que “pobre não sabe poupar”, teve como principal medida para aquecer a economia até o momento a liberação de dinheiro do FGTS, uma poupança pública, para que pobre pudesse consumir. Pobre consumindo incomoda. A classe média, aquela atolada em dívidas, acha isto uma irresponsabilidade. “Onde já se viu o fulano ir para a Disney?”. O pobre indo para a Disney incomoda muito mais do que o rico tendo um jet sky.
Se eu concorresse à presidência, eu teria duas propostas. A primeira seria aumentar muito o imposto de renda sobre a elite, mas também sobre a classe média. Cerveja artesanal, restaurante japonês, viagem para a Disney, tudo isto teria imposto dobrado, e olha que eu nem sei para ser honesto quanto é o imposto disto. O objetivo seria mostrar para a classe média que ela está muito mais perto do “pobre que não poupa” do que do dono do jet ski. O segundo, seria a expropriação dos bens e imóveis de todos os donos de jet ski. Esta segunda causaria mais polêmica. "Onde já se viu propor algo assim", diriam os donos de jet ski. Eles já se mostraram dispostos a tudo para manter seus jet skis. No fundo, a base deste governo é esta. Donos de jet ski querendo manter seus jet skis, com o apoio da classe média que sonha em ter um jet ski. Se tiver que destruir a democracia para isto, paciência. Os pobres já consumiram muito nos anos 2000. "Onde já se viu? Quebraram o país!" Agora está na hora deles pouparem. Enquanto isto, a turma do jet ski dá uma “apavorada” nas praias mais descoladas do país. E dá conselhos. "Tá na hora de poupar".