sexta-feira, 29 de maio de 2020

A falsa simetria




Nada no mundo é pior do que Bolsonaro. Ele se tornou a referência do que é ruim. Toda vez que alguém fala alguma merda ele logo é comparado ao presidente. “Ele é tipo Bolsonaro”. Mas, repito, não há nada pior do que Bolsonaro. Nada. Este tipo de comparação é muito comum entre as pessoas que estão arrependidas por terem votado no capitão ou que optaram pelo voto nulo no segundo turno em 2018. Como uma tentativa de aliviar a mente da culpa que sentem (ou que ao menos deveriam sentir se tivessem vergonha na cara), elas vibram quando alguém do PT fala alguma bobagem comparável às inúmeras ditas por Bolsonaro. Foi assim com Lula na semana passada. Lula disse uma grande bobagem e merece ser criticado por isto. Reconheceu o erro e inegavelmente tem crédito para que as desculpas sejam aceitas. Mas não adianta. Para boa parte dos “arrependidos” ou “nulos”, isto foi suficiente para tentar aliviar a mente. “Viu, eles são a mesma coisa”, eles disseram. Não são.
A seita dos “arrependidos e nulos” gosta de classificar o mundo a partir da palavra seita. Há uma seita lulista e uma seita bolsonarista, segundo eles. Não entrarei no mérito do termo escolhido. Inclusive os aceitarei nesta análise com o objetivo de torná-la mais fácil. Sim, a seita lulista ama Lula. E o principal motivo para isto é a melhora que o seu governo trouxe para a vida dos integrantes desta seita ou para a vida de pessoas próximas. É a senhora que passou a vida lavando a roupa no tanque e conseguiu comprar uma máquina de lavar. O garoto que nos anos 2000 se tornou o primeiro integrante da família a fazer faculdade. É a empregada doméstica que teve seus direitos reconhecidos após décadas de abandono. A família da pequena cidade que teve a luz elétrica chegando em seu município. O pedreiro que, graças ao Bolsa Família, não precisou mais se sujeitar a aceitar qualquer trabalho para não passar fome. As pessoas que puderam ir de avião visitar seus parentes em cidades distantes, não precisando mais ficar três dias dentro de um ônibus. Milhares de pessoas excluídas que tiveram no governo Lula a primeira chance de colocar a cabeça para fora d’água. Que ganharam voz. O sentimento que nutre a seita lulista é a gratidão.
O mesmo não acontece na seita bolsonarista. Bolsonaro sempre foi a figura que berrava contra tudo isto. Bolsonaro deu voz à patroa que ficou puta em ter que pagar FGTS para a empregada. À elite que não gostou de dividir avião com a ralé. O mercado financeiro que não aguenta mais direitos trabalhistas. Toda a linguagem de Bolsonaro era destrutiva. O Bolsa Família era coisa de vagabundo, as cotas deveriam ser abolidas (em um dado momento ele disse que brasileiro tinha que acabar com esta tara por faculdade), os direitos trabalhistas abolidos. Ele nunca propôs construir nada. Repito, toda sua linguagem era voltada para a destruição. Deputado insignificante, ganhou fama em programas de subcelebridades e de “humor”, aqueles em que normalmente pessoas de classe média alta saíam por aí apavorando pessoas pobres (Lembro de um quadro do Pânico em que um cara ia na praia tirar sarro de pessoas que ele julgava feias). Bolsonaro estava sempre bravo e humilhando. Lutava contra o “politicamente correto”, termo criado por pessoas escrotas para justificar a própria escrotice. Encontrou eco em milhões de pessoas frustradas e rancorosas. Pessoas que não tiveram suas vidas materiais pioradas no governo petista, mas que se incomodaram em ver os pobres se aproximando. Bolsonaro deu voz a todos os preconceitos não muito escondidos em nossa sociedade. Racista, homofóbico, machista. “Tudo mimimi”. Desvaloriza a ciência e o conhecimento. Enxerga a própria burrice como qualidade. Exalta a tortura. Lembra da classe média vibrando com Capitão Nascimento colocando uma sacola na cabeça de negro pobre na favela? Ninguém fechou os olhos vendo aquilo na tela grande. A morte sempre foi a principal promessa de Bolsonaro. Desde antes da campanha, aliás. Enquanto Lula organizava as greves que representaram no fim dos anos 1970 o início da mobilização que resultaria no movimento pelas Diretas-Já, Bolsonaro organizava atentados nos quartéis. Diria anos depois que o maior erro da ditadura foi não ter matado pelo menos uns trinta mil. Suas maiores promessas de campanha foram metralhar a oposição, expulsar os descontentes e liberar o porte de armas. Se o sentimento que move a seita lulista é a gratidão, o que move a seita bolsonarista é o rancor. É o ódio. Notem que seus eleitores fiéis seguem furiosos. E continuarão assim. Este ódio é a única coisa que os move, sua razão de existir.
Críticas podem sim ser feitas ao governo de Lula. É fato que foram inúmeros os escândalos de corrupção, frutos principalmente de alianças que tornaram possíveis a governabilidade. Se a corrupção é a maior crítica que podemos fazer ao governo Lula, ela é a menor das críticas que podemos fazer ao atual governo. Bolsonaro seria um monstro mesmo se não fosse corrupto. Numa sociedade com o mínimo de decência, não precisaríamos nem ter que mostrar que Bolsonaro é corrupto. E é. Desde sempre. Quem diz que não sabia que Bolsonaro é corrupto é alienado, burro ou cínico. Ou mais de um destes adjetivos ao mesmo tempo. É bandidinho. Roubava o salário dos próprios funcionários no gabinete. Isto deveria ser irrelevante.
Durante a Lava Jato, criou-se uma narrativa em que a corrupção era a pior coisa do mundo e tudo valia a pena para combatê-la. Assim a sociedade aplaudiu as inúmeras agressões da operação contra o estado democrático de direito, o direito à defesa e a presunção de inocência. Conduções coercitivas transformadas em shows televisivos, prisões preventivas convertidas em instrumentos de tortura para obtenção de delações, nem sempre verdadeiras. O movimento de rancor e ódio encontrou na Lava Jato o seu instrumento de “justiça”. Completou o processo com a eleição do idiota.
Lula nunca chegou perto de representar os riscos de ruptura democrática que Bolsonaro representa. Não só ele, mas ninguém. Sempre lutou dentro das regras. Lutou contra o impeachment de sua sucessora, mas aceitou o resultado, mesmo que o processo tenha sido completamente fajuto. Aceitou sua prisão injusta e lutou contra ela sempre dentro da lei, nos tribunais. Passou mais de um ano preso, foi impedido de ver o enterro de seu irmão e quase não pôde se despedir de seu neto. Saiu e mesmo assim não prega o ódio. Não vai ser um “ainda bem” mal dito que vai estragar isto. E também não é este “ainda bem” que o tornou comparável ao monstro que foi eleito. Quem ajudou a elegê-lo é cúmplice, pois todos os crimes já estavam anunciados. Todos os arrependidos são bem-vindos, desde que honestos na luta.
Em 2019, a Argentina viveu uma situação até que parecida com a do Brasil de 2018. Não digo que muito parecida porque Macri é muito melhor que Bolsonaro. Mesmo assim, Macri aceitou uma posição submissa a Bolsonaro e não recusou seu apoio. Assim como no Brasil, a Argentina teve alguém classificado como “poste” como adversário destas forças reacionárias. Assim como no Brasil, o “poste” era um professor. A Argentina escolheu o professor. Durante a pandemia, morreram por lá 508 pessoas. No Brasil, o país que escolheu o capitão genocida, morreram 26.704 pessoas. E contando. Cada país fez sua escolha. Enquanto o professor uniu o país, apostou na ciência e prioriza salvar vidas, o capitão espalha notícias falsas, minimiza a dor daqueles que perderam entes queridos e estimula as pessoas a arriscarem a vida com o apoio de empresários igualmente imbecis. O que esperar de um cara que teve como momento mais famoso uma homenagem a um torturador em rede nacional? Igualar Bolsonaro a qualquer coisa é normalizá-lo. Ele não é normal. É pior que tudo. É o triunfo do ódio. Parar de normalizá-lo é o primeiro passo para tentarmos sair deste abismo em que caímos.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

ME AJUDA, LUCIANO!



Há uma classe de pessoas denominada isentões. Ser isento é um adjetivo, por si só, definidor, porém eu acho que o termo isentão foi criado para destacar pessoas que evitam escolher um lado mesmo que motivos para o contrário caiam em suas cabeças. É muito complicado manter um pé em cada canoa na descida do rio, você quer os bônus de cada lado e também que se julgar livre para criticar ambos.
Um caso que se tornou chacota, embora eu tenha extremo respeito pela figura na história, é o de Marina Silva. Marina foi declarada de extremo centro, tamanha a isenção em suas falas e dubiedade nas suas ações. Marina é incapaz de responder uma questão diretamente, parece a todo momento navegar nas duas canoas. Uma vez perguntada se era de direita, de esquerda ou de centro, Marina respondeu que estava à frente.

Uma marca de todos os isentões envolvidos na política dos últimos anos é colocar Bolsonaro e Lula como iguais de lados opostos, bem como seus apoiadores. O jornal O Estado de São Paulo publicou em 2018, pouco antes do segundo turno, o editorial mais vexatório possível e que até hoje é revisitado. O texto UMA ESCOLHA MUITO DIFÍCIL queria demonstrar como seria complicada a decisão do eleitorado nacional ao escolher entre Fernando Haddad, professor universitário, advogado, mestre em economia e doutor em filosofia, e o deputado Jair Bolsonaro, militar. Um ano e meio depois do editorial jornalistas do Estadão foram agredidos em um ato pró Bolsonaro em Brasília.
Colocar Bolsonaro e Lula no mesmo balaio é sempre uma tática para dizer não possui lado, de que o seu partido é o Brasil, que não tem político de estimação. Chegamos, então, ao personagem principal do texto. O apresentador Luciano Huck tuitou nessa semana o seguinte:

“Assustador. Duas das principais autoridades do país seguem frias na semana que vms chegar a 20 mil mortos. Sensibilidade zero. Nenhuma palavra de carinho c/ as famílias vítimas da pandemia. Um preocupado c/ o tamanho do Estado. O outro c/ a tubaína. O Brasil está descoordenado”.

Bolsonaro fez uma piada com cloroquina e tubaína, seguida de riso frouxo. Lula quis dar ênfase à importância do Estado para a população. Luciano Huck tratou de colocar esses dois aspectos no mesmo tuite. Assustador mesmo, Luciano.

O apresentador global está há anos construindo a sua imagem pública baseado no assistencialismo televisivo. Ele foi muito bom em construir a imagem de que ajuda as pessoas, quando na verdade compra histórias de pessoas paupérrimas para garantir 30, 40 ou 60 minutos de audiência, dando em troca uma reforma no carro, na casa, ou um prêmio qualquer em dinheiro. Eu costumo dizer que é muito difícil encontrar a caridade pura, já que se você faz o bem mas o conta para uma pessoa sequer estará tentando lucrar algo com aquilo, mesmo que seja apenas afeto ou reconhecimento. O Caldeirão do Huck possui dois objetivos: gerar lucro e criar a imagem perfeita do apresentador caridoso. No caso de Luciano é assim, lucro e caridade cabem sim no mesmo tuite.

A abordagem de Lula sobre a importância do Estado é necessária simplesmente pelo fato de estarmos em uma pandemia, e de que 75% da população depende exclusivamente do SUS. O Sistema Único de Saúde é realmente singular, já que está pronto para atender 210 milhões de habitantes, bem como qualquer estrangeiro em nosso território. Isso é incomparável no mundo.
A afirmação da saúde como primordial para a população brasileira na Constituição de 1988, com a posterior criação do SUS, é uma conquista de importância incalculável para o bem estar social. Estamos em um momento de avanço dos serviços privados sobre os públicos. Seja na saúde, na educação, nos bancos ou na segurança, o sucateamento do Estado é o objetivo dos conglomerados para empurrar goela a baixo a solução particular. Luciano é um liberal convicto, pensa que o Estado exige demais das pessoas através da cobrança de impostos, assim como eu penso. No meu caso, entretanto, acredito que os impostos sobre o consumo devem ser mitigados em prol dos impostos sobre fortunas e grandes heranças. Luciano é contra mais impostos sobre grandes fortunas e sobre heranças, afinal é herdeiro e rico. O pensamento liberal do apresentador é de tornar o Brasil um grande Caldeirão, onde os ricos ficam com as grandes receitas de publicidade enquanto os pobres recebem migalhas, após concluírem alguma gincana pitoresca.

Huck tem realmente uma relação de amor e ódio com o Estado. Em 2003 a sua pousada em Fernando de Noronha foi interditada pelo Ibama. Em 2007 foi acusado de outro crime ambiental pela prefeitura de Angra dos Reis e foi obrigado a paralisar a construção do seu deck, da sua garagem de barcos e da sua praia artificial, porém um ano depois foi beneficiado por um decreto do Sérgio Cabral que alterava a legislação ambiental, decreto que ficou conhecido como “Lei Luciano Huck”. Os advogados de Huck trabalhavam no escritório de Adriana Anselmo, esposa de Cabral. Em 2013 o liberal Huck adquiriu um empréstimo de 17 milhões de reais do BNDES, com juros de 3% ao ano, para comprar um jatinho particular. Está aí o Estado criando problemas e soluções para a vida do pobre milionário.

Até os isentões precisam se posicionar algumas vezes. Marina Silva declarou voto em Haddad na escolha muito difícil de 2018, já Luciano Huck, no mesmo cenário, disse: “Eu não voto no PT, eu nunca votei no PT e eu não vou votar no PT”.

Qual será o plano de saúde da família Huck?