segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Pitacos que ninguém pediu sobre a eleição para prefeitura de SP

 Há 85 anos, mulheres conquistaram direito ao voto no Brasil | PSOL-SC

1) Não acho que Guilherme Boulos tenha chance de ser eleito prefeito. Imaginar que uma cidade que deu mais de 60% dos votos há dois anos para um capitão genocida, torturador e que representa o que há de pior na humanidade vá dar mais de 50% a alguém como Boulos, que representa o oposto de tudo que é o capitão, me parece ilusão. Mas ao mesmo tempo acho justo que as pessoas curtam ilusões. Elas nos ajudam muito em momentos horrorosos como o que vivemos. Independente disto, seria muito muito importante que Boulos tivesse uma quantidade razoável de votos e, quem sabe, fosse ao segundo turno. Isto daria um grande espaço ao assunto habitação no debate público. A falta de habitação e a especulação imobiliária são dois dos maiores problemas que temos na cidade e a grande mídia não conseguiria mais esconder estes assuntos do noticiário com Boulos no segundo turno. Seriam obrigados a dar a ele o espaço que nunca dão para falar sobre este assunto. Além disso, respeitando o enorme legado de Lula, o maior líder popular da história deste país, não podemos nos esquecer que ele é um senhor de 75 anos sobrevivente de um câncer. Lula mostra uma força e uma dignidade gigantescas após viver enormes dramas pessoais com sua prisão injusta e com a perda de familiares próximos. O presidente é um exemplo a ser seguido. No entanto, a esquerda precisa que surjam novos nomes para o futuro e Boulos e Freixo são as duas melhores opções. Um bom desempenho agora significará mais força em eleições futuras (se elas acontecerem);

2) Bruno Covas fez uma boa gestão, principalmente se pensarmos que a cidade ficou um ano e quatro meses completamente parada na piada que foi a gestão de João Doria Jr. Covas foi também o líder que mais se destacou positivamente na pandemia. Mostrou enorme coragem e força ao enfrentar a tragédia pública ao mesmo tempo em que enfrentava um câncer, sempre colocando a vida em primeiro lugar e enfrentando os interesses do empresariado. Isto dito, seus números nas pesquisas são preocupantes. Embora esteja liderando, 16% para quem é o ocupante atual do cargo, conhecido por todo o eleitorado, é um número muito baixo. O eleitorado paulistano é um eterno descontente. Contrariando o que acontece no estado e no país, é rara uma vitória da situação na cidade. Das nove eleições desde a redemocratização, apenas em duas o candidato da situação venceu (Pitta em 1996 e Kassab em 2008). Também pesa contra ele a forma como a Lava Jato passou a focar suas ações no PSDB para tentar conquistar o que restou do eleitorado tucano. Embora todos saibam que eu tenho muitas divergências ideológicas com o atual prefeito, acredito que sua reeleição seria uma boa notícia. A democracia brasileira precisa do ressurgimento de uma centro-direita e de uma direita civilizadas, ela funcionará melhor se um líder deste campo tiver características que permitam classificá-lo como um ser humano, e Covas provou que se encaixa neste grupo. As pessoas dizem que Bolsonaro e a Lava Jato acabaram com a esquerda, mas isto não é verdade. Bolsonaro e a Lava Jato acabaram mesmo foi com a direita civilizada.

3) Eu acho inimaginável um segundo turno na cidade de SP sem um candidato de extrema-direita. Lembremos que a cidade foi fundamental para a ascensão de Sérgio Moro e de Jair Bolsonaro. Os dois grupos fascistas, Lava Jato e bolsonarismo, se separaram e terão candidatos separados na capital paulista. Falemos dos dois separadamente.

4) No campo lavajatista, a candidata será Joice Hasselmann, a meu ver a candidatura com maior potencial de crescimento na cidade. Joice é a personificação da maior parte da classe média paulistana. Ignorante, preconceituosa, agressiva, arrogante, egocêntrica, com enorme facilidade de comunicação e boa conhecedora de redes sociais, Joice é quase uma versão atualizada de João Doria Jr. Totalmente sem escrúpulos e sem ética, já se mostrou capaz de tudo por poder. É uma das precursoras da onda de fake news no Brasil, produzindo-as desde a época em que era jornalista da revista Veja. Sabe ler e entender o eleitorado como ninguém e, assim como Doria fez em 2016, terá uma campanha voltada para a pesquisa de marketing, ou seja, dirá aquilo que o eleitor paulistano quer ouvir. Este eleitor sempre quer “novidade” e não tenho dúvidas de que cairá no papo de Joice. Além disso, Joice é extremamente próxima de Sérgio Moro e da Lava Jato, tendo escrito uma das primeiras biografias enaltecendo o “herói”, já em 2016. É muito possível que a Lava Jato se empenhe em ajudá-la para criar na prefeitura de SP um trampolim para a candidatura presidencial de Moro em 2022. Joice é o espírito do tempo, tem a mediocridade para representar uma geração;

5) No campo bolsonarista, é muito provável que o candidato seja Celso Russomano. O “defensor dos consumidores” da TV tem o ambiente propício para finalmente chegar à prefeitura, mas enfrenta uma verdadeira tradição paulistana. Assim como o pão com mortadela, a padaria com catraca e o shopping center, já podemos classificar como tradição paulistana a desidratação da campanha de Russomano na semana da eleição;

6) O segundo candidato com mais potencial de crescimento é Jilmar Tatto. Deve conquistar uma boa parte dos votos de Boulos, uma vez que muita gente ainda acha que Boulos é o candidato do PT. Foi secretário de transportes nas gestões de Marta Suplicy e Fernando Haddad, participando da criação do bilhete único e das implantação das faixas de ônibus que tanto ajudaram a melhorar o fluxo de transporte na cidade. A eleição de 2018 mostrou que o PT recuperou boa parte dos eleitores na periferia e Tatto tem sim chance de ir para o segundo turno. A maior parte da direita focará os ataques em Boulos e boa parte dos votos que este perder em razão destes ataques irão para Tatto;

7) Em 2018, o Patriota apresentou ao país Cabo Daciolo. Mantendo a linha de apresentar candidaturas absurdas, o partido lança neste ano Arthur Mamãe Falei, o mais aloprado membro do aloprado MBL. Após tentar reposicionar sua marca com um discurso mais “sereno”, o MBL vem se radicalizando novamente e é bem possível que Mamãe Falei faça muita baixaria nesta eleição. Não acho que tenha chance alguma, acredito que o empresariado que tanto financiou o MBL entre de cabeça na candidatura de Joice ou de Russomano.

8) Ex-governador, Márcio França vem apresentando números paupérrimos nas pesquisas e pode ver esta eleição significar o fim de sua ascensão política. Faria mais sentido esperar mais dois anos para tentar o governo. A seu favor conta o fato de ser um dos melhores debatedores da geração.

9) É certo que um dos focos da campanha serão os ataques a Covas. A maior cagada que a esquerda pode fazer neste momento é participar deles. Ninguém deixará de votar em Covas para votar em Boulos ou em Tatto. Todos os votos que Covas perder irão para Joice, Russomano ou França. Em agosto de 2018 focamos os ataques em Alckmin e uma semana antes da eleição lá estávamos nós tentando convencer nossos tios a votarem nele e não em Bolsonaro. Não vamos repetir o erro em 2020. O caminho para a esquerda é propor e aproveitar o tempo para expor os problemas que a elite insiste em esconder. Boulos deve aproveitar todo o tempo possível para falar do horror que é a situação da habitação. E sim, muito provavelmente na primeira semana de novembro tentaremos convencer nossos tios a votarem em Covas e não em Joice.


quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A Lei da Ficha Limpa e o fim da democracia

 


Uma lição que o processo de destruição democrática vivido pelo Brasil deixará a quem estuda o assunto é a fragilidade da estabilidade de regimes democráticos em países que não têm esta tradição. Mais do que isto, a forma como o moralismo é sempre usado por forças imorais para a instalação do autoritarismo. Aqui no Brasil, sem dúvida um falso combate à corrupção foi o mecanismo para a destruição das instituições democráticas. A grande maioria das pessoas, em determinado momento, se preocupou muito mais em apoiar o combate à corrupção do que em defender princípios democráticos, e desta forma o monstro autoritário foi crescendo. Basta um vacilo no processo histórico e começa a tragédia. Ela pode começar pequena e despercebida, mas está lá. O primeiro passo neste processo brasileiro foi a Lei da Ficha Limpa. Foi ela que deu a membros do poder Judiciário o direito de tirar do processo eleitoral candidatos que ainda não são considerados constitucionalmente culpados. Deu a esta camada da elite o direito de decidir em quem o povo pode ou não votar. A maioria da população achou lindo este mecanismo de impedir que “bandidos” pudessem ser eleitos. Era o início do fim.

Na era da aparência, em que o ser e até mesmo o ter perderam espaço para o parecer, as novas ditaduras não necessariamente terão tanques nas ruas. Elas fazem o possível para ter uma aparência democrática, e em um país como o Brasil isto se manifesta através da realização de eleições. Não deixaremos de ir às urnas por nada, pelo simples fato de que a maior parte da população, com pouca educação democrática, acha que votar é o único requisito necessário para se determinar se um país é democrático ou não. Não importa se, por exemplo, o candidato que estiver liderando a eleição for preso e censurado, ganhando em seu lugar um outro que coloca o juiz que manipulou o processo eleitoral como ministro. O importante é ir às urnas.

A Lava Jato é o grande símbolo da nossa decadência. Quem comandou o processo de destruição democrática foi ela, e não Bolsonaro. Este apenas aproveitou o bonde e lhe tomou o protagonismo. A operação de Curitiba prendeu sem provas, manteve pessoas presas preventivamente por tempo indeterminado como instrumento de tortura para a obtenção de delações muitas vezes forjadas, condenou pessoas sem que elas tivessem direito de se defender de todas as acusações, destruiu o preceito de presunção de inocência, criou no imaginário da população a ideia de que o trabalho do juiz é ser inimigo do réu. No Brasil da Lava Jato, inverteu-se a lógica. Se no mundo legal a delação deveria ser o início do processo, cabendo à acusação investigar e obter provas a partir desta delação, no novo Brasil da Lava Jato a delação passou a ser a prova, suficiente não apenas para iniciar o processo e condenar, cabendo à defesa tentar provar a inocência do réu. Quase nunca dava certo. A condenação passou a ser vista como símbolo de justiça e a absolvição como símbolo de impunidade. Muitas vezes, membros da Lava Jato, em suas ações publicitárias, usavam o alto número de condenações como sinal de produtividade da operação. Uma verdadeira máquina de prender pessoas, quase uma linha de produção de fabricação de prisões.

A operação de Curitiba transformou grandes órgãos de imprensa em aliados. Escolheu um grande órgão em cada meio de comunicação e os transformou em cúmplices de seus crimes. A TV Globo era a aliada televisiva, a Revista Isto É no meio impresso e o site O Antagonista no meio virtual. Todos tinham Moro como informado e ajudaram a transformar o combate à corrupção em espetáculo midiático, impedindo qualquer tipo de análise mais crítica da população. E desta forma o direito à defesa e a presunção de inocência foram descartados pelos mesmos jornalistas que na matéria seguinte falavam da “importância do voto”. A sacada de Moro foi que transformar estes meios em cúmplices, além de impedir uma análise crítica dos meios utilizados pela operação, impediria a divulgação de notícias negativas. A TV Globo, por exemplo, até hoje abafa o gigantesco escândalo da gravação de conversas entre Moro e Dallagnol, em que conversas mostram o juiz e a acusação combinando as táticas para condenar um acusado. Estas conversas foram suficientes para acabar com boa parte do apoio internacional que a operação recebia, mas nada mudou aqui dentro. Após sair do governo, inclusive, Moro ganhou uma coluna no site do Antagonista. Moro não é mais apenas a fonte deste órgãos, transformou-os em cúmplices.

Nesta semana tivemos dois exemplos de como a grande mídia segue servindo de porta-voz para os crimes cometidos pela operação, com as perseguições políticas contra Paes, hoje grande obstáculo do programa bolsonarista no Rio de Janeiro, e contra os advogados de Lula, o que incluiu inclusive a obtenção de conversas ilegalmente gravadas pelo então juiz Sérgio Moro contra os escritórios que defendem o ex-presidente. Um país minimamente preocupado com processos democráticos ficaria horrorizado ao saber que um juiz grampeou um escritório de advocacia. Por aqui, ele segue tratado como herói.

O Brasil passou os últimos anos preparando uma barbárie. Sem dúvida, o grande motivo para o nosso fracasso na luta contra o coronavírus é a precariedade das relações de trabalho. Boa parte do nosso estado de proteção social é voltado para proteger apenas o trabalhador formal, ao mesmo tempo em que todo o esforço das políticas públicas tem sido para facilitar a informalização. Os especialistas do mercado, os mesmos que financiaram a barbárie que vivemos, chamaram isto de “produtividade”. Mais da metade do país não tem proteção social alguma e ficou a deriva durante a tragédia. O governo federal fez tudo que pôde para atrasar e barrar o auxílio emergencial, que só conseguiu ir em frente graças ao trabalho da oposição. Em qualquer lugar sério, a pandemia geraria um debate sobre como ampliar o nosso estado de proteção social. Não é o que acontece por aqui.

Punitivismo e individualismo. O Brasil focou os últimos anos em estimular estes dois valores. Os direitos sociais vão se convertendo em serviços a serem fornecidos pelos deus-mercado, o que inclui o trabalho. O antigo trabalhador organizado em sindicatos vai sendo substituído pelo trabalhador-empresa precarizado, sem nenhum tipo de associação com outros trabalhadores, pelo contrário, enxergando-o como seu concorrente. Neste novo mundo, a elite e a mídia incentivam este novo trabalhador-empresa a enxergar os direitos sociais como privilégios e a ter ódio daqueles privilegiados. É desta forma que o serviço público vai sendo destruído. O trabalhador-empresa enxerga o empresário como seu igual e o funcionário público como inimigo. A sociedade individualista enfrentou uma doença que precisava de ação coletiva para ser enfrentada. Não deu certo. Foi cada um por si.

Quem iniciou o nosso processo de destruição democrática não foi Bolsonaro, foi Moro. Aquele simplesmente usa os métodos popularizados por este. Não há saída democrática para o Brasil sem combate ao punitivismo. Se o fim começou com a Lei da Ficha Limpa, o recomeço se dará com o fim deste lei. Mas não esperemos isto desta geração. Ela está mais preocupada com outras coisas. E ficará contente em votar uma vez a cada dois anos em eleições fajutas.