sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A privatização de presídios, a escravidão e a barbárie




O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, ficando apenas atrás de EUA e China. São 812 mil pessoas presas, sendo que aproximadamente 40% destas pessoas não têm condenação. O dobro do números de vagas em penitenciárias. É uma população carcerária que cresceu nos últimos anos a uma taxa de 8,2% ao ano, o que significa que teremos em seis anos uma população carcerária maior do que Brasília. Aparentemente prender mais não acalmou a sanha punitivista da sociedade. A maioria das pessoas ainda acha que prendemos pouco e que a solução mágica para todos os problemas do país está em prender mais. Bolsonaro e Moro seduziram a classe média medrosa com este discurso, aliás. A mídia que abastece esta classe média diariamente com sua dose de medo e publicidade revela seu choque cada vez que “denuncia” que pessoas podem ser soltas com a revogação da inconstitucional interpretação que permite a prisão em segunda instância. É neste cenário que se propaga no país a ideia de privatização das penitenciárias.
Antes de entrar no assunto, acho importante citar que uma coisa que me incomoda muita no debate sobre privatizações é a forma como o verbo “privatizar” é tratado como se não precisasse de um complemento. “Você é a favor ou contra privatizar?” é a pergunta. A verdadeira reposta não deveria ser sim ou não, mas sim “O quê?”. Sim, porque privatizar aeroporto é muito diferente de privatizar o serviço de água ou de energia, requer análises completamente distintas. Isto dito, o meu ponto de vista é que privatizar penitenciárias é um absurdo, fruto do desenvolvimento da barbárie que começamos a viver. E o principal motivo é que esta privatização gera um novo incentivo econômico para prender pessoas. Todos os sistemas propostos até o momento, como o que João Doria quer implantar em SP, por exemplo, remunera as empresas que administram as cadeias a partir do número de presidiários. Desta forma, quanto mais preso, mais grana. Geraremos, caso este processo siga em frente, uma verdadeira indústria de prisões num país com uma classe média cada vez mais sedenta por sangue e punição e com uma visão torpe de justiça, entendida por muitas como algo só alcançado através da prisão.
O Brasil prende muito e mal. Jovens pobres têm suas vidas destruídas por pequenos delitos, muitas vezes ligados às drogas. Um em cada três presos no Brasil está na cadeia por ligação com o tráfico. Esta luta aparentemente sem vencedores tem sim um lado vencedor, aquele que aposta no uso destas pessoas para ganhar dinheiro. Pessoas que entram nas cadeias jovens, às vezes por um furto, e saem de lá transtornados. Nossas cadeias são verdadeiras máquinas de moer gente. Isto não é diferente nas cadeias privadas. O maior massacre desta década em cadeias aconteceu no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, no Amazonas, de gestão privada, em que o Estado pagava à gestora privada Umanizzare o valor de quase mil presos numa cadeia em que cabiam 500. Há diversas acusações na região de acordos financeiros entre esta gestora e membros do poder judiciário para garantir o “abastecimento” do presídio e barrar as denúncias contra abusos de direitos humanos cometidos dentro dos presídios.
A campanha de João Doria em SP tinha como promessa obrigar presos a trabalhar. Doria olhava para a câmera com cara de mal, tentava demonstrar alguma expressão no rosto e dizia “comigo bandido vai ter que trabalhar”. Obrigar a trabalhar deixava implícito que Doria pretendia parar de alimentar presos que não trabalhassem. O nome disso é escravidão. Sim, obrigar uma pessoa sob custódia do Estado a trabalhar de tal forma que ela perca a vida se não o fizer é escravidão. É a definição do termo. É uma situação muito diferente de dar algum benefício a este mesmo cidadão caso ele opte por trabalhar. Que uma pessoa como Doria tenha conseguido ser eleita com uma proposta absurda destas mostra o quanto a população está disposta à barbárie.
A escravidão proposta por Doria em sua campanha ainda é inconstitucional. Ele vem trabalhando com Moro e com outros para mudar esta lei. “Preso tem que trabalhar, não podem ficar na vida boa enquanto os sustentamos”, diz o governador, o ministro, Datena, entre outros. E assim vamos criando os pilares de um sistema industrial de presos usados como mão-de-obra escrava para o setor privado. Nesta semana, o governador de SP apresentou seu plano de concessão da administração dos presídios paulistanos ao setor privado. O governo do Estado, que hoje gasta R$ 1.500,00 por preso por mês, pagaria R$ 4.500,00 por preso ao setor privado. Fora isto, pelo edital, o presídio privado poderia ter ocupação máxima de 116% da capacidade do local. Preso, afinal, não é gente, não há porquê respeitar a lotação. Pelo projeto de Doria, a concessionária ganharia não apenas com o número de presos, mas também poderia explorar o trabalho do preso. Doria e o mercado apostam na legalização da escravidão proposta em campanha. Contam com Moro para isto.
A solução humana para o problema presidiário no Brasil é prender menos e melhor. Criar penas alternativas para crimes leves. Libertar todos aqueles que hoje estejam presos e aceitarem pagar pelo crime de outra forma. Tirar o máximo de pessoas destes verdadeiros calabouços medievais e tentar salvá-los aqui fora. Mas não é isto que a indústria quer. Ela quer a ampliação de um negócio. O primeiro passo já foi feito, a desumanização do presidiário. Foi fundamental descaracterizar na opinião pública a ideia de que a função da cadeia é não apenas a punição, mas também a ressocialização do detento. A maioria não acredita mais nisso. Os direitos humanos foram por anos ridicularizados e vivemos uma situação em que a maior parte da população já aceita a ideia de que a privação da liberdade não é mais uma punição suficiente para aquele que cometeu um crime. Quer vê-lo massacrado e destruído. É necessário escraviza-lo. Muitos lucrarão com isto. O mercado faz apostas, e no caso brasileiro está jogando pesado a favor da barbárie. Mais presos, mais dinheiro. E o Brasil vai dando mais um passo para cumprir sua grande vocação colonial. A elite branca do judiciário ganhando para mandar jovens negros para o abatedouro por um pequeno furto, onde este jovem se tornará escravo de um grande capitalista para “pagar pelo crime”. O Brasil foi criado como uma grande máquina de moer gente para garantir o lucro de uma pequena parcela de proprietários. A prisão privada nada mais é do que o engenho moderno. Sociedades civilizadas se esforçam para incluir e para tratar com decência a todos, mesmo aqueles que tenham cometido erros. O Brasil faz o oposto. Um passo a mais na barbárie.

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