A palavra para entender a
sociedade brasileira é submissão. Acostumamo-nos com uma vida em que baseamos
nossos atos em nos submeter e a submeter os outros, de acordo com nosso papel
na hierarquia social. Somos doutrinados a aceitar passivamente as humilhações
dos que vêm de cima e a humilhar muitas vezes impiedosamente os que estão
abaixo. Eu trabalhava com uma colega que era diariamente humilhada pelo gerente
da área. Engolia e às escondidas reclamava e chorava. Enxugava as lágrimas e em
seguida telefonava para a empregada, dando nela uma senhora escovada porque ela
não havia dobrado as roupas corretamente. É assim que tocamos a nossa vida. O
gerente, superior a todos os analistas do qual a minha colega fazia parte, era
também humilhado publicamente pelo diretor da área, que por sua vez, após
humilhar o gerente, era humilhado pelo sócio da companhia, e assim vamos. A
submissão em nossa sociedade é vista como qualidade. É a maior exigência que o
Deus que criamos nos exige, aliás. O Deus cristão nos pede acima de tudo
submissão. Criou dez mandamentos que devemos obedecer e até pediu no seu livro
sagrado a um pai sacrificasse o próprio filho, apenas para testar sua
submissão.
A classe média e a elite
brasileira são doutrinadas à ideia de submissão. Não à toa, Sérgio Moro é amado
por estas classes. Ele pisa e humilha os mais fracos. Nas bisonhas sessões da
Lava Jato, o então juiz assumia uma figura quase divina. Focava a câmera no
acusado e só tínhamos acesso a sua voz, que vinha quase do além, um som divino
típico de desenhos animados. Vídeos de Moro “lacrando” se popularizaram entre a
classe média. Moro humilhando os advogados dos réus, “colocando os mesmos no
seu devido lugar”. Estava claro já lá que Moro não cumpria o seu papel
constitucional, estava lá apenas saciando a sede revanchista de uma parcela
reacionária da população. Alçado a ministro pelo candidato que ajudou a eleger
ao tirar seu maior rival da disputa, Moro pôde mostrar a seus súditos a sua
outra face. O juiz que humilhava passou agora a ser humilhado pelo chefe do projeto
de poder que representa, cumprindo quase que religiosamente o seu papel na
jornada da submissão. Quanto mais é humilhado pelo chefe, mais Moro o defende.
A classe média, acostumada a ser capacha, segue idolatrando o ex-juiz. A elite,
acostumada a valorizar o capacho, faz o mesmo. É muito importante para ela que
a classe média enxergue na submissão o caminho para o sucesso. Que ela seja a
chave para a caracterização do “bom funcionário” que sobre na empresa.
Todo governo autoritário tem como
regra afastar do poder aqueles que possuem conhecimento técnico e capacidade de
questionamento, colocando no poder puxa-sacos inexpressivos, bajuladores
profissionais. Não é à toa que temos no governo de Bolsonaro, o deputado insignificante
que fez da ignorância seu maior trunfo, este ministério ridículo. Sérgio Moro,
o herói da classe média bajuladora, tornou-se ministro da Justiça e da
Segurança Pública sem saber nada sobre Segurança Pública, sem ter um único
texto publicado em algum lugar sobre o assunto. Ricardo Sales assumiu o
Ministério do Meio Ambiente sem ter noção alguma do assunto, não tendo nunca
visitado a Amazônia. Abraham Weintraub, ministro da Educação, tem uma vida
acadêmica marcada pela inexpressividade e por notas medíocres, nunca tendo
trabalhado na área. Paulo Guedes, o ministro da Fazenda, guru de boa parte do
mercado que comprou o capitão imbecil, assumiu sem saber que o orçamento de um
ano é votado no ano anterior. O governo Bolsonaro é uma espécie de revanche da
mediocridade, dos insignificantes e preguiçosos intelectualmente que passaram
anos escondidos, desvalorizados e acumulando rancores.
Guedes é uma figura completamente
nula na área econômica. Foi alçado ao papel de sabichão-mor da área porque
dizia exatamente aquilo que a elite queria ouvir. Tem contribuição zero à
academia no assunto. A elite não valoriza a reflexão e a criação acadêmica.
Valoriza a bajulação. Guedes é o bajulador, transformado em gênio. Todo o processo
educacional pensado pela elite foi pensado para valorizar a pessoa do
bajulador. As ciências humanas criam contestadores, e nada é pior para o
sistema da submissão do que isto. Devem ser desvalorizadas, do que o país
precisa, eles alegam, é de engenheiros, administradores, empreendedores etc.
Como uma pessoa como Sérgio Moro que, entre outras coisas, fala conje, não sabe
a diferença entre porque e por que e escreve “há mil anos atrás” passou num
concurso para juiz? Fácil explicar, as provas só pedem decorebas. Moro é
incapaz de escrever um texto simples com início, meio e fim, mas provavelmente
decorou o artigo sei lá qual do não sei o que. As provas são feitas para
pessoas que sabem os “macetes”, e não para quem consegue refletir e questionar
algo. Aprendeu macetes e bajulou. E seguirá fazendo isto. É só o que sabe
fazer. É o papel que cumpre.
A maior dificuldade que a classe
média e a elite têm em relação a Lula está longe de serem as relações escusas
que seu governo teve com figuras corruptas. Elas não estão nem aí para as
patéticas tentativas do atual ministro Moro de defender o presidente e sua
família dos inúmeros casos de corrupção em que estão envolvidos. O maior
problema é que a figura de Lula, em certa medida, quebrou momentaneamente a
corrente da submissão. Lula chegou ao poder sem ter “diploma”, ou seja, sem
decorar os macetes para passar na prova. Uma coisa que acho interessante em
Lula e que é pouco dita é que ele tem uma capacidade única de não mudar o
discurso e o tom de voz de acordo com o interlocutor. Eu, como crítico que sou
deste modelo podre em que vivemos, não consigo fazer isto. É impressionante
como minha postura automática é mudar meu tom de voz quando estou falando com
alguém de acordo com a hierarquia social. Se vou falar com uma pessoa mais
pobre, por exemplo, falo mais devagar. Nós “adoramos” fazer isto, aliás. Pegue
qualquer programa de TV e note isto. Olhe como Luciano Huck, por exemplo, muda
o jeito de falar quando está “ajudando” alguém pobre em seu programa. Lula não
faz isto, fala de igual para igual. E mais do que isto, Lula não muda em nada
as palavras que usa nos mais diferentes locais. O teor do discurso muda, é
óbvio, mas o vocabulário é o mesmo. Poucas coisas tem mais papel na nossa
sociedade opressora do que a linguagem e nada era mais arrebatador e
revolucionário do que ter uma pessoa falando a mesma linguagem com todos. Não apenas internamente, aliás. Lembro-me de um vídeo de Chico Buarque em que ele dizia que a maior qualidade de Lula é que ele não abaixava a cabeça para o EUA e não falava grosso com a Bolívia. Lula era o mesmo com todos. Não à
toa os erros gramaticais de Lula eram motivos de chacota e os de Moro passam
incólumes. Moro tenta falar bonito e não consegue. A elite se identifica com
isto. Criou-se para enfrentar Lula um herói e um mito que representam bem seus valores. De um lado, um puxa-saco medíocre, que humilha os que estão abaixo e se mostra totalmente
submisso aos que estão acima. Do outro, um capitão tosco que fala em patriotismo enquanto presta continência ao embaixador americano. O herói diplomado se uniu ao capitão mítico ignorante, derrubando assim o torneiro mecânico que ousou, mesmo que às vezes
timidamente, enfrentar este sistema. Lula é o “vagabundo”, que subiu na vida
estimulando “greves” e questionando. É preciso que a sociedade enxergue como
vitorioso não ele, mas o seu oposto, o cordeirinho. A elite ganhou muito
dinheiro com a bonança da era Lula. Mas isto não importa. As relações de
dominação e sua manutenção plena eram mais importantes do que qualquer outra
coisa.
A melhor forma de criar
bajuladores é o estímulo à disciplina. A educação libertadora de Paulo Freire
deve ser substituída pela educação dos militares. A PM que prende é a PM que
educa e as escolas devem afastar os contestadores desde cedo. É muito
importante que desde cedo a criança já seja doutrinada a acreditar nos valores
da submissão e a enxergar nela o caminho para o sucesso. A delação é tratada
como qualidade e, portanto, estimulada. Regimes autoritários funcionam sempre
da mesma maneira. É quase uma ciência exata. Há um verdadeiro passo-a-passo,
cumprido à risca no Brasil desde 2016. Numa sociedade que estimula a
imbecilidade, Bolsonaro é imbecil-mor. Uma sociedade baseada na bajulação, que
não à toa tem como herói maior uma figura como Sérgio Moro, o bajulador-mor da
república.
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