quinta-feira, 30 de maio de 2024

As "saidinhas"

 


Eu realmente acredito que podemos analisar o grau de evolução civilizatória de um povo ela forma como ela trata os seus presidiários. Sociedades que são capazes de não desumanizar a figura do presidiário, que são capazes de dar-lhes decência e oportunidades de arrependimento e reinserção, que não os usam como válvula de escape para ódios cotidianos são mais civilizadas em todos os aspectos.

Nesta semana tivemos no Brasil a aprovação pelo Congresso do fim das “saidinhas”. O próprio uso deste termo já mostra como o assunto foi manipulado, tratado com deboche. Presos podiam sair em alguns feriados específicos para visitar parentes. Natal, Páscoa, não sei mais quais. Algo como 95% dos presidiários que saiam voltavam sem problema. Os 5% que não voltavam eram um dos argumentos necessários para que aqueles que lucram com a desumanização da figura do presidiário convencessem uma boa parcela da população a se revoltar contra o assunto. A mídia sempre fez questão de enfatizar os abusos cometidos por estes 5% e de criar títulos sensacionalistas como “Suzanne Richtofen sai da cadeia no dia das mães”. Bom, deu certo.

É muito importante voltarmos à década de 1990 para entendermos a construção da barbárie que vivemos hoje e que está sendo um pouco atenuada pela saída provisória do bolsonarismo do poder central. Muita coisa que nos levou ao caos começou lá. A campanha midiática de ódio à classe política é uma delas. “O político não faz nada”, “eu pago meus impostos”, etc., tudo isto fez a carreira de um tipo de reacionarismo estilo Marcelo Tas, algo mais intelectualizado, que a partir do CQC na década seguinte convenceria jovens idiotas e despolitizados que ser idiota e despolitizado era inteligente. Um outro tipo de reacionarismo midiático viria com programas como “Aqui Agora” ou os do apresentador Ratinho, que simplesmente tratavam todo tipo de barbárie como entretenimento. A violência e o medo eram utilizados para atrair pessoas à frente da televisão, para vender bugigangas e para transformar figuras medíocres em justiceiros da população. Celso Russomano está aí até hoje.

O medo devora almas. O ódio devora almas. O ser com medo não pensa. O cidadão que “não sabe se seu filho vai voltar para casa hoje à noite” não pensa. Não tem mais alma. Perdeu a capacidade de sentir empatia por uma pessoa que passa a vida dentro de uma cela. Perdeu a capacidade de enxergar que aquela pessoa é um ser humano, perdeu a capacidade de enxergar no sofrimento que ela sofre algo que pertence à humanidade. Para ele, o presidiário deve apenas sofrer. Sofrer cada vez mais. Como se o sofrimento do presidiário tornasse a sociedade melhor, evitasse crimes e o fizesse se sentir mais seguro. Sinto muito. O fim da “saidinha” não tornará a sociedade melhor, não evitará crimes e não fará o “cidadão de bem” se sentir mais seguro. O que acontecerá é que este “cidadão de bem” vai procurar outras saídas. Algo que faça o presidiário sofrer ainda mais. Que tal trabalho escravo? Que tal tortura? Que tal pena de morte? Duas grandes características humanas são raciocínio e empatia. O medo e o ódio do “cidadão de bem” já devoraram isto. No lugar há algo ainda a ser nomeado. Como reumanizar um ser desumanizado? Não sei, o reumanizado não geraria tanto dinheiro assim.