quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

"Cara, você não vai acreditar", os dois 15 de março e o inferno




“Cara, você não vai acreditar”. Parece que o capitão que virou presidente depois de passar três décadas como deputado exaltando a ditadura e a tortura quer dar um golpe de estado.
“Cara, você não vai acreditar”. Parece que o general que ameaçou fechar o Supremo caso ele soltasse durante o processo eleitoral o candidato que venceria o capitão do parágrafo acima no processo eleitoral quer dar um golpe de estado.
“Cara, você não vai acreditar”. Parece que o deputado federal filho do capitão presidente que disse que para fechar o Supremo bastava um tanque e um cabo quer dar um golpe de Estado.
“Cara, você não vai acreditar”. Parece que o juiz que se consagrou desrespeitando a lei “para pegar bandido” e se aliou ao capitão quer dar um golpe de estado.
“Cara, você não vai acreditar”. Parece que o presidente que quando deputado exaltava o trabalho das milícias policiais que aterrorizam o RJ está incentivando a expansão destas milícias para outros estados e quer usar esta turma para dar um golpe de estado.
“Cara, você não vai acreditar”. Parece que o ministro da economia que enxerga o Chile de Pinochet como exemplo a ser seguido quer dar um golpe de estado.
Em 15/03/2020, esta turma da pesada estará nas ruas. Se não eles, a trupe que mobilizam. A pauta é pedir um golpe de estado. A passeata ocorrerá exatos quatro anos após a maior passeata pelo impeachment de Dilma. Alguns vão chorar e espernear, mas são as mesmas pessoas. Todas as pautas que serão apresentadas em 2020 já estavam lá em 2016. Aquele foi o primeiro passo.
O ataque às instituições começou lá. O 15/03/2020 começou no dia em que Moro vazou uma conversa que havia gravado ilegalmente envolvendo a presidenta da República. Fez isto e não sofreu nenhuma punição. Na mesma semana, vazou para uma revista semanal a delação de um ex-senador sem provas e que não seria aceita alguns anos depois. Também não sofreu nenhuma punição por isso.
Ao contrário do que muita gente diz, o autoritarismo se instala passo a passo. Não é algo que vem de repente. As instituições vão sendo gradualmente atacadas até o momento em que o ataque final parece inevitável, mesmo para quem o sofre. Há dez anos, por exemplo, seria um escândalo imaginar que um capitão idólatra da ditadura seria eleito presidente. Em 2018, foi aceito com normalidade. Notem como a tática é semanalmente criar algum tipo de notícia que ameace a implantação de uma ditadura.
O Brasil nunca teve apego à democracia. O verdadeiro apego é aquele em que colocamos a defesa destes valores acima de qualquer necessidade punitivista. E não falo apenas do absurdo e simbólico caso de Lula, preso e afastado das eleições por um processo duvidoso (para dizer o mínimo) comandado por um juiz que viraria ministro do candidato que só foi eleito graças a esta prisão. Em qualquer lugar sério este processo já estaria cancelado e teria recomeçado apenas por isso, mas não aqui, isto foi normalizado. Mas falo também de outras prisões. Falo da prisão de Sérgio Cabral, claramente corrupto aliás, mas que foi colocado em prisão preventiva sem nenhuma base que a justificasse e cujas imagens preso serviram para saciar o sentimento de vingança. Não se passa por cima de um processo legal para prender bandidos. Democracia é um processo. Falo também de Luiz Fernando Pezão, que também acredito ser corrupto, mas que teve a prisão declarada enquanto exercia um cargo para o qual havia sido democraticamente eleito por um juiz de primeira instância, passando um ano preso de forma preventiva sem ter sido nenhuma vez ouvido sobre o processo. Sim, falo de uma pessoa que passou um ano preso e não teve direito à defesa. Falo dos nomes do PSDB presos por Moro durante o processo eleitoral de 2018, prisões que facilitaram as eleições de Ratinho JR no PR e de Ronaldo Caiado em GO, ambos aliados de Bolsonaro e de Moro. Falo também da bizarra prisão de Michel Temer, a quem considero um golpista fdp, mas preso de forma circense sem  nenhuma base le gal. Defender a democracia significa defender direitos para todos, mesmo para os que não gostamos. Não diria nem "mesmo", diria principalmente.
Tivemos em 2018 que fazer uma escolha que deveria ser a mais fácil do mundo. Era fácil pra caralho, aliás. Toda eleição em que existe alguém democrático contra alguém não democrático, temos isto que chamo de escolha fácil pra caralho. Ganhou a escolha errada. Venceu o capitão. Venceu um projeto que representava o ressentimento. Venceu o candidato que fez carreira falando absurdos em programas de subcelebridades, que enalteceu o genocídio indígena, que fez piadas racistas, que disse que teve uma filha mulher porque deu uma fraquejada, cujo vice disse que o problema do Brasil eram os filhos de mães solteiras cujas famílias eram desregradas, que chamava os beneficiados do Bolsa Família de vagabundos, que disse que o maior erro da ditadura militar foi não ter matado mais, que exaltou um torturador em rede nacional enquanto julgava a torturada, que durante a campanha ameaçou abertamente invadir um país vizinho.
Houve um momento em que um novo golpe de estado no Brasil parecia impossível. Não parece mais. Cada vez mais coisas impossíveis acontecem. A prisão de Lula já foi impossível em algum momento. A eleição do capitão também foi. Vivemos num país em que uma vitória em eleição não significa uma simples vitória, significa estar certo. A mensagem que o país recebeu em outubro de 2018 foi que tudo aquilo que Bolsonaro diz está certo. E esta gente se acha certa há muito tempo. Desde que esta loucura começou, em 2015. E não importa as vitórias que tenham, quanto mais vencem, mais ansiosos e nervosos ficam. Eles continuam emburrados, basicamente porque é tudo que sabem ser. A destruição de um inimigo implica necessariamente na criação de um novo inimigo, é uma espécie de guerra total. A força que os motiva é o ódio e a única coisa que ele consegue fazer é destruir. Notem que todo o programa do governo Bolsonaro implica em destruição. Não há nada realmente sendo construído. Não ache que o 15/03/2020 seja o final do filme, é apenas uma etapa, assim como o 15/03/2016. A história cobra. É clichê, eu sei, mas quem não conhece a própria história sempre repete os mesmos erros. Também é clichê dizer que “eu avisei”. E não serve para nada dizer que “eu avisei”, aliás. Mas que “eu avisei”, eu avisei. Se você é do tipo que acordou para o inferno apenas agora, seja bem-vindo. Antes tarde do que mais tarde. Há quem já notou este inferno há quatro anos.

P.S.: A passeata que também ocorreu em 15/03 ocorreu em 2015, e não em 2016 como está no texto. A passeata de 2016 ocorreu no dia 13/03.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

A influência de Dedé e o Comando Maluco no governo Bolsonaro



Há exatos quinze anos, estreava aquele que o tempo mostraria ser o mais importante e influente programa de televisão deste início de século no Brasil: Dedé e o Comando Maluco. Antes de falar o porquê de este programa ser tão importante, é necessário que falemos um pouco sobre a trajetória de Dedé Santana.
Consagrado em Os Trapalhões, Dedé Santana sempre foi o humorista que não teve graça. Mais do que isto, sua função no programa era não ter graça. Eterno coadjuvante, ele era a escada, o que preparava a piada para que os outros se destacassem. Sem ter muito que mostrar, foi perdendo espaço após as mortes de Zacarias e Mussum, até o momento em que foi substituído por algum ator de Malhação no papel de coadjuvante humilhado por Didi. Perdido, encontrou primeiro um caminho na música evangélica, caminho, aliás, seguido por muitos outros artistas sem talento durante a decadência. Tudo mudaria, porém, em 2005.
Disposto a divulgar seu parque de diversões, Beto Carrero comprou um horário matutino no SBT e resolveu fazer um programa de humor com sede no parque. Sem tanta verba, viu no recém-evangélico desempregado Dedé Santana uma boa oportunidade de ter um rosto razoavelmente famoso pagando pouco. E foi assim que surgiu a “obra-prima” Dedé e o Comando Maluco.
Tendo como premissa inicial a ideia de que Dedé Santana seria um general contratado por Beto Carrero para proteger e desvendar crimes cometidos no parque, o programa revolucionou a televisão brasileira com uma série de novidades. A primeira era a completa ausência de roteiro. O telespectador tinha a impressão de que não havia uma história escrita. Abandonou-se também qualquer tipo de linearidade, com não apenas as cenas não tendo relação entre si, mas com os diálogos dentro da mesma cena não possuindo nenhum nexo. O elenco era todo formado por amadores sem experiência ou talento, havia uma música que tocava a cada situação “engraçada” e o final parecia abrupto. Digo que parecia, porque no fundo todo o programa era assim, uma vez que não havia nexo nenhum em nada que acontecia no programa. A experiência durou três anos, com o programa sendo encerrado após a morte de Beto Carrero. Dedé Santana, porém, pôde mostrar o seu “valor”, uma vez que o programa chegou a liderar as audiências aos domingos de manhã, especialmente quando tinha a sorte de concorrer com corridas de Fórmula 1. Dedé seria recontratado pela Globo logo depois da nova demissão e teria mais alguns anos realizando o papel para o qual foi destinado, ser a escada sem graça de Renato Aragão.
Um empresário rico contratando um humorista sem graça e sem talento para fazer um programa sem nexo com atores despreparados e inexperientes. A televisão trazia com treze anos de antecedência o que seria o governo Bolsonaro. Basta trocarmos Beto Carrero por Mercado, Dedé por Bolsonaro e Comando Maluco por... bom, pode manter o nome Comando Maluco, e temos um belo exemplo de como a arte é capaz de antecipar a realidade.
Cansado dos anos de contrariedade com um governo que tinha como foco a inclusão de minorias e o combate à desigualdade, o tal do Mercado resolveu se aliar a um capitão muito doido. Completamente despreparado, Bolsonaro transformou a ignorância em sua maior “qualidade” durante a campanha de 2018. Usando da fama obtida através de participações polêmicas em programas de subcelebridades, Bolsonaro soube como ninguém cativar o público que transformara Dedé e o Comando Maluco em líder de audiência. Eleito graças às mais doidas teorias da conspiração e paranoias, estimulando a violência como solução fácil para todos os problemas e humilhando minorias, Bolsonaro apressou-se em formar um ministério que muito lembrou o Comando Maluco de Dedé Santana. Inimigo da ciência e de qualquer tipo de conhecimento, o novo presidente optou por figuras inexperientes, com produção acadêmica nula, coadjuvantes ressentidos e com visão de mundo parecida com a sua para guiar os rumos do país. Apelidou estas pessoas de “especialistas sem ideologia”. Para Ministro da Fazenda, o “especialista” é um economista sem nenhuma experiência na área pública e sem nenhuma produção científica, mas que diz as coisas que o Beto Carrero Mercado gosta. Para Ministro da Justiça, escolheu um juiz de primeira instância, consagrado com sentenças que muito lembram o roteiro de Dedé e o Comando Maluco, uma vez que também não têm início meio e fim, sem experiência em Segurança Pública, incapaz de citar um livro que tenha lido e que tem como principais referências na área que hoje comanda personagens de filmes de Hollywood. Para ministro da Educação, escolheu outro economista que era o pior aluno da turma, também sem nenhuma experiência na área, que toda semana se destaca por uma nova trapalhada típica do Comando Maluco. Para ministra dos Direitos Humanos, uma pastora que ninguém sabe ao certo o que fazia antes do governo e que baseia todo seu conhecimento “científico” na Bíblia. Para ministro da Tecnologia, um astronauta que faz palestras vestido com uniforme da Nasa, apesar de ter ido ao espaço num acordo entre Brasil e Rússia, também sem experiência alguma na área pública, e que parece ser o mais razoável do Comando Maluco pois diz que a Terra é redonda. Ainda vai ser expulso do Comando por isso.
Na semana passada, criador e criatura se encontraram em Brasília. O ex-humorista coadjuvante ressentido encontrou o ex-capitão coadjuvante ressentido. Um dos assuntos tratados no encontro foi o fim da meia-entrada para estudantes em eventos culturais. Sim, o destino de um instrumento que, embora muitas vezes mal usado, facilita o acesso de estudantes à cultura, será decidido por um ex-capitão fracassado que tem como livro favorito a biografia de um torturador sanguinário. Dedé Santana se disse surpreso com a ideia numa entrevista depois do encontro. Disse basicamente que achou que o encontro era só um almoço. Bom, quem nunca foi parar em frias querendo só comer, aliás. Independente disso, sua parte para o futuro do país Dedé Santana já fez. Vivemos num grande Dedé e o Comando Maluco, um presente distópico em que nossa educação é destruída por um imbecil lunático, em que nossa justiça é estraçalhada por um ignorante revanchista tratado como justiceiro acima das leis, em que a ideia de educação sexual é substituída pelas sandices de uma pastora evangélica. Vivemos como num roteiro mal escrito, em que as coisas acontecem aparentemente sem relação com nada, em que tudo parece ser uma surpresa. Tudo isto com a aprovação do Beto Carrero Mercado, que colocou todas as suas fichas nesta maluquice. Estes tocam a vida normalmente enquanto compram ações de empresas de armas e de outras que lucram com a destruição do setor público. Quando a situação explodir, estes que hoje investem no Comando Maluco já não estarão por aqui. Terão fugido do parque. Por enquanto seguem rindo bastante. Acham Dedé e o Comando Maluco engraçado.