segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Sudeste: O maior derrotado das eleições de 2016


Um terço dos eleitores não votou no segundo turno das eleições. Taxa semelhante foi observada no primeiro turno. A eleição em São Paulo foi vencida por um lobista do empresariado nacional, que se apresentou como gestor não político, com propostas como o fim das secretarias voltadas contra a desigualdade, a colocação de pobres para serem atendidos em hospitais particulares durante a madrugada e a revisão da redução de velocidades nas marginais. Em Belo Horizonte, venceu o ex-presidente do Atlético – MG, cujo slogan era “chega de política” e que teve como frase mais famosa da campanha “eu roubo, mas não pego propina”. No Rio de Janeiro, a vitória foi da Igreja Universal do Reino de Deus, com um candidato homofóbico e machista, que acredita que a função da mulher é servir ao homem. Enquanto a mídia celebra e analisa a histórica derrota do PT, deixa passar a característica maior do resultado observado especialmente nas três maiores capitais da região mais rica do país: a derrota da classe política.
O sentimento de rejeição à política na região Sudeste tem várias explicações. O primeiro, sem dúvida, são os erros cometidos pelo PT, especialmente no tipo de alianças que fez em nome de governabilidade com gente de caráter duvidoso e que não titubeou em abandonar o barco no momento em que ele começou a afundar. Não nos esqueçamos de que o bispo homofóbico e machista era ministro do governo Dilma. Mas o objetivo aqui, porém, não é analisar este ponto da rejeição à política. Matérias e textos analisando as falhas petistas são abundantes em nossa mídia extasiada com a decadência do partido.
Toda ação gera uma reação contrária de igual intensidade. Não entendo nada de física, mas lembro desta lei que acho que pode ser aplicada à política. Os treze anos de gestão petista geraram na região Sudeste uma enorme onda conservadora e individualista. O conservadorismo é apoiado num certo lunatismo de gente que não saiu da Guerra Fria e que se vê num combate contra um inimigo que nem existe mais. Não à toa a advogada do impeachment alerta seus seguidores para uma lunática invasão russa vinda da Venezuela. Lula foi possivelmente o mais capitalista presidente que o Brasil já teve, uma vez que para ele a melhora do país estava ligada à ideia de expansão do mercado consumidor. A pequena distribuição de renda, que embora minúscula foi capaz de salvar milhões de vida, foi suficiente para criar uma série de teorias da conspiração na cabeça de muitas pessoas, tudo isto inflado por uma mídia que insiste em fazer comparações descabidas entre a situação econômica brasileira e a venezuelana, sem nenhuma análise das enormes diferenças existentes entre os dois países. Mais do que os erros petistas, a camada mais conservadora da sociedade se incomoda mesmo é com seus acertos. O individualismo se apega neste conservadorismo. Quem, informado ou não, não gosta de um governo que distribui renda, automaticamente gosta do governo que faz o oposto. Neste cenário, o maior problema do país para este tipo de pessoa é a carga tributária. Faça-se tudo, eles acreditam, menos aumentar impostos. Nem que para isto seja necessário cortar gastos em saúde e educação. O que importa é ter mais dinheiro no seu bolso. A sociedade está em segundo plano. A PEC 241 está aí para isso.
Neste cenário, surgiu Doria em SP. Com uma mensagem de rejeição à política e de ódio ao PT, atraiu este eleitorado paulistano que vê nele um exemplo de empreendedor bem-sucedido, ícone de sucesso para o típico individualista. Lobista e histórico puxa-saco de quase todos que estão no poder, incluindo Lula, chegou ao Estado para destruí-lo, vendendo tudo que é possível muito provavelmente para amigos do grupo que lidera, a Lide, associação em que empresários se autobajulam e trocam experiências banais sobre como ganhar dinheiro gerando a menor quantidade de empregos possível. Alckmin fez uma leitura perfeita do cenário atual e apresentou uma candidatura que misturava o discurso fiscalizador de Jânio com a inexperiência política de Pitta, conseguindo uma vitória esmagadora entre todas as classes sociais. Numa eleição sem dinheiro, apostou num empresário egocêntrico disposto a se autofinanciar e que já era conhecido pelo público que já o vira anteriormente num programa de TV em que sua função era demitir engravatados. O candidato de quem quer menos serviço público, afinal. De quem não precisa e está disposto a fazer tudo para não precisar deste serviço. Independente da classe social.
Em BH, Aécio não teve a mesma sacada de Alckmin e foi vítima do mesmo tipo de discurso. Vindo de uma família tradicional, Alexandre Kalil soube catalisar não apenas o ódio ao PT, mas também a rejeição que Aécio possui no estado, que já havia ficado clara na sua clamorosa derrota para Dilma em MG em 2014. Numa campanha recheada de bizarrices, com uma quantidade nula de propostas importantes, Kalil vendeu a ideia de que transformará a cidade num novo Atlético. Resta saber quem será o Ronaldinho Gaúcho neste cenário surreal que a capital mineira viverá pelos próximos quatro anos.
No Rio, o lunatismo “anti-bolivarianismo -soviético-Janaina Paschoal” gerou seu resultado mais trágico. Como dizia o MBL, movimento símbolo da luta contra a Guerra Fria que acabou em 1989/1991, era “Crivella ou Venezuela”. E assim a administração da segunda maior cidade do país foi entregue à Igreja Universal do Reino de Deus. A vitória de Crivella serve como prova de que este conservadorismo ataca muito mais ideias progressistas do que a corrupção que eles dizem combater. Havia duas candidaturas, uma claramente desonesta, que havia inclusive participado do governo que eles dizem ser “o mais corrupto da história”, contra outra com um candidato que havia abandonado este mesmo governo quando este estava no ápice da popularidade, mas já mostrando seus defeitos éticos. Entre o corrupto e o não-corrupto, optou-se pelo primeiro pelo simples motivo de que o segundo defende pautas progressistas. Entre um candidato que representa um fundamentalismo religioso e corrupto que representa um retrocesso gigantesco em termos de direitos sociais e outro que defende igualdade e distribuição de renda, os conservadores escolheram o primeiro, tudo para combater um risco de bolivarianismo que só existe no mundo de fantasia de suas mentes doutrinadas.
A eleição de 2014 terminou com uma onda de ódio e preconceito de parte do eleitorado conservador do Sudeste contra os eleitores da região Nordeste. Naquele momento surgia um cenário que levaria, em 2016, há um impeachment fajuto e à vitória destes candidatos nas eleições das três maiores capitais da região. Explodiu o ódio numa grande massa arrogante e ignorante, facilmente manipulada por meios de informação dispostos a tudo para derrubar um governo que não a agradava. Surgiu um grande monstro que odeia a política e, portanto, o debate. Historicamente, sabemos onde isto costuma dar. O lobista, o fundamentalista religioso e o boleiro podem ser apenas o primeiro passo de algo muito sério. Na eleição de 2016, o Sudeste acha que ganhou, mas perdeu feio. Junto com o PT, esta região foi a grande derrotada das eleições municipais.


terça-feira, 18 de outubro de 2016

O Brasil tem muitos deputados?


O momento de polarização política no Brasil gerou um ambiente em que várias propostas absurdas ganham o ar de inteligentes, sem que quase ninguém esteja realmente interessado em fazer qualquer tipo de análise real sobre o que está sendo proposto. Temos uma classe média que, em geral, é prepotente e ignorante, enxergando no Estado o grande inimigo a ser combatido e disposta a embarcar em qualquer ideia vazia que a seu ver signifique uma diminuição deste “gigante”. Uma das mais repetidas neste momento é a de que o Brasil tem muitos deputados. Ignorando completamente toda a heterogeneidade da nossa nação, construída por pessoas de diferentes etnias e classes sociais que devem ser representadas no Legislativo, simplesmente se repete sem muita base que este número deveria ser menor, soltando um sorriso de pressuposta inteligência após dizer algo que, na realidade, não se sabe muito bem o que significa. O objetivo deste texto é, a partir de comparações com diferentes grupos de países, concluir se há sentido no que é dito ou não.
Inicialmente, começaremos a comparação com o G7, grupo dos sete países do mundo que, deduzo eu, devam ser também os países mais admirados pela parcela da população que pede “eficiência” ao Estado. Para isto, crio um índice de quantos deputados cada país possui por milhão de habitantes e quanto isto significaria se o mesmo índice fosse aplicado ao Brasil. Lembro que para esta análise não será levado em conta o número de senadores (Câmara Alta), apenas de deputados (Câmara Baixa). Abaixo temos os números:

País
Pop. (mil)
Deputados
Deputado / milhão habitante
Equivalente Brasil
EUA
318.000,00
435
1,37
274,13
Alemanha
80.620,00
630
7,81
1.566,01
Japão
127.300,00
480
3,77
755,63
Canadá
35.160,00
308
8,76
1.755,49
Itália
59.830,00
630
10,53
2.110,18
França
66.030,00
577
8,74
1.751,19
Reino Unido
64.100,00
650
10,14
2.032,14
Brasil
200.400,00
513
2,56
513,00
média
7,30
1.463,54

Dos sete países do grupo, apenas os EUA tem um número relativo de deputados menor que o Brasil. Se o Brasil possuísse em deputados a média dos sete países, teria aproximadamente 1.463 deputados, 285% a mais do que temos atualmente.
O segundo grupo a ser analisado e comparado será a América do Sul, nossos vizinhos, desconsiderando as Guianas e Suriname. Seguem os números:


País
Pop. (mil)
Deputados
Deputado / milhão habitante
Equivalente Brasil
Argentina
41.450,00
257
6,20
1.242,53
Uruguai
3.407,00
99
29,06
5.823,19
Chile
17.620,00
120
6,81
1.364,81
Paraguai
6.802,00
80
11,76
2.356,95
Equador
15.740,00
100
6,35
1.273,19
Venezuela
30.410,00
167
5,49
1.100,52
Colômbia
42.120,00
166
3,94
789,80
Bolívia
10.670,00
130
12,18
2.441,61
Peru
30.380,00
130
4,28
857,54
Brasil
200.400,00
513
2,56
513,00
média
9,56
1.916,68

Dos nove países do grupo, nenhum possui um número relativo de deputados menor que o Brasil. Usando a mesma ideia de média aplicada na comparação com o G7, o Brasil teria neste caso aproximadamente 1.917 deputados, 373% a mais do que temos atualmente.

O principal objetivo de um Parlamento, especialmente o da Câmara Baixa, como dito no primeiro parágrafo, é o de garantir a representatividade de toda a população. Isto está longe de acontecer no Brasil (10,6% de mulheres e 3% de negros). O verdadeiro debate deveria estar aí, em como garantir que este Congresso seja realmente representativo da nossa sociedade, com todas as nossas disparidades. Os dois quadros acima mostram que, dentre os 16 países citados, todos democratas, apenas nos EUA a representação é menor do que no Brasil. Mostram também que um número maior de deputados não representa má qualidade administrativa, uma vez que eu duvido que alguém ache que a Alemanha não é um bom exemplo disto
O Brasil vive um momento grave de má qualidade em seus debates, com uma falta quase que completa de análise em alguns assuntos. Este é apenas um dos exemplos. Discutamos a atitude de alguns deputados e seus gastos, mas não nos esqueçamos de que a principal qualidade que uma democracia deve ter é a garantia de representatividade, e que esta deveria ser a preocupação constante. Infelizmente deixou de ser.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Obrigado, Haddad



Há quatro anos, eu achava ser impossível amar São Paulo. Escrevi em algum lugar que não lembro qual, durante as eleições de 2012, que o grande problema da cidade era a falta de autoestima. A população de São Paulo estava acostuma com a ideia de que a cidade era aquilo que existia entre a janela da sua casa e o seu trabalho. Aquilo que era visto pela janela do carro ou do ônibus enquanto nos locomovíamos para trabalhar. O local que todos queriam sair em qualquer oportunidade. São Paulo não era lazer, São Paulo era trabalho.
De 2012 até hoje, porém, algo mudou. Tivemos uma gestão diferente, que privilegiou o lado humano e a cidadania. Tivemos um prefeito que ousou reduzir a velocidade máxima permitida, privilegiando a vida humana em detrimento da já lendária pressa paulistana. Vimos uma gestão que se preocupou como nunca com minorias oprimidas, buscando dar oportunidades de recomeço para usuários de crack e travestis. Um governo que escolheu estender a mão e que mudou a forma como seus habitantes lidam com o espaço público. Até Carnaval de rua, veja só, passamos a ter na cidade. Incentivou como ninguém a arte urbana. Investiu em ciclovias. Eu sinceramente achava que era impossível que esta cidade tivesse uma malha cicloviária decente, toda vez que este assunto era abordado em debates políticos me parecia uma utopia. Vi que não é. Vimos uma cidade que investiu mais em transporte público e menos em publicidade. Temos bilhete único diário, mensal e semanal e um número muito grande de corredores. Vimos uma cidade que investiu no coletivo. Uma gestão cujo slogan é “Existe amor em SP”. Sim, é possível amar esta cidade. Há, a meu ver, um projeto aparentemente pequeno que foi o grande símbolo desta gestão. Em 2015, a Prefeitura resolveu trocar todas as carroças de catadores de lixo da cidade. Bastava ao catador levar a carroça antiga a um local determinado e ele ganharia uma carroça nova, mais fácil de transportar e com um detalhe fundamental. Havia nela um compartimento para colocar o cachorro. Uma gestão que teve a preocupação de olhar aquele ser humano marginalizado, que faz um trabalho fundamental para a cidade, e de perceber a importância que a companhia do animal tinha. Este projeto não valeu um voto, mas acho que voto não foi a preocupação desta gestão.
Toda ação, porém, gera uma reação de igual intensidade. A gestão marcada pelo amor à cidade foi também contemporânea de um momento de explosão do ódio entre seus habitantes. Gente que não quer usar transporte público, embora finja que quer. Gente que não se importa com desigualdades, embora finja que se importe. Gente que não gosta de arte urbana, embora finja que goste. Gente que se lixa para crackeiros e travestis, por exemplo. Gente que não se importa com a vida de ciclistas ou motoqueiros, que só quer correr mais. Foi difícil nestes meses de eleição conversar com pessoas que faziam cara de desprezo cada vez que eram apresentados dados de que a redução da velocidade havia significado redução na morte de pessoas no trânsito. Conversar com gente que acha que artista é tudo vagabundo e que postava fotos de falhas no projeto de ciclovias (que efetivamente existem) para desqualificar todo o projeto. Pessoas que tiveram como primeira reação ontem, após o anúncio da vitória de Doria, xingar seus oponentes ao invés de gritar viva ao novo prefeito que recebeu seus votos. Ironicamente, a gestão marcada pelo amor foi derrotada pelo ódio. Não basta vencer, é necessário humilhar os derrotados. Gente que estava disposta a votar em qualquer um.
A vitória de Doria qualquer um foi esmagadora. A gestão que menos gastou em publicidade foi derrotada por um publicitário. A gestão que apresentou uma nova forma de uso e aproveitamento do espaço público foi derrotada por uma pessoa que já deixou bem claro que boa parte deste espaço será transferida ao setor privado. O prefeito que deu prioridade aos grupos oprimidos foi derrotado por um candidato que já disse que acabará com a Secretaria das Desigualdades. Nada disso importa para a turma do “Fora PT”. Doria já anunciou que reverterá a redução das velocidades nas marginais em sua primeira semana de governo. Também diminuirá o número de radares, permitindo aos motoristas descumprir a lei com maior tranquilidade. “Ufa” eles estão pensando. E “Fora PT”. A gestão estadual das obras de metrô inacabadas, dos trens superlotados falhando e da falta de merenda nas escolas chegou também ao município. “Fora PT” e "Acelera São Paulo"
A quem, como eu, enxergou o caráter humanitário e transformador da gestão Haddad, resta a alegria de saber que ao menos ela existiu. Há quatro anos não achava que algo assim era possível. Agora sei que é. São Paulo voltará a ser a cidade com pressa e estressada, a cidade da "eficiência". Mas agora ao menos sabemos o caminho. Por ter renovado a minha fé na capacidade de transformação que a política é capaz de realizar, tenho que dizer “Obrigado, Haddad”. Mesmo.