domingo, 14 de março de 2021

A estranha mania de ter fé na vida

 


Onze horas da manhã. O senhor sobe no palco do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo. O local onde tudo começou ficará marcado também como o local do novo recomeço. Mais um dos vários recomeços. Mais do que por vitórias ou derrotas, a vida daquele senhor no palco é marcada por recomeços.

O senhor se chama Luiz e ele está cercado por um grupo de apoiadores leais, daqueles que o acompanharam nos momentos mais difíceis. Entre 2018 e 2019, Luiz passou 580 dias presos. 580. Para se ter uma ideia, a pandemia completa amanhã 365 dias. Coloque mais 215 dias e teremos o tempo em que Luiz passou preso dentro de uma cela em Curitiba. Tudo por causa de uma reforma que não foi feita em um apartamento que ele não quis comprar. O caso clássico de processo que começa com um culpado e em que promotor e juízes vão em busca de um crime. E trabalharam juntos estes dois. Como trabalharam. Enriqueceram e ganharam fama às custas do sofrimento de Luiz. Um pouco antes de ser preso, Luiz já tinha perdido sua esposa, vítima de um AVC provavelmente causado pelo sofrimento do marido. Já preso, Luiz perdeu o irmão e um neto de sete anos. Foi proibido de ir ao enterro do irmão, pôde ir ao enterro do neto, onde permaneceu isolado. Em mensagens descobertas um poucos depois, descobriu-se que juiz e promotor que prenderam Luiz participavam de grupos que caçoavam e comemoravam cada desgraça vivida por Luiz.

Após 6 anos de tragédias pessoais, perda da liberdade, perseguições e humilhações, Luiz estava novamente lá. De cabeça erguida. Forte. Sendo o sopro de esperança num país arrasado econômica, sanitária e moralmente. Entre 2016 e 10/03/2020, todo o discurso político no Brasil focou nas seguintes ideias: prender, matar e cortar direitos. A isto se deu o nome de “modernidade”. A isto boa parte da imprensa chamou de “competitividade” e de “combate à impunidade”. O atual presidente controla o andamento da política brasileira desde a trágica sessão de impeachment em 2016. Desde o momento em que, em rede nacional, louvou um torturador e a ditadura militar, consolidou-se como o anti-Luiz entre aqueles que odiavam Luiz. A eleição de 2018 não foi apenas a eleição de Bolsonaro. Em SP, a principal promessa do governador eleito era que em seu governo a polícia iria atirar para matar e que ele pagaria do próprio bolso a defesa de policiais que matassem em “serviço”. No final de 2019, nove jovens foram mortos pela polícia de SP em baile funk em Paraisópolis, ninguém foi punido. No RJ, o governador eleito, um ex-juiz muito próximo ao grupo que prendeu Luiz, disse que em seu governo a polícia atiraria na “cabecinha” de qualquer suspeito. E assim foi em seu primeiro (e único) ano de governo. Sobrevoou favelas apontando metralhadoras contra a população civil. Foi assim em outros lugares. SC elegeu uma vice-governadora abertamente racista, que se recusa a criticar o pai que era adorador do nazismo. O grande ídolo do país se tornou o juiz que prendeu Luiz, que, após interferir no processo eleitoral de 2018, tornou-se ministro do presidente eleito e criou um decreto que, assim como os governadores de SP e RJ, visava a afastar a punição a policiais que matassem em serviço. Praticamente todos os estados do país, à exceção do Nordeste, elegeram propostas de governo psicopatas. A psicopatia era o tema que mais gerava votos. Era uma verdadeira competição para saber quem conquista o voto prometendo matar e prender.

Veio a pandemia. E eis que boa parte da população que apoiou a eleição do psicopata descobriu que o desprezo dele à vida não era apenas à vida dos “outros”, mas à deles também. O desprezo à vida foi o trampolim da carreira de Bolsonaro. Tortura, assassinato, genocídio indígena, escravidão, desprezo ao meio-ambiente. Tudo isto foi defendido pelo candidato Bolsonaro. Uma parte do eleitorado, que não se incomodou quando o candidato prometeu em campanha que iria matar ou expulsar seus opositores, ficou chocada ao vê-lo desprezar os milhares de mortos pela Covid. Mais do que isto, fez chacota daqueles que sofrem pela perda de entes queridos na pandemia. Esta parte dos eleitores, que não se importou em votar num candidato torturador e que ameaçou vizinhos inofensivos de guerra porque ele se aliou a “um projeto econômico moderno”, estranhou vê-lo ser indiferente à vida para manter o comércio funcionando. No modelo de governo de Bolsonaro, a vida dos idosos atrapalha a tal da “competitividade” do mesmo jeito que os direitos trabalhistas. O Brasil desde 2016 escolheu o caminho do “eu” em detrimento do “nós”. E o problema do “eu” é que ele enxerga todo mundo como “eles”, o adversário, o inimigo a ser combatido. Deixamos de ser um país que se une para enfrentar problemas e ajudar aqueles que têm mais dificuldades para se tornar o país do cada um por si. Não que historicamente não tenhamos sido isto. Mas vivemos um breve hiato no governo de Luiz. Bolsonaro, Dória, Witzel, Moro foram os heróis do “eu” num momento em que o mundo redescobria que a humanidade era um grande “nós”. De repente, na maior tragédia da nossa geração, estávamos entregues ao cada um por si e Bolsonaro seguiu na sua lógica psicopata. Ele saiu de deputado insignificante e subcelebridade do CQC a presidente da república incentivando a morte, não iria mudar após alcançar o auge.

E em 10/03/21 veio Luiz. De repente, lá estava alguém falando sobre vida. Falando sobre inclusão, sobre direitos, sobre o trabalhador, sobre a vida. Sobre nós. Tentando refazer os laços do país destruído. Disposto a olhar para o futuro. Disposto a recomeçar. A vida de Luiz corria ao lado da vida do Brasil. Enquanto Luiz era destruído por mentiras e passava por sofrimentos pessoais inimagináveis, o país era destruído. Vivemos hoje sob os escombros do que fomos nos anos 2000, uma terra arrasada acumulando corpos enquanto somos jogados para um grande cada um por si, com direitos sendo minados. O recomeço de Luiz pode ser o nosso recomeço. A verdade é que a simples presença dele, a simples possibilidade de que ele pode voltar já foi suficiente para provocar uma mudança nos discursos políticos. A simples existência de alguém forte falando sobre vida e união já foi um sopro de esperança. Lembramos que o país que hoje é comandado por um capitão miliciano que investe na morte como capital político já foi o país do metalúrgico que colocou jovens pobres e negros na universidade, que tinha um modelo de vacinação que era exemplo para o mundo, que investiu na distribuição de renda e que tirou milhões de pessoas do mapa da fome, que levou eletricidade a regiões outrora esquecidas pelo poder público, que reduziu drasticamente os efeitos trágicos dos períodos de seca no Nordeste, que tornou o Brasil um país respeitado internacionalmente. Em uma hora e quarenta minutos voltamos a sorrir. Descobrimos que a solução está em “nós”. Assim com as Marias de Milton Nascimento, não podemos perder "a estranha mania de ter fé na vida". Se aquele senhor de 75 anos consegue manter a fé, nós também temos que conseguir.

Ainda é cedo para saber se Luiz voltará. Hoje ele é nossa maior esperança de tirar no curto prazo o genocida do poder. Não será fácil. O exército, que já ameaçou um golpe de estado quando Luiz quase foi solto durante a eleição de 2018, já deixou claro que está com o genocida até o fim. O baixo clero do Judiciário, aquele que gerou figuras toscas como Moro, Dallagnol, Janaína e toda esta turma incapaz de ter empatia por um avô que perdia um neto, também está com o capitão. O mercado também não parece muito incomodado em acumular corpos enquanto o governo estiver comprometido em tornar a mão-de-obra por aqui mais barata e mais fácil de ser explorada. Qualquer coisa, eles usam o passaporte europeu e vão curtir a vida na Itália e em Portugal enquanto o país explode. Mas Luiz já sabe o que fará se for derrotado. Ele recomeçará. É isto que fez, que faz e que sempre fará. E este é o maior exemplo que Luiz pode nos dar. Uma esperança e uma força que são eternas. E uma crença infinita no “nós”. A nossa única salvação. A vida é um ciclo. O começo foi no Sindicato, mesmo lugar do recomeço. Quem sabe isto não termine no Palácio do Planalto, como foi da primeira vez. Tomara.

“Triunfar na vida não é ganhar, é se levantar e começar de novo cada vez que cai”. José Mujica.