quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Os dez minutos e o acaso

 


O relógio marcava 42 minutos do segundo tempo quando o juiz marcou falta para o Palmeiras na lateral esquerda da grande área.

Eu tenho um filho de 2 anos e a minha relação com futebol mudou desde que ele nasceu. Continuo acompanhando bastante o esporte, mas muito raramente assisto a uma partida quando ela começa às 21:30. Meu filho dorme MUITO mal e eu tenho que aproveitar toda a oportunidade em que ele dorme para tentar dormir junto. Muitas vezes ele acorda tipo 5 da manhã. Ontem resolvi abrir uma exceção. O jogo era importante e eu não fazia a menor ideia de quem ia ganhar. Normalmente eu sei se o Palmeiras é favorito ou não, mas ontem era diferente. O Botafogo tem mais time, está numa melhor fase e ganhou o primeiro jogo. No entanto, e quem acompanha futebol vai me entender, a gente nunca acha que o Botafogo vai ganhar. Há uma aura de derrota que cerca a equipe carioca, parece que sempre acontecerá que dará início a um destrambelhamento completo da equipe levando à derrota inevitável. Este algo pode ser uma proposta que tire o técnico, uma contusão, um pênalti perdido, um espirro, um latido de cachorro, qualquer coisa. E por isso lá estava eu, umas 10:10 da noite, assistindo Palmeiras e Botafogo aos 42 minutos do segundo tempo. Faltando 3 minutos para acabar o jogo, o Botafogo vencia por 3 gols no valor agregado, dominava a partida e demonstrava grande tranquilidade. O Palmeiras atacava sem nenhuma organização, cruzava bolas na área sem nenhum perigo, o tempo passava em mais uma partida de futebol que seria inesquecível só para aqueles que se esforçassem para não esquecer. Mas algo sempre acontece com o Botafogo. O destrambelhamento.

Aos 42 minutos do segundo tempo, após trezentos e cinquenta trilhões de cruzamentos que não deram em nada, Gabriel Menino cruzou e Flaco Lopez marcou o primeiro gol. Saída de bola, o Palmeiras recupera a bola e, sem nenhum resquício de organização vai chutando a bola para o alto, alguém que não lembro escora de cabeça, Rony chega tropeçando, chuta errado, a bola passa por cima do goleiro, o zagueiro fura em cima da linha. 45 minutos do segundo tempo.

Algo sempre acontece com o Botafogo. Todos são levados a um sentimento que une duas frases aparentemente distantes. “Eu sabia que isto ia acontecer”. “Não acredito que isto está acontecendo de novo”. Há uma aura no futebol que é o que mais me interessa no esporte, este sentimento coletivo que de certa forma é desencadeado por uma ação e começa a se tornar verdade meio porque todo mundo percebe que ele vai acontecer. Naquele exato instante todos os jogadores, torcedores, espectadores, narradores e até o árbitro perceberam o que estava acontecendo.

O juiz decidiu dar 5 minutos de acréscimo. O Botafogo prendeu bem a bola por 3 destes minutos, mas parecia meio claro o que iria acontecer. Era quase como algo destinado. O Palmeiras recuperou a bola e não tinha mais tempo, formação tática ou mesmo vontade de organizar um ataque organizadamente. Era o caos e a aposta neste destino. Bastava chutar a bola para o alto e para a frente, o acaso resolveria. E o acaso resolveu. Bola pra cima, um monte de cabeçadas, bate-e-rebate na área, a bola sobra para Gustavo Gomez que vira pro gol e chuta. A hecatombe. A catarse.

Em casa, eu me esforçava para não sair gritando e acordar meu filho, enquanto o som da rua não demonstrava tanta preocupação. O VAR, porém, mudou a minha relação com o gol. Entre saltos e pensamentos eufóricos, eu sempre me preocupo em ver se tá mesmo tudo ok. Foi notório que antes de chutar uma bomba no meio do gol, Gomez havia dominado a bola com o braço. Sem querer, mas dominou. A reação ao replay que mostra uma irregularidade no gol do seu time é sempre algo interessante. A minha primeira reação foi “putz, pegou no braço”. Em seguida, tentei achar alguma razão que justificasse aquilo não ser ilegal, partindo para o desespero final de “o VAR não vai ver”. Não tem como não ver. O VAR viu e chamou o árbitro. Este foi para a tela e tive realmente a impressão de que ele se esforçou para não ver a irregularidade. Se houvesse alguma possibilidade de interpretação no lance, não tenho dúvidas de que o juiz daria o gol. E não é porque ele foi comprado ou é ladrão. Mas é porque ele entendia o que estava acontecendo. Entendia que estava vivendo uma catarse e uma hecatombe. Mas quis o destino mudar.

Aos 50 minutos do segundo tempo a bola bateu na mão de Gustavo Gomez e o terceiro gol do Palmeiras foi corretamente anulado. Uns 5 centímetros para o lado e a bola teria batido no seu peito. Dois minutos mais tarde, no último lance da partida, Gabriel Menino bateu uma falta que bateu na trave. Uns 5 centímetros para o lado e a bola teria entrado no gol. Destino.

A catarse foi uma quase catarse. A hecatombe foi uma quase hecatombe. Aquilo que todo mundo sabia que ia acontecer quase aconteceu. Aquilo que ninguém acreditava que ia acontecer quase aconteceu.

A vitória do Botafogo acabou sendo heroica. Não pelo placar ou por eliminar o rival. Mas porque o Botafogo venceu algo maior do que uma partida. Venceu um fantasma. Mudou o seu destino. Sou palmeirense, mas só tenho a agradecer por estes 10 minutos que me causaram uma noite de insônia. Futebol é o que é não apenas pelas vitórias inesquecíveis. Mas também pelas derrotas que carregaremos para sempre.