segunda-feira, 30 de março de 2020

Quantas vidas valem um hambúrguer?




Eu nunca tinha ouvido falar dessa porra desse restaurante Madero até semana passada. Não sei nem se é assim que se escreve o nome dessa merda. Há mais ou menos dois anos que eu estou bastante por fora do que acontece neste mundo de classe média. Para quem não me conhece, o meu atual estágio é de decadência financeira, o que significa que eu não faço a menor ideia do que está acontecendo no mundo gastronômico da classe média. Em algum dia de março de 2018, num belo dia ensolarado, eu olhei para o ambiente de escritório em que eu trabalhava e pensei “que merda, hein?”. Aquele dia havia começado com o diretor da área analisando currículos e apareceu um venezuelano se candidatando a uma vaga de Logística. “O bom deste é que podemos oferecer um salário menor, ele deve estar morrendo de fome e vai aceitar qualquer coisa”, disse o diretor. Era a época em que a prisão de Lula estava próxima, a galera estava em êxtase e era um inferno ser basicamente o único a ver a grande hecatombe que se aproximava. Resolvi pedir as contas e viver a vida de outra forma.
Assim como eu no primeiro parágrafo, as pessoas adoram falar sobre si mesmas. Há uma relação hierárquica aqui no Brasil em que a pessoa mais rica dá conselhos para pessoas mais pobres. Por algum motivo, queremos ser a pessoa que está acima de nós e queremos que a pessoa que está abaixo queira ser como nós. Eu fui assim por muito tempo. “Compre menos roupa e economize um pouco de dinheiro”, dizia eu para um colega meu. Por que eu fazia isso? Comprar roupa o fazia feliz, afinal. Porque por algum motivo eu achava que podia. Ouvimos atentamente quem está “acima” e falamos para quem está “abaixo”. É isto que leva pessoas que não tem absolutamente nada a dizer a querer opinar sobre assuntos que não entendem, tipo este merda do Madero ou aquele bosta da Havan. Cem por cento do que essa gente diz é merda, mas elas continuam falando e tendo repercussão. Por quê? Porque eles, como empresários bem sucedidos, foram acostumados com a ideia de que eles têm o poder de fala e, mais do que isto, nós que estamos abaixo na pirâmide social, estamos acostumados a dar espaço para estes merdas falarem. A porra do véio da Havan não consegue completar uma frase com início, meio e fim, mas lá está ele optando sobre tudo.
Eu não como hambúrguer. Nunca entendi muito bem o amor que as pessoas sentem por hambúrguer. A classe média gosta mesmo de hambúrguer e sair para comer hambúrguer é tipo um evento. As pessoas saem de casa apenas para fazer isto. Junto com carro, hambúrguer é o assunto popular que mais me entristece quando surge numa conversa, porque eu fico boiando completamente. Minha mãe mora no centro de SP e na frente da casa dela abriu uma Z Deli. Eu nunca tinha ouvido falar desse restaurante e estava todo mundo extremamente animado. “É a mesma marca que tem em Pinheiros”, me diziam todos. Eu não vou para Pinheiros, acho meio longe. A Z Deli é tão famosa que virou ponto de referência. “Minha mãe mora perto da Z Deli, sabe?”. “Sim, sei! Adoro lá”! O centro de SP está virando uma grande hamburgueria cercada por barbearias hipsters.
Pelo que li, o dono do Madero ficou rico fazendo hambúrguer. Fazer hambúrguer é o que justifica a sua existência e é o que deu a ele direito de opinar sobre qualquer assunto em nossa sociedade hierarquizada. Ele leva o seu hambúrguer bastante a sério. O capitalismo como vivemos deu ao cara que faz hambúrguer um poder de opinar sobre saúde pública. Ele acha que se pessoas tiverem que morrer para que ele continue fazendo hambúrguer, tudo bem. A vida vale menos que o hambúrguer. Resolveu tentar convencer a sociedade disto. Não é o único. Roberto Justus fez o mesmo, citando “estatísticas”. “Se dez ou quinze mil pessoas tiverem que morrer, paciência, não podemos parar a economia”, disse Justus. Aos 65 anos, Justus faz parte do grupo de risco, mas não se sente assim. “Tenho pulmão bom”, ele disse. Aparentemente pôr botox e usar sapatênis o fizeram realmente acreditar que ele é jovem.
O Brasil nos últimos anos consagrou o achismo. A opinião “polêmica”, normalmente uma opinião de merda, se sobrepôs à opinião do especialista. Ela dá mais audiência. Em 2018 consagramos o merda-mor. Anos dando opiniões de merda sobre todos os assuntos possíveis levaram Jair Bolsonaro à presidência. Ele passou anos sendo o convidado favorito de programas de subcelebridades que davam espaço a suas barbaridades para ganhar um pontinho a mais de audiência. Não ser especialista em nada e não procurar conhecimento se tornaram as duas “qualidades” preponderantes de Bolsonaro. O merda do Madero, o véio da Havan e Roberto Justus logo se identificaram com o então candidato à presidência. “Ele fala umas verdades”, diziam eles. Uma coisa muito doida de quem só pensa merda é que em um determinado momento eles começam a achar que a merda é a verdade. A pessoa passa anos falando merda e sendo procurada para falar merda, chega a ser até natural que ela se transforme em uma enorme merda. E mais do que isto, quando você consagra uma pessoa que só fala merda à presidência da República, ou incentiva este tipo de empresário a opinar sobre tudo, eles se enxergam quase numa missão moral de espalhar a merda.
Bolsonaro criou um personagem “polêmico”. Ele é o cara que ganhou destaque na mídia se opondo a especialistas e falando merda. Saiu de capitão frustrado a presidente da República fazendo só isso, se opondo a especialistas e falando merda. Quando uma pessoa cresce na vida se opondo a especialistas e falando merda, a tendência é que no topo ela continuará se opondo a especialistas e falando merda. O mesmo serve para outras profissões, aliás. Se o cara subiu na vida fritando hambúrguer e falando merda, ele vai seguir esta receita de sucesso até o fim. Em 2018, o país em hipnose tinha diversos especialistas na luta pela presidência. Haddad, o especialista em educação. Marina, a especialista em meio-ambiente que tinha como vice o idealizador do SUS. Ciro Gomes, um dos ministros do Plano Real. Alckmin, governador do maior estado do país que manteve as finanças do Estado estáveis numa baita crise econômica. Todos eles contra um cara que só fala merda. Optamos pela merda.
O boleto veio em 2020. Na maior crise da humanidade desde 1945, somos governados por um completo imbecil. Bolsonaro faz neste momento aquilo que fez na carreira toda. Espalha merda, estimula o ódio e é “polêmico”. Conta com o apoio de empresários merdeiros como ele. Pessoas que colocam hambúrgueres na frente de vidas. Quantas vidas valem um hambúrguer? E lá está uma parcela da classe média seguindo o conselho desses empresários e do presidente e convocando boicote à opinião dos especialistas, em carreatas em que não têm coragem de sair dos carros.
Viveremos o período mais difícil e marcante das nossas existências. Nada será como antes. Cada um terá uma tragédia pessoal, grande ou pequena, nessa gigante tragédia coletiva. Alguns de nós perderão parentes e amigos, outros perderão empregos, ninguém sairá ileso. Sofreremos e nos transformaremos. Vamos chorar como nunca. Veremos nossas mazelas sociais expostas como nunca. Como convencer, afinal, as pessoas a ficar em casa num país que tem toda sua proteção social voltada para o trabalho formal e que passou os últimos anos estimulando a informalidade? Por que não discutimos isto antes? Porque estávamos perdendo tempo dando espaço a pessoas que só falam merda. Há duas lições iniciais deste sofrimento coletivo. A primeira é que será necessário voltar a dar espaço ao conhecimento nos debates públicos. A segunda é que a única forma de sair disso será coletiva. Todos terão que fazer sua  parte. Qualquer sofrimento econômico é pequeno perto da tragédia coletiva. Não reclame dos privilégios que perder. Este privilégio perdido está salvando vidas. Há coisas mais importantes na vida do que pagar boletos. Seja a pessoa que será tratada como heroína pelas gerações futuras. Temos dois caminhos a seguir. Podemos ser a sociedade que parou para salvar vidas. Ou podemos ser a sociedade que transformou um milhão de mortes em estatística e saiu para comer hambúrguer. O que queremos ser? Especialistas estimam a perda de mais de um milhão de vidas se não fizermos nada e de 44 mil se optarmos pelo isolamento coletivo. Faça parte deste esforço heroico, tenha do que se orgulhar no futuro. E lembre-se, o ser humano é um só. O chinês em Wuhan, a rainha da Inglaterra, o merda que faz hambúrguer, o leitor ou leitora deste texto.
Fique em casa o máximo possível. Ajude quem precisar e não puder sair. Faça sua parte. Ouça os especialistas.

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