Em 25/03/2021, a apresentadora Xuxa Meneghel
deu uma entrevista à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em que defendeu
que presidiários fossem utilizados como cobaias para testes de empresas farmacêuticas.
Disse Xuxa que, assim eles “serviriam para alguma coisa”. Xuxa não foi repreendida
por nenhuma pessoa participando da entrevista. No dia seguinte, após polêmica
em redes sociais, Xuxa se desculpou pelo que disse. Dizer que presos deveriam
ser usados como cobaias no teste de remédios não foi suficiente para prejudicar
muito a carreira de Xuxa.
A desumanização do inimigo é uma das muitos
características do regime nazista. É mais fácil eliminar um ser humano quando
ele foi descaracterizado como tal. Pensamentos e comportamentos tipicamente nazistas
fazem parte do senso comum brasileiro. Em dezembro de 2021, o apresentador
Ratinho disse que uma deputada federal deveria ser metralhada por causa de um
projeto de lei que buscava tornar os termos da declaração do casamento mais
inclusivos. Sugeriu que a deputada fosse “eliminada”. Após polêmica em redes sociais,
o apresentador se recusou a falar novamente sobre o tema. Antes desta “polêmica”,
Ratinho se destacou por diversas outras barbaridades, como dizer que resolveria
os problemas dos presídios superlotados no Brasil com um botijão de gás.
Em fevereiro de 2014, Rachel Sheherazade
defendeu em TV aberto o linchamento de um garoto que havia sido amarrado por um
grupo de pessoas que o acusavam de roubar celulares. “Quem gosta de ladrão, que
o leve para casa”. Sheherazade nunca se desculpou pela fala. Não teve a
carreira prejudicada, pelo contrário, tornou-se porta-voz da extrema-direita
brasileira, cargo que perdeu quando começou a criticar o atual presidente. Mas
afirma segue sem se arrepender do que disse. Em fevereiro de 2022, o congolês
Moïse Kibagames foi linchado por um grupo que comanda milícias donas de
quiosques em praias no RJ. A barbárie não começou ontem.
O nazismo adora este termos. “Eliminar”. A
violência é a solução para tudo. Por isto a tara pelo militarismo, pela polícia.
Justiça é vingança. Não há categoria de pessoas mais desumanizada no Brasil do
que a dos presidiários. Com eles, pode-se tudo. É necessário legitimar a
barbárie e a eliminação dos oponentes, e esta é uma das funções da cadeia. O presidiário
não pode ser ouvido e não tem direitos. Por isto é tão importante o apelido de “ex-presidiário”
a Lula, aquele que pode derrotar os dois projetos de extrema-direita, que na
verdade são um só.
O jornalista Merval Pereira escreveu em
fevereiro de 2022 que Moro foi um juiz parcial, mas que isto não é um problema,
que imparcialidade não existe. Democracia é um processo e o nazismo seduz com algumas
quebras de burocracia. Depois cria outras, de tal forma a tornar toda a
sociedade cúmplice de seus crimes. Mas a primeira etapa é reclamar dos processos
que tornam a democracia possível. Direito à defesa e presunção de inocência são
dois deles.
Transformar seres humanos em cobaias é uma
característica nazista. Eliminar oponentes políticos é uma característica
nazista. Defender justiçamento de uma maioria contra um suspeito é uma
característica nazista. Legitimar uma condenação praticada por um juiz parcial
é uma característica nazista. Possivelmente Xuxa, Ratinho, Rachel e Merval
processariam alguém que os chamasse de nazistas. Assim como Kim Kataguiri está
fazendo. Kim, o líder de um movimento que estimulou alunos a filmarem
professores, que invadiu hospitais durante a pandemia e que perseguiu um padre
que distribui comida para miseráveis nas ruas de SP. Ser chamado de nazista
ofende. O mesmo Kim que defendeu a censura a uma exposição de arte defende a
criação de um Partido nazista no Brasil porque isto é “liberdade de expressão”.
No Brasil, o senso comum possui muitas características
nazistas. Quase todo mundo tem o tiozão que fala absurdos no almoço. Não é à
toa que o Brasil elegeu quem elegeu em 2018. Bolsonaro prometeu metralhar os
opositores, como Ratinho. Prometeu legalizar a tortura, como Rachel. Prometeu
endurecer penas para tornar a punição “mais fácil”, como quer Merval. Não tenho
dúvidas de que apoiaria uma proposta como a de Xuxa. Entre outros absurdos.
Comparou em comício na Hebraica os quilombolas a bois, dizendo que eles eram
pesados em arrobas. Disse que preferia um filho morto a um filho gay. Disse que
não estupraria uma deputada porque ela era feia. Elogiou a chacina em um
presídio. Foi aplaudido ao homenagear um torturador em rede nacional. São
muitos os absurdos.
O maior absurdo foi ele ter recebido mais de 50% dos votos. Como isto aconteceu? Foi muito tempo de desumanização. Bolsonaro possuía o senso comum. O processo de desbolsonarização do Brasil exigirá humanização. Exigirá muito cancelamento. Ele será nossa principal arma. Qualquer “bola fora” deve sofrer cancelamento. Qualquer. É necessário que uma parcela da população entenda que não pode falar o que quer usando o termo “polêmica” como disfarce. Não pode haver mais espaço para isto. Rachel, Xuxa, Merval e Ratinho não foram cancelados. O cancelamento teria sido o basta. Poderia ter evitado Bolsonaro.
O processo de humanização precisa passar
pela forma como lidamos com a nossa situação prisional. É o grande símbolo da
nossa barbárie. A semana já mostrou que o Brasil não aceita a ideia de que um
partido nazista exista, e isto é muito bom. Agora é necessário que o Brasil
trabalhe para não aceitar também as ideias nazistas.