Há uma nova discussão nos almoços
dominicais brasileiros nas últimas semanas: os presídios e seus moradores. As
maiores facções criminosas do país estão em pé de guerra e o ditado “cabeças
vão rolar” está presente de forma literal, infelizmente.
Muitas pessoas pensam naqueles
episódios como tenebrosa barbárie, como uma excelente forma de extinguir vilões,
ou até como o “acidente” de Michel Temer. A falta de capacidade do estado de
custodiar as pessoas que infringem a lei é apenas um acidente para o governo
federal. A declaração de impotência passada a cada rebelião me dá medo: se o
estado não consegue cuidar de pessoas confinadas em um prédio, como cuida das
ruas, dos hospitais, das escolas, do país?
O objetivo desse texto não é
mostrar a óbvia má condição em que cidadãos criminosos estão vivendo nos
presídios brasileiros, mas a diferença de tratamento que existe entre cidadãos criminosos
e cidadãos criminosos. O que difere esses dois seres não são as letras com o
que escrevemos “cidadãos criminosos”, já que são iguais, mas a diferença de tratamento
da justiça brasileira perante o nome de cada cidadão criminoso que encabeça o
inquérito.
Pouco mais de 40% dos presos brasileiros
são temporários. Essas são as pessoas que a justiça coloca na cadeia enquanto
caminha com passos de formiga e sem vontade. O juiz entende que aquele cidadão,
se solto, pode cometer outros crimes, atrapalhar as investigações ou fugir. É um
dispositivo justo e necessário. O problema é que no Brasil os presos temporários são esquecidos em cadeias por anos antes de um julgamento em que podem até ser inocentados.
Edmilson Gonçalves dos Santos,
mecânico, morador de Salvador. Preso em 2014 pelo estupro de sua enteada Lanara
de 17 anos, que na época da denúncia tinha 12. O pai biológico da menina
denunciou Edmilson pelo estupro, com a ajuda e testemunho dela. A cronologia é
interessante: Em 2009 Lanara, acompanhada do pai biológico, denuncia Edmilson pelo
crime de estupro. Em 2012 Lanara vai ao Ministério Público baiano para dizer
que era tudo mentira, que foi influenciada pelo seu pai na tentativa de separar
a mãe de Lanara do padrasto e que nunca houve estupro. Pelo o que consta, essa
nova versão nunca foi anexada ao processo. Em maio de 2014 acontece a prisão de
Edmilson, enquanto trabalhava em sua oficina mecânica, logo após a divulgação da
sentença de 10 anos em regime fechado. Três meses depois o advogado de Edmilson
consegue um pedido de revisão e a jovem reitera em juízo que não houve crime,
que havia sido influenciada por seu pai. O pedido de revisão foi aceito e o
mecânico foi julgado novamente em 2016, onde inacreditavelmente os desembargadores
do TJ- BA decidiram manter a pena. A defesa recorrerá ao STF.
Rodolpho Gonçalves Carlos da
Silva, estudante, morador de João Pessoa. Na madrugada de sexta (20) para sábado
(21) ele era o motorista de um Porsche branco que atropelou e matou um agente
do Detran na capital paraibana durante uma blitz da lei seca. Ele fugiu do
local do crime e só pôde ser reconhecido pela placa do veículo que se desprendeu
com o impacto de um bloco de metal contra o corpo de Diogo Nascimento. A justiça de
primeira instância decretou a prisão de Rodolpho às 20h do sábado, dia 21. Os
advogados do estudante nem chegaram a ser notificados, mas prontamente
redigiram o habeas corpus que foi deferido pelo desembargador Joás de Brito
Pereira Filho às 3 da manhã de domingo. Rodolpho é neto do ex-senador e
ex-governador da Paraíba José Carlos da Silva Júnior. A família de Rodolpho é
dona da TV Cabo Branco, afiliada da Rede Globo, e proprietária do Grupo São
Braz.
A semelhança entre os dos casos fica
apenas no sobrenome do acusado. Edmilson alega que foi torturado na
penitenciária por 16 homens e que ficou dias sangrando pela boca e ouvido. Diz
também que não sofreu violência sexual, mas não sei se diz a verdade ou se ainda
tenta salvar o pouco de dignidade que a justiça brasileira o deixou, já que
caso o relato de Lanara tivesse sido levado em conta em 2012 a prisão nem teria
ocorrido. É incongruente, mas o Gonçalves pobre teve sorte, já que se os “acidentes”
ocorridos nos presídios do norte e nordeste do país tivessem acontecido no
pavilhão 4 da penitenciária Lemos de Brito (BA) ele seria apenas mais uma
cabeça rolando no Whatsapp de pessoas sedentas de uma justiça tão contraditória
quanto a sorte de Edmilson.
Ainda é cedo para definir o
futuro do Gonçalves rico, mas ele está muito mais próximo do de Thor Batista do
que o de Edmilson, que ainda deve cumprir 8 anos por um crime que nem cometeu.
"Você pode julgar a sociedade pelo quão bem ela trata seus prisioneiros."
(Dostoiévski)