quarta-feira, 27 de setembro de 2023

A Assessora Negra, a Torcida Branca e o Pacto da Branquitude

 


Ter um público majoritariamente branco e que não sabe torcer em estádios não é exclusividade do São Paulo. À exceção talvez de Vasco e Santos, todos os grandes clubes brasileiros passaram por um processo intencional de elitização de seu público. Os dois instrumentos para isto foram o encarecimento dos ingressos e o programa de sócio-torcedor. Ninguém que não seja razoavelmente abastado tem condições de pagar uma mensalidade para poder, quem sabe, comprar ingresso em algum jogo. Cor de pele e classe social tem tudo a ver num país construído à base de escravidão e racismo. A área mais popular dos antigos estádios, a geral, foi destruída nas reformas de Maracanã e Mineirão. Ficou claro que os clubes não têm mais interesse em ter a camada mais popular em seus estádios. A isto a maior parte da mídia chamou de “modernidade”. Outras coisas “modernas” são a reforma da previdência e a reforma trabalhista. Sempre os mesmos beneficiados, sempre os mesmos prejudicados. O próximo passo da “modernidade” no futebol é tirar o esporte da grade da televisão aberta. Pay-per-view e streaming são o caminho para um esporte mais “moderno”, em que o torcedor é visto como um consumidor e a função do futebol é gerar receita. A parcela mais pobre da população já foi afastada do estádio e vai progressivamente sendo afastada da televisão. Sobrará o rádio, este sobrevivente da modernidade.

A assessora negra da ministra negra “ousou” apontar isto. Não apontou contra o time dela, o Flamengo, time mais popular do Brasil e que ironicamente é um dos líderes deste processo de elitização dos estádios. A mídia que defende a “modernidade” se revoltou e se levantou para pedir a demissão da assessora. Não importa que o que ela disse faça sentido, nem que ela tenha feito a crítica para um grupo interno de pessoas. O importante é impedir que o debate exista. Em geral, pessoas brancas detestam quando são apontadas como um grupo. Para elas, ir a um jogo de futebol e só ter pessoas brancas na arquibancada é “normal”. Assim como ir a um restaurante que só tem clientes brancos e atendentes negros. Tudo é “normal”. Quem ousa apontar alguma anormalidade nesta situação é rapidamente afastado. 

Marcelle Decothé e Anielle Franco estão em posições que causam incômodo ao país moldado pelo racismo. A assessora negra da ministra negra. Ainda ontem, a mídia “moderna” fez reportagens apontando os ganhos mensais da assessora negra. O rendimento mensal dela vira assunto. O de pessoas brancas, não. Isto independente da ideologia. Ninguém vai atrás de saber o rendimento mensal de Fernando Haddad, por exemplo. Ele pode estar onde está. Marcelle e Anielle, não.

O Pacto da Branquitude foi rápido em moer Marcelle. Não importa que ela seja extremamente preparada para o cargo que exercia. Cortaram o mal pela raiz. A ministra negra ligou para o presidente branco do time de torcida majoritariamente branca para pedir desculpas porque a sua assessora negra falou que o time de torcida majoritariamente branca tem torcida majoritariamente branca. E a vida vai seguir, com estádios cada vez mais brancos. É o que a “modernidade” exige.

Anielle segue, mas o Pacto da Branquitude estará sempre de olho, divulgando seus salários e criticando quando ela usar um avião público para participar de um evento especial. Este pacto se sente incomodado quando pessoas como Anielle chegam ao lugar em que chegaram e vai fazer de tudo para mostrar que “ela não presta”. Gostam de cortar o mal pela raiz. Mostrar o lugar de cada um. Não deixar ir longe demais. Imaginem se um dia uma mulher negra como Anielle chega, por exemplo, ao Supremo? Não, o Pacto não lidará bem com isto. O Pacto até está tentando fingir que é mais ou menos civilizado agora. Mas não verá problemas em fazer no futuro o que fez em 2016 e 2018. Explodir tudo para manter tudo como está. Como disse Emicida em entrevista ao futuro ministro Silvio de Almeida, "O Racismo vai morrer gritando".