segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O leão, as hienas e o gado




Nasci em 1984, mas minha primeira memória na vida é a final do campeonato paulista de 1988, em que o Corinthians derrotou o Guarani por 1x0 na prorrogação com gol do Viola. Nestes 35 anos de vida e 31 de memória, eu sinceramente não me lembro de nada que tenha sido tão ridículo quanto o vídeo postado hoje pelo presidente da República Federativa do Brasil, Jair Bolsonaro. Constrangimento é uma das palavras-chaves deste governo, junto com ignorância, arbitrariedade, violência e autoritarismo. Bolsonaro e todas as pessoas ao seu redor são toscas, completamente incapazes de produzir algo que tenha alguma validade, mas mesmo assim este vídeo surpreendeu. Somos, afinal, governados por um aluno de quinta série que vai repetir de ano.
Além da tosquice, são muitas as características de Bolsonaro que podemos ver no vídeo. A primeira, é que ele se sente o leão na selva, o rei. Ele se sente o ser mais forte no seu mundo megalomaníaco. O outro é a paranoia. Bolsonaro é paranoico e conseguiu criar um verdadeiro reino da paranoia, em que todos são movidos pela mania de perseguição, pelo medo e por um estado alterado de “realidade” em que estamos numa verdadeira guerra, em que apenas Bolsonaro pode salvar. No vídeo, todos estão atacando o leão Bolsonaro. Não apenas os inimigos de sempre, aqueles que ele ameaçou prender, expulsar e metralhar durante a campanha, como PT e PSOL, mas basicamente qualquer entidade, nacional ou internacional, que ouse contestar a supremacia do leão. Bolsonaro se sente atacado pela ONU, pelo Greenpeace, pelo MBL, pela CUT, pela Veja, basicamente por todos. Nada mais paranoico e megalomaníaco.
No vídeo, o leão acaba sendo salvo por um outro leão, uma entidade chamada “Conservadores Patrióticos”, que teria muito mais sentido no vídeo se fosse representada por um boi, e não por um leão. O “Conservador Patriótico” nada mais é do que o que nacionalista bocó bolsonarista, aquele ser que basicamente detesta todas as características nacionais, detesta nossa música, nossa cultura, nossa literatura, mas que se acha nacionalista porque hasteia a bandeira, canta o hino nacional que não é capaz de interpretar e veste a camisa da CBF. Na selva bolsonarista, o leão Bolsonaro aposta neste gado para chegar ao triunfo.
O leão Bolsonaro é incapaz de lidar com conflitos ou com o debate. Já deixou bem claro durante toda sua vida como deputado insignificante que não acredita na democracia como regime ideal de governo. Todas as suas referências políticas brasileiras são de ditadores e torturadores, gente que colocava ratos nas vaginas de mulheres torturadas em sessões monstruosas. Elogiou Pinochet no Chile, Strossner no Paraguai, entre outros. Sua presidência é baseada na mentira e nas teorias da conspiração. O Greenpeace, ele diz, espalhou óleo pelo litoral do Nordeste. Baseado no que ele diz isto? Em nada. Ele apenas quer assim. Não foi tendo algum tipo de responsabilidade que Bolsonaro se transformou em leão da selva. Foi mentindo e agredindo, não teria porquê mudar após atingir o ápice.
Bolsonaro conseguiu transformar o Brasil numa grande selva da paranoia. Criou uma verdadeira realidade paralela. Basta entrar na rede social de qualquer eleitor fanático do leão para notar o quanto nossa realidade é assustadora. Uma parcela gigantesca da população está completamente afastada de qualquer tipo de realidade, sendo informada quase que exclusivamente por fontes falsas ou inexistentes. São pessoas que postam diariamente sobre a conta secreta de um trilhão de dólares de Lula na Suíça, sobre a cirurgia de sexo que o PT queria fazer em crianças, sobre a mamadeira de piroca, sobre a economia do Brasil que não para de crescer graças a Bolsonaro. Pessoas que perderam completamente a capacidade de reflexão e pensamento, totalmente hipnotizadas pela situação. Lembro-me de uma vez em que o leão, dois dias após a também muito constrangedora frase em que dizia que a solução para o meio ambiente era fazer cocô dia sim, dia não, discursava para o seu gado e falava que ia acabar com o cocô no Brasil, comunistas e corruptos. Antes de explicar a “piada”, os seus seguidores já estavam rindo e aplaudindo enlouquecidamente. Sim, as pessoas riram e aplaudiram apenas a seguinte frase: “vamos acabar com o cocô no Brasil”. Qualquer coisa que o leão diga, os gados aplaudem. Como lidar com uma situação destas sem esperar o caos?
Bolsonaro usa muito a expressão acabar. Ameaça tirar o Brasil de qualquer associação que possa representar um controle externo ao seu domínio. Durante a eleição, ameaçou tirar o Brasil da ONU e do Mercosul, por exemplo. Uma das hienas que atacavam o leão e era depois posta para correr pelo leão-gado é o STF. Esta instituição é tudo que Bolsonaro e seu gado odeiam. A função do STF é defender uma constituição-cidadã. Por mais que o Supremo tenha falhado diversas vezes nesta função nos últimos anos, ele é o maior obstáculo para o tipo de regime que Bolsonaro tanto exalta e quer implantar. Seu gado é diversas vezes incitado por ele e pelo ministro da Justiça a pedir o fechamento do Supremo. O filho do leão faz piada sobre isto, aliás. “Basta um cabo para fechar a instituição”. Um cabo e um rebanho de gado.
Li um texto há alguns dias em que uma senhora alemã relatava o bombardeio de Danzig durante a Segunda Guerra. Com um dos filhos no colo, ela dizia “nós merecemos isto”. Bolsonaro é fruto de diversos erros históricos, que culminaram nesta coisa assustadora. Ele conseguiu chegar ao poder do leão graças ao gado e a uma parte das hienas, que nas eleições agiram como gado. Boa parte da imprensa que há um ano tratou a escolha entre Bolsonaro e outra pessoa como "difícil" hoje é tratada como hiena. A única forma de derrotar o leão é com a união das hienas. Estas devem deixar toda diferença de lado neste momento. A selva brasileira segue em geral sem acordar para o que está acontecendo. Bolsonaro e seu governo vão dando diversos sinais de que tentam ao pouco romper com o que resta de democracia no país e ameaçando as relações com vizinhos. Talvez só acordem chegando em Danzig. 

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A privatização de presídios, a escravidão e a barbárie




O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, ficando apenas atrás de EUA e China. São 812 mil pessoas presas, sendo que aproximadamente 40% destas pessoas não têm condenação. O dobro do números de vagas em penitenciárias. É uma população carcerária que cresceu nos últimos anos a uma taxa de 8,2% ao ano, o que significa que teremos em seis anos uma população carcerária maior do que Brasília. Aparentemente prender mais não acalmou a sanha punitivista da sociedade. A maioria das pessoas ainda acha que prendemos pouco e que a solução mágica para todos os problemas do país está em prender mais. Bolsonaro e Moro seduziram a classe média medrosa com este discurso, aliás. A mídia que abastece esta classe média diariamente com sua dose de medo e publicidade revela seu choque cada vez que “denuncia” que pessoas podem ser soltas com a revogação da inconstitucional interpretação que permite a prisão em segunda instância. É neste cenário que se propaga no país a ideia de privatização das penitenciárias.
Antes de entrar no assunto, acho importante citar que uma coisa que me incomoda muita no debate sobre privatizações é a forma como o verbo “privatizar” é tratado como se não precisasse de um complemento. “Você é a favor ou contra privatizar?” é a pergunta. A verdadeira reposta não deveria ser sim ou não, mas sim “O quê?”. Sim, porque privatizar aeroporto é muito diferente de privatizar o serviço de água ou de energia, requer análises completamente distintas. Isto dito, o meu ponto de vista é que privatizar penitenciárias é um absurdo, fruto do desenvolvimento da barbárie que começamos a viver. E o principal motivo é que esta privatização gera um novo incentivo econômico para prender pessoas. Todos os sistemas propostos até o momento, como o que João Doria quer implantar em SP, por exemplo, remunera as empresas que administram as cadeias a partir do número de presidiários. Desta forma, quanto mais preso, mais grana. Geraremos, caso este processo siga em frente, uma verdadeira indústria de prisões num país com uma classe média cada vez mais sedenta por sangue e punição e com uma visão torpe de justiça, entendida por muitas como algo só alcançado através da prisão.
O Brasil prende muito e mal. Jovens pobres têm suas vidas destruídas por pequenos delitos, muitas vezes ligados às drogas. Um em cada três presos no Brasil está na cadeia por ligação com o tráfico. Esta luta aparentemente sem vencedores tem sim um lado vencedor, aquele que aposta no uso destas pessoas para ganhar dinheiro. Pessoas que entram nas cadeias jovens, às vezes por um furto, e saem de lá transtornados. Nossas cadeias são verdadeiras máquinas de moer gente. Isto não é diferente nas cadeias privadas. O maior massacre desta década em cadeias aconteceu no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, no Amazonas, de gestão privada, em que o Estado pagava à gestora privada Umanizzare o valor de quase mil presos numa cadeia em que cabiam 500. Há diversas acusações na região de acordos financeiros entre esta gestora e membros do poder judiciário para garantir o “abastecimento” do presídio e barrar as denúncias contra abusos de direitos humanos cometidos dentro dos presídios.
A campanha de João Doria em SP tinha como promessa obrigar presos a trabalhar. Doria olhava para a câmera com cara de mal, tentava demonstrar alguma expressão no rosto e dizia “comigo bandido vai ter que trabalhar”. Obrigar a trabalhar deixava implícito que Doria pretendia parar de alimentar presos que não trabalhassem. O nome disso é escravidão. Sim, obrigar uma pessoa sob custódia do Estado a trabalhar de tal forma que ela perca a vida se não o fizer é escravidão. É a definição do termo. É uma situação muito diferente de dar algum benefício a este mesmo cidadão caso ele opte por trabalhar. Que uma pessoa como Doria tenha conseguido ser eleita com uma proposta absurda destas mostra o quanto a população está disposta à barbárie.
A escravidão proposta por Doria em sua campanha ainda é inconstitucional. Ele vem trabalhando com Moro e com outros para mudar esta lei. “Preso tem que trabalhar, não podem ficar na vida boa enquanto os sustentamos”, diz o governador, o ministro, Datena, entre outros. E assim vamos criando os pilares de um sistema industrial de presos usados como mão-de-obra escrava para o setor privado. Nesta semana, o governador de SP apresentou seu plano de concessão da administração dos presídios paulistanos ao setor privado. O governo do Estado, que hoje gasta R$ 1.500,00 por preso por mês, pagaria R$ 4.500,00 por preso ao setor privado. Fora isto, pelo edital, o presídio privado poderia ter ocupação máxima de 116% da capacidade do local. Preso, afinal, não é gente, não há porquê respeitar a lotação. Pelo projeto de Doria, a concessionária ganharia não apenas com o número de presos, mas também poderia explorar o trabalho do preso. Doria e o mercado apostam na legalização da escravidão proposta em campanha. Contam com Moro para isto.
A solução humana para o problema presidiário no Brasil é prender menos e melhor. Criar penas alternativas para crimes leves. Libertar todos aqueles que hoje estejam presos e aceitarem pagar pelo crime de outra forma. Tirar o máximo de pessoas destes verdadeiros calabouços medievais e tentar salvá-los aqui fora. Mas não é isto que a indústria quer. Ela quer a ampliação de um negócio. O primeiro passo já foi feito, a desumanização do presidiário. Foi fundamental descaracterizar na opinião pública a ideia de que a função da cadeia é não apenas a punição, mas também a ressocialização do detento. A maioria não acredita mais nisso. Os direitos humanos foram por anos ridicularizados e vivemos uma situação em que a maior parte da população já aceita a ideia de que a privação da liberdade não é mais uma punição suficiente para aquele que cometeu um crime. Quer vê-lo massacrado e destruído. É necessário escraviza-lo. Muitos lucrarão com isto. O mercado faz apostas, e no caso brasileiro está jogando pesado a favor da barbárie. Mais presos, mais dinheiro. E o Brasil vai dando mais um passo para cumprir sua grande vocação colonial. A elite branca do judiciário ganhando para mandar jovens negros para o abatedouro por um pequeno furto, onde este jovem se tornará escravo de um grande capitalista para “pagar pelo crime”. O Brasil foi criado como uma grande máquina de moer gente para garantir o lucro de uma pequena parcela de proprietários. A prisão privada nada mais é do que o engenho moderno. Sociedades civilizadas se esforçam para incluir e para tratar com decência a todos, mesmo aqueles que tenham cometido erros. O Brasil faz o oposto. Um passo a mais na barbárie.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

O Brasil, a submissão e o capacho-mor da República



A palavra para entender a sociedade brasileira é submissão. Acostumamo-nos com uma vida em que baseamos nossos atos em nos submeter e a submeter os outros, de acordo com nosso papel na hierarquia social. Somos doutrinados a aceitar passivamente as humilhações dos que vêm de cima e a humilhar muitas vezes impiedosamente os que estão abaixo. Eu trabalhava com uma colega que era diariamente humilhada pelo gerente da área. Engolia e às escondidas reclamava e chorava. Enxugava as lágrimas e em seguida telefonava para a empregada, dando nela uma senhora escovada porque ela não havia dobrado as roupas corretamente. É assim que tocamos a nossa vida. O gerente, superior a todos os analistas do qual a minha colega fazia parte, era também humilhado publicamente pelo diretor da área, que por sua vez, após humilhar o gerente, era humilhado pelo sócio da companhia, e assim vamos. A submissão em nossa sociedade é vista como qualidade. É a maior exigência que o Deus que criamos nos exige, aliás. O Deus cristão nos pede acima de tudo submissão. Criou dez mandamentos que devemos obedecer e até pediu no seu livro sagrado a um pai sacrificasse o próprio filho, apenas para testar sua submissão.
A classe média e a elite brasileira são doutrinadas à ideia de submissão. Não à toa, Sérgio Moro é amado por estas classes. Ele pisa e humilha os mais fracos. Nas bisonhas sessões da Lava Jato, o então juiz assumia uma figura quase divina. Focava a câmera no acusado e só tínhamos acesso a sua voz, que vinha quase do além, um som divino típico de desenhos animados. Vídeos de Moro “lacrando” se popularizaram entre a classe média. Moro humilhando os advogados dos réus, “colocando os mesmos no seu devido lugar”. Estava claro já lá que Moro não cumpria o seu papel constitucional, estava lá apenas saciando a sede revanchista de uma parcela reacionária da população. Alçado a ministro pelo candidato que ajudou a eleger ao tirar seu maior rival da disputa, Moro pôde mostrar a seus súditos a sua outra face. O juiz que humilhava passou agora a ser humilhado pelo chefe do projeto de poder que representa, cumprindo quase que religiosamente o seu papel na jornada da submissão. Quanto mais é humilhado pelo chefe, mais Moro o defende. A classe média, acostumada a ser capacha, segue idolatrando o ex-juiz. A elite, acostumada a valorizar o capacho, faz o mesmo. É muito importante para ela que a classe média enxergue na submissão o caminho para o sucesso. Que ela seja a chave para a caracterização do “bom funcionário” que sobre na empresa.
Todo governo autoritário tem como regra afastar do poder aqueles que possuem conhecimento técnico e capacidade de questionamento, colocando no poder puxa-sacos inexpressivos, bajuladores profissionais. Não é à toa que temos no governo de Bolsonaro, o deputado insignificante que fez da ignorância seu maior trunfo, este ministério ridículo. Sérgio Moro, o herói da classe média bajuladora, tornou-se ministro da Justiça e da Segurança Pública sem saber nada sobre Segurança Pública, sem ter um único texto publicado em algum lugar sobre o assunto. Ricardo Sales assumiu o Ministério do Meio Ambiente sem ter noção alguma do assunto, não tendo nunca visitado a Amazônia. Abraham Weintraub, ministro da Educação, tem uma vida acadêmica marcada pela inexpressividade e por notas medíocres, nunca tendo trabalhado na área. Paulo Guedes, o ministro da Fazenda, guru de boa parte do mercado que comprou o capitão imbecil, assumiu sem saber que o orçamento de um ano é votado no ano anterior. O governo Bolsonaro é uma espécie de revanche da mediocridade, dos insignificantes e preguiçosos intelectualmente que passaram anos escondidos, desvalorizados e acumulando rancores.
Guedes é uma figura completamente nula na área econômica. Foi alçado ao papel de sabichão-mor da área porque dizia exatamente aquilo que a elite queria ouvir. Tem contribuição zero à academia no assunto. A elite não valoriza a reflexão e a criação acadêmica. Valoriza a bajulação. Guedes é o bajulador, transformado em gênio. Todo o processo educacional pensado pela elite foi pensado para valorizar a pessoa do bajulador. As ciências humanas criam contestadores, e nada é pior para o sistema da submissão do que isto. Devem ser desvalorizadas, do que o país precisa, eles alegam, é de engenheiros, administradores, empreendedores etc. Como uma pessoa como Sérgio Moro que, entre outras coisas, fala conje, não sabe a diferença entre porque e por que e escreve “há mil anos atrás” passou num concurso para juiz? Fácil explicar, as provas só pedem decorebas. Moro é incapaz de escrever um texto simples com início, meio e fim, mas provavelmente decorou o artigo sei lá qual do não sei o que. As provas são feitas para pessoas que sabem os “macetes”, e não para quem consegue refletir e questionar algo. Aprendeu macetes e bajulou. E seguirá fazendo isto. É só o que sabe fazer. É o papel que cumpre.
A maior dificuldade que a classe média e a elite têm em relação a Lula está longe de serem as relações escusas que seu governo teve com figuras corruptas. Elas não estão nem aí para as patéticas tentativas do atual ministro Moro de defender o presidente e sua família dos inúmeros casos de corrupção em que estão envolvidos. O maior problema é que a figura de Lula, em certa medida, quebrou momentaneamente a corrente da submissão. Lula chegou ao poder sem ter “diploma”, ou seja, sem decorar os macetes para passar na prova. Uma coisa que acho interessante em Lula e que é pouco dita é que ele tem uma capacidade única de não mudar o discurso e o tom de voz de acordo com o interlocutor. Eu, como crítico que sou deste modelo podre em que vivemos, não consigo fazer isto. É impressionante como minha postura automática é mudar meu tom de voz quando estou falando com alguém de acordo com a hierarquia social. Se vou falar com uma pessoa mais pobre, por exemplo, falo mais devagar. Nós “adoramos” fazer isto, aliás. Pegue qualquer programa de TV e note isto. Olhe como Luciano Huck, por exemplo, muda o jeito de falar quando está “ajudando” alguém pobre em seu programa. Lula não faz isto, fala de igual para igual. E mais do que isto, Lula não muda em nada as palavras que usa nos mais diferentes locais. O teor do discurso muda, é óbvio, mas o vocabulário é o mesmo. Poucas coisas tem mais papel na nossa sociedade opressora do que a linguagem e nada era mais arrebatador e revolucionário do que ter uma pessoa falando a mesma linguagem com todos. Não apenas internamente, aliás. Lembro-me de um vídeo de Chico Buarque em que ele dizia que a maior qualidade de Lula é que ele não abaixava a cabeça para o EUA e não falava grosso com a Bolívia. Lula era o mesmo com todos. Não à toa os erros gramaticais de Lula eram motivos de chacota e os de Moro passam incólumes. Moro tenta falar bonito e não consegue. A elite se identifica com isto. Criou-se para enfrentar Lula um herói e um mito que representam bem seus valores. De um lado, um puxa-saco medíocre, que humilha os que estão abaixo e se mostra totalmente submisso aos que estão acima. Do outro, um capitão tosco que fala em patriotismo enquanto presta continência ao embaixador americano. O herói diplomado se uniu ao capitão  mítico ignorante, derrubando assim o torneiro mecânico que ousou, mesmo que às vezes timidamente, enfrentar este sistema. Lula é o “vagabundo”, que subiu na vida estimulando “greves” e questionando. É preciso que a sociedade enxergue como vitorioso não ele, mas o seu oposto, o cordeirinho. A elite ganhou muito dinheiro com a bonança da era Lula. Mas isto não importa. As relações de dominação e sua manutenção plena eram mais importantes do que qualquer outra coisa.
A melhor forma de criar bajuladores é o estímulo à disciplina. A educação libertadora de Paulo Freire deve ser substituída pela educação dos militares. A PM que prende é a PM que educa e as escolas devem afastar os contestadores desde cedo. É muito importante que desde cedo a criança já seja doutrinada a acreditar nos valores da submissão e a enxergar nela o caminho para o sucesso. A delação é tratada como qualidade e, portanto, estimulada. Regimes autoritários funcionam sempre da mesma maneira. É quase uma ciência exata. Há um verdadeiro passo-a-passo, cumprido à risca no Brasil desde 2016. Numa sociedade que estimula a imbecilidade, Bolsonaro é imbecil-mor. Uma sociedade baseada na bajulação, que não à toa tem como herói maior uma figura como Sérgio Moro, o bajulador-mor da república.