Eu não escrevo sobre política com o intuito de
convencer ninguém. Desisti disto em 2018. Quando senti que o argumento “ele
defende abertamente a tortura” não era suficiente para convencer alguém a votar
no adversário deste candidato, simplesmente desisti. Escrevo mais como
desabafo. Mais do que isto, desconheço qualquer caminho de mudar no curto prazo
o caminho que começou a se desenhar lá na Lava Jato e que culminou na eleição
de 2018. Um país em que mais de 50% das pessoas votam num cara que defende a
tortura, que exalta a ditadura e os ditadores, que mente sobre absolutamente todos
os assuntos possíveis, é um país destinado à tragédia e a exportar a tragédia.
Pode não ser agora, mas isto está perto. É até difícil falar que a “tragédia”
virá enquanto ainda vivemos a maior tragédia da nossa geração. Mas ver que a
maior tragédia da nossa geração não foi suficiente para que os olhos fossem
abertos é sinal de que algo maior ainda está por vir. Porque é isto que
Bolsonaro sabe fazer.
A característica básica do eleitorado
bolsonarista é a total incapacidade de se colocar no lugar do Outro. Este Outro
é uma instituição inexistente. Você nunca vai conseguir convencer um
bolsonarista a se colocar no lugar deste Outro e eu basicamente acho que esta
capacidade é necessária no momento do convencimento. A pessoa que é incapaz de
se colocar no lugar de uma pessoa torturada, por exemplo, não é capaz de se
incomodar com o candidato que promete torturar, uma vez que o torturado será o
Outro. Tudo pode acontecer com este Outro, nada interessa. O que interessa, sei
lá, são as tais das reformas. E isto serve também para o bolsonarista
arrependido. Boa parte dos bolsonaristas arrependidos não se arrependeram
porque adquiriram uma capacidade de se colocar no lugar do Outro, mas porque
descobriram que o descaso do presidente a este Outro também se aplicava a eles.
Enquanto Bolsonaro prometia torturar, matar ou expulsar do país os “petralhas”,
os Outros, tudo estava ok. A Covid, porém, não atingiu apenas os petralhas,
atingiu todos. Não atingiu apenas os Outros. Descobrir-se como parte deste
Outro, porém, não é a mesma coisa que ser capaz de se colocar no lugar do
Outro. Esta galera ainda ama o ministro da Justiça que queria colocar presos
doentes para morrer em containers no começo da pandemia. O MBL, agora se
dizendo anti-bolsonarista, segue fazendo campanha contra o padre que distribui
comida para miseráveis na rua, porque isto “atrapalha os negócios”. Seguem
incapazes da compaixão que apenas quem consegue se colocar no lugar do Outro é
capaz de ter.
A elite e a classe média seguem com Bolsonaro.
Após 600 mil mortos. Após a volta da inflação, após a explosão do número de
miseráveis, após a volta do país ao mapa da fome, após a transformação do país
em pária mundial. E segue porque Bolsonaro entregou a sua mais importante
promessa de campanha, a miséria. Nós da classe média temos a vida bancada pela
miséria. E incluo todos nós, mesmo os que não toleram este governo intolerável.
É a miséria que garante a vida repleta de privilégios que temos. Todos os
nossos privilégios são baratos porque há um verdadeiro exército de miseráveis
precisando nos servir em busca da sobrevivência. A faxineira, o pedreiro, o
entregador, o motorista. Gente morando em barracos, sem nenhuma proteção
social, abandonados, enquanto vamos construindo grandes torres com varandas, piscinas,
grades e seguranças privados, estes também em boa parte miseráveis.
O governo Lula transformou o combate à miséria
em foco do país. Este combate inflacionou o custo dos privilégios da classe
média e da elite. Elas são incapazes de entender a adoração que os mais pobres
têm por Lula. O que o ex-presidente fez foi não apenas tirar o Brasil do Mapa
da Fome. Isto já é algo gigantesco, a maior conquista que tínhamos tido na
nossa história recente. Digo tínhamos tido porque a perdemos. O que ele fez
também foi dar a estas pessoas o direito de dizer não. Nada é mais libertário
do que dizer não sem temer consequências. Aquelas pessoas que passaram gerações
aceitando qualquer trabalho para garantira a sobrevivência tinha agora acesso a
uma ajuda governamental que já a garantia. Poderia começar a dizer não para as
propostas absurdas que recebia desta elite, acostumada a receber um obrigado ao
dar um prato de comida como pagamento para o pedreiro reformar sua casa. A
elite e a classe média odeiam receber um não como resposta de alguém abaixo na
hierarquia social. Acham que este é um ingrato. E é por isso que elas seguem
apoiando o presidente que nos empurra de volta para a miséria. E está disposta
a tudo para manter seus miseráveis na miséria. É muito bom voltar a ouvir um “sim,
obrigado” depois de 13 anos ouvindo “não, por isso não saio de casa”.
O Outro está na miséria. Passando fome. A
elite e a classe média não se importam. Demitem o funcionário para pagar o intercâmbio
do filho. “Ele precisa estudar no exterior”. O salário da diarista foi
reduzido, sobra mais dinheiro para as próximas férias na Europa. O Outro pode
ser torturado. Foda-se o Outro. Bolsonaro criou seu exército. O exército dos “Eus”.
Não há nada de “Nós” nele. Nem sempre o plural de “eu” é “nós”. Nós somos os
Outros. O único caminho é o conflito. A mobilização. O espaço para conciliação
acabou. Pode ser inclusive que já seja tarde demais. Nós, os Outros, estamos
esperando a nossa hora. A hora em que o Outro da vez seremos nós. Porque sempre
haverá um Outro a ser combatido. Eles vão sempre encontrar este Outro. Ter medo
só adia o inadiável. Sempre...