domingo, 13 de fevereiro de 2022

A barbárie e o cancelamento

 


Em 25/03/2021, a apresentadora Xuxa Meneghel deu uma entrevista à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em que defendeu que presidiários fossem utilizados como cobaias para testes de empresas farmacêuticas. Disse Xuxa que, assim eles “serviriam para alguma coisa”. Xuxa não foi repreendida por nenhuma pessoa participando da entrevista. No dia seguinte, após polêmica em redes sociais, Xuxa se desculpou pelo que disse. Dizer que presos deveriam ser usados como cobaias no teste de remédios não foi suficiente para prejudicar muito a carreira de Xuxa.

A desumanização do inimigo é uma das muitos características do regime nazista. É mais fácil eliminar um ser humano quando ele foi descaracterizado como tal. Pensamentos e comportamentos tipicamente nazistas fazem parte do senso comum brasileiro. Em dezembro de 2021, o apresentador Ratinho disse que uma deputada federal deveria ser metralhada por causa de um projeto de lei que buscava tornar os termos da declaração do casamento mais inclusivos. Sugeriu que a deputada fosse “eliminada”. Após polêmica em redes sociais, o apresentador se recusou a falar novamente sobre o tema. Antes desta “polêmica”, Ratinho se destacou por diversas outras barbaridades, como dizer que resolveria os problemas dos presídios superlotados no Brasil com um botijão de gás.

Em fevereiro de 2014, Rachel Sheherazade defendeu em TV aberto o linchamento de um garoto que havia sido amarrado por um grupo de pessoas que o acusavam de roubar celulares. “Quem gosta de ladrão, que o leve para casa”. Sheherazade nunca se desculpou pela fala. Não teve a carreira prejudicada, pelo contrário, tornou-se porta-voz da extrema-direita brasileira, cargo que perdeu quando começou a criticar o atual presidente. Mas afirma segue sem se arrepender do que disse. Em fevereiro de 2022, o congolês Moïse Kibagames foi linchado por um grupo que comanda milícias donas de quiosques em praias no RJ. A barbárie não começou ontem.

O nazismo adora este termos. “Eliminar”. A violência é a solução para tudo. Por isto a tara pelo militarismo, pela polícia. Justiça é vingança. Não há categoria de pessoas mais desumanizada no Brasil do que a dos presidiários. Com eles, pode-se tudo. É necessário legitimar a barbárie e a eliminação dos oponentes, e esta é uma das funções da cadeia. O presidiário não pode ser ouvido e não tem direitos. Por isto é tão importante o apelido de “ex-presidiário” a Lula, aquele que pode derrotar os dois projetos de extrema-direita, que na verdade são um só.

O jornalista Merval Pereira escreveu em fevereiro de 2022 que Moro foi um juiz parcial, mas que isto não é um problema, que imparcialidade não existe. Democracia é um processo e o nazismo seduz com algumas quebras de burocracia. Depois cria outras, de tal forma a tornar toda a sociedade cúmplice de seus crimes. Mas a primeira etapa é reclamar dos processos que tornam a democracia possível. Direito à defesa e presunção de inocência são dois deles.

Transformar seres humanos em cobaias é uma característica nazista. Eliminar oponentes políticos é uma característica nazista. Defender justiçamento de uma maioria contra um suspeito é uma característica nazista. Legitimar uma condenação praticada por um juiz parcial é uma característica nazista. Possivelmente Xuxa, Ratinho, Rachel e Merval processariam alguém que os chamasse de nazistas. Assim como Kim Kataguiri está fazendo. Kim, o líder de um movimento que estimulou alunos a filmarem professores, que invadiu hospitais durante a pandemia e que perseguiu um padre que distribui comida para miseráveis nas ruas de SP. Ser chamado de nazista ofende. O mesmo Kim que defendeu a censura a uma exposição de arte defende a criação de um Partido nazista no Brasil porque isto é “liberdade de expressão”.

No Brasil, o senso comum possui muitas características nazistas. Quase todo mundo tem o tiozão que fala absurdos no almoço. Não é à toa que o Brasil elegeu quem elegeu em 2018. Bolsonaro prometeu metralhar os opositores, como Ratinho. Prometeu legalizar a tortura, como Rachel. Prometeu endurecer penas para tornar a punição “mais fácil”, como quer Merval. Não tenho dúvidas de que apoiaria uma proposta como a de Xuxa. Entre outros absurdos. Comparou em comício na Hebraica os quilombolas a bois, dizendo que eles eram pesados em arrobas. Disse que preferia um filho morto a um filho gay. Disse que não estupraria uma deputada porque ela era feia. Elogiou a chacina em um presídio. Foi aplaudido ao homenagear um torturador em rede nacional. São muitos os absurdos.

O maior absurdo foi ele ter recebido mais de 50% dos votos. Como isto aconteceu? Foi muito tempo de desumanização. Bolsonaro possuía o senso comum. O processo de desbolsonarização do Brasil exigirá humanização. Exigirá muito cancelamento. Ele será nossa principal arma. Qualquer “bola fora” deve sofrer cancelamento. Qualquer. É necessário que uma parcela da população entenda que não pode falar o que quer usando o termo “polêmica” como disfarce. Não pode haver mais espaço para isto. Rachel, Xuxa, Merval e Ratinho não foram cancelados. O cancelamento teria sido o basta. Poderia ter evitado Bolsonaro.

O  processo de humanização precisa passar pela forma como lidamos com a nossa situação prisional. É o grande símbolo da nossa barbárie. A semana já mostrou que o Brasil não aceita a ideia de que um partido nazista exista, e isto é muito bom. Agora é necessário que o Brasil trabalhe para não aceitar também as ideias nazistas.


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

O Pacto

 


O Pacto com o Diabo nunca pode ser desfeito. Uma vez que você vendeu a sua alma, já era. Não depende mais da sua vontade. Será pela eternidade.

O diabo não existe. E ele está em todo lugar. Está dentro de nós. Precisa apenas de um clique para nos ocupar. Aí já era. Virá a vitória. Virá a derrota. Virá o arrependimento. Virá a culpa. Mas aí já era.

Algumas vezes eu já senti que estive em presença demoníaca. Numa aula, conversava com um aluno sobre sei lá o quê e o papo acabou parando na tragédia de Brumadinho. “Ganhei muito dinheiro naquele dia, professor”, disse o aluno. “Como assim?”, perguntou o professor. “Quando vi aquilo, pus uma grana nas ações da Vale”, replicou o aluno sorrindo. O diabo sorria.

Em 17/04/2016, o diabo sorriu em rede nacional. Subiu no palanque, virou para a câmera e homenageou o torturador. “Perderam em 1964, perderam em 2016”, disse o diabo. Apenas um deputado cuspiu no diabo. Boa parte dos restantes aplaudiu. As ruas aplaudiram. O Pacto já estava feito. Alguns se arrependeriam depois. Mas já não depende mais da vontade deles.

A grande arma do diabo é dizer aquilo que a pessoa quer escutar. Todos temos nosso ponto fraco. E queremos soluções simples. O diabo às vezes nos oferece a simplicidade. Seduz com tolices e com noções comuns. “Eu não gosto de corruptos”, disse o diabo. Não que ele se importe com isto. Isto é o de menos. “Eu também não gosto”, pensou o seduzido. “Temos que prender todos os corruptos”, disse o diabo. “É isso aí”, disse o seduzido. Numa sociedade em que todo mundo é culpado todo mundo acha que é o único inocente. É muito fácil convencer o “único inocente” de que o outro é culpado. Basta um boato. O boato vira denúncia. O diabo faz o resto.

O diabo assume a face que o seduzido deseja. Pode ser o tiozão que fala “a real”. Pode ser o juiz que manda prender e que chama direito de defesa de “formalidade”. Pode ser o tecnocrata do mercado financeiro que diz que você vai ganhar muito dinheiro se o cara mais pobre perder os direitos trabalhistas.

O Pacto está em todo lugar. O Pacto é a nossa história. É o bandeirante matando o indígena. É o senhor de engenho chicoteando o negro e estuprando a negra. É a Vale soterrando pessoas em Minas Gerais e garantindo o lucro do acionista em São Paulo. É o militar colocando um rato na vagina da militante presa. É o cidadão de classe média que vê o presídio superlotado e acha isto justo. “Queremos Justiça”. Quem faz o Pacto sempre se acha um “injustiçado”. Ele é o único inocente, afinal. E sempre acha que “merece” o que conseguiu depois do Pacto. A história do Brasil é uma sucessão de tragédia cometidas em nome de uma parcela da população que ou apoia ou opta por um silêncio criminoso enquanto o crime é cometido. Uma hora a ficha cai. Mas quando cai, já era. Já não tem mais alma. A coragem para desfazer o Pacto exige alma. A solução não virá de quem a perdeu.