Qual a responsabilidade pessoal
de cada um nos atos de um regime totalitário? Por que algumas pessoas,
aparentemente boas e normais, aceitam passivamente colaborar com as atrocidades
de um regime autoritário enquanto outras enfrentam o totalitarismo, mesmo que
isto tenha como custo a própria vida? São estas perguntas que Hannah Arendt
tenta responder no ensaio O que chamamos
de responsabilidade pessoal em uma ditadura publicado alguns anos depois do
genial e polêmico Eichmann em Jerusalém.
Diz Arendt que a principal característica que separa os colaboracionistas dos
opositores é não apenas a capacidade de pensar nos atos que estão cometendo,
mas a capacidade de julgar a si próprio. A grande maioria, conclui-se do
ensaio, é incapaz de discernir certo e errado através de valores morais e sim
através da vontade. O certo para a maioria é o que “eu quero”, e esta vontade
se sobrepõe a qualquer tipo de ética vindo do exterior.
Não há criação humana mais humana
do que o Deus do Velho Testamento. O homem pegou todos os seus defeitos,
colocou-os num ser imaginário e o chamou de Ser superior. O Deus do Velho
Testamento é mesquinho, rancoroso, vingativo, sádico e sanguinário. Ele é
invisível e julgador, está conosco o tempo todo e nos mandará passar a
eternidade num lugar quente e cheirando a enxofre caso descumpramos uma das dez
regras que ele mandou gravar numa pedra. Por puro sadismo, pediu a um pai que
sacrificasse um filho sem motivo, só para que aquele provasse sua submissão.
Fechou o mar no momento em que os egípcios passavam. Lançou uma praga contra
uma cidade de pecadores. Este é o Ser que o homem criou e chamou de Criador.
Este Criador, dizem os homens, fez-nos à sua imagem e semelhança. Assim, o Ser
mesquinho, rancoroso, vingativo, sádico e sanguinário nos fez a sua imagem e
semelhança. O oposto é mais verdadeiro. O ser que se diz criado foi quem criou
um Criador à sua imagem e semelhança e se equiparou a Ele. Se Deus é o Ser
Superior e tudo pode, nós, criados por Ele à sua imagem e semelhança, somos os
seres superiores e tudo podemos. A visão do amor deste Deus é extremamente
ligada à vontade e a submissão. Deus ama aquele que é submisso e age de acordo
com Suas vontades. Expulsou Adão do Paraíso por um erro e toda a humanidade
paga por isto.
“Deus está sempre comigo” ou “Deus
me ama” dizem os mais religiosos. Se o Ser superior está comigo, eu tudo posso.
Para este Deus não há valor moral, há apenas a vontade de ser atendido. Se este
Deus pode tudo e Ele está comigo, eu posso tudo. A vontade de Deus passa a ser
a minha vontade e perde-se assim a capacidade de julgamento moral sobre as
próprias atitudes. Por que um governador evangélico desce de um helicóptero
comemorando uma ação policial que resultou numa morte? Porque ele quer. Não há,
na visão de mundo desta pessoa, paradoxo nenhum na situação, uma vez que a
vontade dele é a vontade de Deus. Por que tantos pastores evangélicos apoiam
alguém como Bolsonaro, que abertamente defende a tortura, o preconceito e para
quem a principal função do estado é, através da violência, afastar ou eliminar
aqueles que ousam discordar de suas “ideias”? Porque não há diferença alguma
entre o Deus do Velho Testamento e este novo Deus-Estado, que mata e tortura
aqueles que ousarem enfrentar o Senhor.
As bases do cristianismo são
submissão e punição. Deus, aquele Ser que está conosco o tempo todo e cuja
vontade se mistura a do fiel, manda. Quem obedece vai para o céu. Quem
desobedece, para o inferno. Não há espaço para algo diferente da submissão.
Deus não precisa ser provado para seus fiéis. Ele apenas existe. Suas vontades,
portanto, não precisam de demonstração, elas apenas precisam ser atendidas. A
ciência, quando prova que Deus está errado, é a inimiga maior e deve ser
combatida.
Bolsonaro acha. Ele acha que os
médicos cubanos eram guerrilheiros comunistas. Também acha que ONGs colocaram
fogo na Amazônia. Perguntado sobre provas, respondeu “Precisa provar isso daí?”.
Para quem acredita no Deus do Velho Testamento, nada precisa ser provado. Se Deus está ao seu lado, por que Bolsonaro precisa provar algo? O achismo dele é o achismo divino, e isto já basta. Não à toa, o grupo de procuradores da Lava Jato, braço judicial do bolsonarismo, é quase todo composto por evangélicos. "Não há provas, mas há convicção". Basta
a fé e a crença de que Deus está ao seu lado, enxergando-se o crente junto ao
Ser superior. Os órgãos que ousam negar os achismos e as vontades desta turma devem ser extintos. INPE, IBGE, entre outros. Queimar a Amazônia nada mais é do que uma praga do Egito ou o Mar
Vermelho fechando.
É pouco dito, mas o Brasil passa
por uma versão tosca de Reforma Protestante. É muito provável que nos próximos
anos os evangélicos se tornem maioria no país. A falta de perspectivas numa
vida terrena marcada pela competitividade, pelo consumismo, pela ansiedade e
pela infelicidade empurra as pessoas para a crença na salvação através de um
mundo imaginário que virá depois do fim do sofrimento terrestre. Eles chegaram
ao poder e não se importam com os miseráveis sendo assassinados pela polícia
carioca ou pelas ameaças que Bolsonaro faz à vida e à liberdade dos
oposicionistas. É a vontade do Deus em que eles acreditam. A salvação virá
depois, no mundo imaginário. Para quem não acredita nesta versão sanguinária de
Deus e conserva alguma moralidade, resta lidar com este inferno terrestre. O
fogo na Amazônia pode ser apenas o começo. Podemos não acreditar em Deus. Mas vendo tudo que está acontecendo, é difícil não acreditar no diabo.
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