Ter um
público majoritariamente branco e que não sabe torcer em estádios não é
exclusividade do São Paulo. À exceção talvez de Vasco e Santos, todos os
grandes clubes brasileiros passaram por um processo intencional de elitização
de seu público. Os dois instrumentos para isto foram o encarecimento dos
ingressos e o programa de sócio-torcedor. Ninguém que não seja razoavelmente
abastado tem condições de pagar uma mensalidade para poder, quem sabe, comprar
ingresso em algum jogo. Cor de pele e classe social tem tudo a ver num país
construído à base de escravidão e racismo. A área mais popular dos antigos
estádios, a geral, foi destruída nas reformas de Maracanã e Mineirão. Ficou
claro que os clubes não têm mais interesse em ter a camada mais popular em seus
estádios. A isto a maior parte da mídia chamou de “modernidade”. Outras coisas
“modernas” são a reforma da previdência e a reforma trabalhista. Sempre os
mesmos beneficiados, sempre os mesmos prejudicados. O próximo passo da
“modernidade” no futebol é tirar o esporte da grade da televisão aberta.
Pay-per-view e streaming são o caminho para um esporte mais “moderno”, em que o
torcedor é visto como um consumidor e a função do futebol é gerar receita. A
parcela mais pobre da população já foi afastada do estádio e vai
progressivamente sendo afastada da televisão. Sobrará o rádio, este
sobrevivente da modernidade.
A assessora
negra da ministra negra “ousou” apontar isto. Não apontou contra o time dela, o
Flamengo, time mais popular do Brasil e que ironicamente é um dos líderes deste
processo de elitização dos estádios. A mídia que defende a “modernidade” se
revoltou e se levantou para pedir a demissão da assessora. Não importa que o
que ela disse faça sentido, nem que ela tenha feito a crítica para um grupo
interno de pessoas. O importante é impedir que o debate exista. Em geral,
pessoas brancas detestam quando são apontadas como um grupo. Para elas, ir a um
jogo de futebol e só ter pessoas brancas na arquibancada é “normal”. Assim como
ir a um restaurante que só tem clientes brancos e atendentes negros. Tudo é
“normal”. Quem ousa apontar alguma anormalidade nesta situação é rapidamente
afastado.
Marcelle
Decothé e Anielle Franco estão em posições que causam incômodo ao país moldado
pelo racismo. A assessora negra da ministra negra. Ainda ontem, a mídia
“moderna” fez reportagens apontando os ganhos mensais da assessora negra. O
rendimento mensal dela vira assunto. O de pessoas brancas, não. Isto
independente da ideologia. Ninguém vai atrás de saber o rendimento mensal de
Fernando Haddad, por exemplo. Ele pode estar onde está. Marcelle e Anielle,
não.
O Pacto da
Branquitude foi rápido em moer Marcelle. Não importa que ela seja extremamente
preparada para o cargo que exercia. Cortaram o mal pela raiz. A ministra negra
ligou para o presidente branco do time de torcida majoritariamente branca para
pedir desculpas porque a sua assessora negra falou que o time de torcida
majoritariamente branca tem torcida majoritariamente branca. E a vida vai
seguir, com estádios cada vez mais brancos. É o que a “modernidade” exige.
Anielle
segue, mas o Pacto da Branquitude estará sempre de olho, divulgando seus
salários e criticando quando ela usar um avião público para participar de um
evento especial. Este pacto se sente incomodado quando pessoas como Anielle
chegam ao lugar em que chegaram e vai fazer de tudo para mostrar que “ela não
presta”. Gostam de cortar o mal pela raiz. Mostrar o lugar de cada um. Não
deixar ir longe demais. Imaginem se um dia uma mulher negra como Anielle chega,
por exemplo, ao Supremo? Não, o Pacto não lidará bem com isto. O Pacto até está
tentando fingir que é mais ou menos civilizado agora. Mas não verá problemas em
fazer no futuro o que fez em 2016 e 2018. Explodir tudo para manter tudo como
está. Como disse Emicida em entrevista ao futuro ministro Silvio de Almeida,
"O Racismo vai morrer gritando".