segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

2015 / 2016 - A crise do brasileiro médio



2015 termina com a maior recessão econômica desde 1992, deixando um cenário nada animador para 2016. Crise política, econômica e uma sociedade rachada por um discurso muito mais próximo do ódio do que da união. O objetivo aqui é tratar esta crise não como algo momentâneo, mas como resultado de um modelo econômico expandido a partir de 1994, que acreditou que a melhora do nível do país estava quase que unicamente ligada à melhora no nível de consumo, sendo bem sucedido neste princípio raso durante 20 anos, mas que vive agora seu esgotamento. Não há nenhum interesse em desvalorizar as conquistas da estabilidade econômica obtida no governo tucano e, principalmente, dos avanços sociais obtidos na era petista. Pretende-se apenas mostrar como não se planejou um avanço na cidadania e como o lado consumidor sempre foi posto em primeiro plano.
O brasileiro médio é um consumidor voraz desprovido de autocrítica e de senso de reflexão. Sua principal motivação é a compra de produtos e serviços que, muito além de atender suas necessidades, possam servir para que ele se sinta e demonstre estar numa posição mais alta no conceito de estratificação social. Isto é verificado em certas situações insanas do ponto de vista lógico, como a troca do automóvel a cada 2 anos ou a compra de apartamentos cada vez menores e mais distantes, com prestações que duram uma vida, mas que se justificam na cabeça do comprador como qualidade de vida por ter uma piscina e uma academia. A grande vítima da crise de 2015, até o momento, é este brasileiro médio. Demitido por seu chefe na maioria das vezes incompetente, gestor em uma empresa gerida de forma ineficaz, terá que tirar seu filho da escola particular ruim em que o matriculou apenas pela segurança de tê-lo fora da escola pública, ficará 3 ou 4 anos com o mesmo carro e não sabe o que fazer com a prestação eterna de seu imóvel de 45 m² com varanda gourmet. Não possui a menor capacidade de enxergar-se como vítima de um modelo pouco sustentável de crescimento que engoliu a sociedade e seu único interesse é manter-se como ator passivo deste ciclo vicioso em que se sente vencedor ao realizar a tarefa de pagar as contas no dia 30.
Este brasileiro médio não se importa com a corrupção. Pode até fingir que está “indignado com a bandalheira”, mas só se sente incomodado mesmo quando percebe que ela não o beneficia. Não se sente culpado ao roubar TV a cabo, baixar aplicativos que o ensinem a fugir da lei seca, fazer download de filmes gratuitamente, falsificar carteiras de estudante ou comprar a carteira de motorista, entre outros. Não repreende o amigo que faz isso. Não se incomoda também com a corrupção na política, desde que isto não o atrapalhe na missão “sagrada” de pagar suas contas. Só lembra que a corrupção existe quando a economia vai mal e este é seu foco.
O Brasil é um país que funciona à base do jeitinho. PT e PSDB dividem o poder desde 1994, garantindo sua governabilidade através de alianças com o PMDB, obtidas através da distribuição de cargos e da criação de ministérios inúteis. Não deixa de ser irônico e simbólico que o período de maior estabilidade democrática da nossa história tenha se formado dessa forma e esteja em crise em parte graças à vontade do PMDB de ter mais. O brasileiro médio não se incomoda com isso. Sua única prioridade é manter a estabilidade do seu fetichista modelo carro – prestações – viagens à praia em feriados. A corrupção aparece como argumento nos momentos em que este brasileiro médio começa a achar que o governo não o está mais ajudando a consumir mais e que está mais difícil pagar suas contas. Não questiona a ineficácia do setor privado, pois isto seria de certa forma questionar a si mesmo e é fundamental colocar a culpa no “outro”, neste cenário representado pelo governo incapaz de continuar gerindo este modelo. Na sociedade brasileira, a corrupção é aquele mal que existe e se permite que exista, sendo usado como argumento fácil para criticar o governo de que não gostamos. Tucanos não se importam com o escândalo das privatizações e se chocam com o mensalão. Petistas vivem exatamente o inverso. No fundo não se importam com nenhum, apenas precisam de um argumento para criticar o governo que não gostam. O brasileiro médio age historicamente assim. Não se importava com a repressão e as história de tortura do governo Médici, pois achava que gozava das benesses do milagre econômico. A democracia só entrou na pauta quando a economia entrou em recessão, com a crise do petróleo fazendo desmoronar o projeto desenvolvimentista dos militares.
A era de ouro de consumo do brasileiro médio começou com o Plano Real, em 1994. A estabilização da economia foi o primeiro passo para o boom de consumo vivido especialmente nos anos 2000. Milhões de pessoas ascenderam a uma nova “classe C” e este fato foi muito mais propagado na mídia do que a verdadeira grande conquista do governo Lula, que foi o combate à miséria. Os dois governos, porém, foram incapazes de dar o passo mais importante, que era a expansão do conceito de cidadania no âmbito da educação de base. Não houve reversão no processo de desvalorização das ciências humanas, aquelas capazes de permitir o surgimento de uma sociedade mais pensante, autocrítica e reflexiva. Ampliou-se significativamente o número de vagas em universidades, mas se focando sempre apenas na geração de mão-de-obra em cursos como Administração e Marketing, de tal forma a agradar este brasileiro médio que enxerga também a educação como um produto a ser consumido.
O Brasil deveria aproveitar esta crise para debater este modelo econômico focado na ideia de consumo, em que o desenvolvimento social não é sustentado pela expansão da cidadania, e para questionar o funcionamento de seu modelo político à base da corrupção, um espelho da nossa sociedade aliás. Mas não o faz, porque seu cidadão médio não pensa, apenas age instintivamente pelo desejo de consumir mais. Tudo que ele quer é continuar comprando e pagando suas contas. O governo pode roubar, desde que não o atrapalhe neste ciclo vicioso de infelicidade e insignificância em que ninguém pensa. Não há um desejo coletivo real por uma sociedade melhor, apenas por um local em que se possa ser vítima da especulação imobiliário com mais tranquilidade.
2016 será um ano de alta tensão. Temos uma massa acéfala pronto para ser manipulada e com ódio, interessada no show midiático que se tornou o processo de impeachment. Ao incentivar um modelo de crescimento que enxerga o bem-estar social como algo fruto quase que única e exclusivamente do nível de consumo, o modelo tucano-petista estimulou uma sociedade cada vez mais individualista e supérflua, disposta a permitir a corrupção que o beneficie e revoltar-se com aquela que o deixa de fora quando o governo não agrada. O debate político se converteu num show de horrores, tratado como uma disputa entre torcidas. Não há um plano partidário de enfrentamento deste ciclo, o debate se concentra quase que exclusivamente em como fazê-lo voltar a funcionar, quando não há sustentabilidade a longo prazo para tal.
A primeira tentativa interessante de saída deste modelo tosco vem da prefeitura de SP. A gestão Haddad, voltada exclusivamente para o coletivo, foi abandonada por parte do PT, que o enxerga como responsável pela impopularidade do partido na cidade, quando a verdade está na recíproca. Enfrenta forte rejeição da torcida que se pinta de verde e amarelo para sair às ruas, o que é uma prova da incapacidade desta massa de enxergar a causa real dos seus problemas. Nada seria mais simbólico do que vê-lo perder para Celso Russomano, o defensor dos consumidores. O brasileiro médio não quer combater a corrupção. Também não quer saúde e educação. Só quer comprar cada vez mais. E pagar suas contas. Se possível, pegando menos trânsito.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Origens do totalitarismo


          

O título deste post é igual ao título de um livro clássico escrito pela filósofa judia alemã Hannah Arendt. Nele, a autora busca explicar como as pessoas se subjugaram à ideologia nazista e aceitaram passivamente os horrores de uma dominação totalitária. O totalitarismo, diz ela, não é fruto do acaso e sim resultado de anos de preparação ideológica, naquilo que o jornalista Paul Gourevitch, em sua obra sobre o genocídio de Ruanda dos anos 1990, chamou de ódio silencioso. Um processo histórico de rejeição aparentemente inofensiva criou um ambiente que permitiu que judeus perdessem gradativamente seus direitos de cidadania, chegando-se a um ponto em que a população geral estivesse preparada para aceitar um líder totalitário que conduzisse um genocídio contra o inimigo odiado por séculos. Todo regime totalitário é dependente do ódio, nenhum sentimento é mais facilmente usado para manipulação de massas.
Chico Buarque foi abordado num restaurante esta semana no Rio de Janeiro por um grupo de pessoas capitaneado por Álvaro Garnero Filho, que como o nome diz é filho do empresário apresentador de programas de viagem, e o rapper Tulio Dek, desconhecido musicalmente, mas famosinho no mundo das pseudo-celebridades por ter namorado a atriz global Cléo Pires. Os 3 não se conheciam, muito provavelmente nunca tinham se encontrado. Mas Garnero e Dek estavam com raiva de Chico. O motivo, suas ideologias políticas e seu apoio ao governo Dilma. A turma de Garnero foi tirar satisfação com o cantor com expressões como “você apoia bandidos”, “seu merda” e, finalmente, com “vai fugir Chico” no momento em que este chamou um táxi. A turma se sentiu não apenas no direito de incomodar uma pessoa que desconheciam questionando suas opiniões políticas como achavam que ele era obrigado a participar deste debate, “fugindo” do confronto.
Pessoas como Garnero não debatem conceitos, como ficou provado neste curto diálogo. Repetem frases feitas e xingamentos, questionando o estilo de vida de Chico Buarque, como se o fato dele defender melhor distribuição de renda, por exemplo, fosse um voto de pobreza. Não há espaço para reflexão e ideias, apenas para um ódio que neste caso se disfarça de ativismo político.
Nada é mais perigoso historicamente do que uma massa movida pelo ódio. Mais do que isso, um grupo de pessoas movido por este ódio e que é bajulado por tal. É assustador o número de pessoas que concorda com a ação de Garnero e a incentiva. As pessoas que praticam este tipo de ação são tratadas como justiceiras pelos que pensam iguais, aqueles que foram lá ‘ “disseram umas verdades”. Não há uma ação concreta da opinião pública condenando este tipo de atitude. As pessoas postam “Dilma, sua vaca” em redes sociais sem medo de nenhum tipo de punição e recebendo curtidas estimulantes de iguais. São as mesmas pessoas que reclamam, aliás, que o Brasil precisa de mais educação, sem entender o óbvio paradoxo entre o pedido feito e o tipo de xingamento que realizam.
Os opositores do atual governo foram às ruas e escolheram o verde e o amarelo como cores da sua indignação. Ao realizar esta escolha, colocaram-se como defensores da pátria e puseram todos os que estão do outro lado como inimigos do país. Simbolicamente é como se estivessem preparados para a guerra. O primeiro passo já foi dado, aborda-se e se incomoda uma pessoa que nada te fez de concreto apenas porque ela pensa diferente. Há o xingamento e o argumento típico de gente que quer brigar. “Vai fugir”?
A meu ver, o cenário totalitário já está assustadoramente preparado no Brasil. Há uma parcela significativa de pessoas movidas pelo ódio e com pouca capacidade de reflexão, movidas por um sentimento de pseudo-injustiça inflado por um empresariado bajulador, que critica impostos e aplaude subsídios. Pessoas com pouco conhecimento, mas que se julgam inteligentes e portadoras da noção do que são o bem contra o mal, não enxergando mais o rival como opositor, e sim como inimigo. Parte do projeto para afastar o atual governo democraticamente eleito do poder passa pela manipulação deste tipo de pessoa, que discerne bem e mal não por conceitos morais, mas pela vontade pessoal. O suposto moralismo disfarçado pelo discurso contra a corrupção logo é derrubado por atitudes como a praticadas contra Chico. Alvaro Garnero Filho acha que Buarque apoia um governo bandido. Quer fazer “justiça”. Qual o próximo passo? Hannah Arendt já nos contou.