quinta-feira, 30 de abril de 2020

E daí?




Eu não tenho dúvidas que boa parte das pessoas que me conhecem devem me considerar um “petralha”. Não vou entrar no mérito do tema. Sim, acredito que se colocarmos numa balança o governo petista fez mais bem do que mal ao país, mas reconheço que houve vários erros na gestão. O fato importante é que quase todo mundo me acha “petralha”. Pois bem, na última eleição presidencial, um dos candidatos disse no palanque que, caso eleito, iria metralhar os “petralhas”. Mais do que isto, disse que aqueles que não concordassem com ele seriam presos ou expulsos do país. Sendo um “petralha”, eu sou uma das pessoas que ele prometeu metralhar. Não concordando com absolutamente nada do que ele diz ou faz, sou uma das pessoas que ele prometeu expulsar ou prender. Qual a reação que os eleitores desta coisa tiveram em relação a mim naquele momento? Elas basicamente falaram: “E daí?”.
O presidente da República fez da perseguição aos gays quase que um slogan de sua carreira. Disse que preferia um filho morto a um filho gay. Defendeu que pais agredissem seus filhos caso notassem indícios de que a criança fosse gay. O número de agressões a gays subiu exponencialmente no país desde a eleição desta coisa que hoje nos governa. Sua vitória representou um incentivo à homofobia. Imagine viver num país em que a maioria das pessoas vota em alguém que te quer morto? Alguém que incentiva que você seja agredido? Esta é a realidade que a maior parte da população LGBT no Brasil vive desde outubro de 2018. Qual a reação dos eleitores desta coisa a estas agressões, a estes assassinatos, a este medo, a este sofimento? Algo muito próximo ao “E daí?”.
Durante a campanha, a coisa que atualmente preside o país elogiou o processo de genocídio indígena brasileiro. Só não elogiou mais porque, segundo ele, não fizemos como os americanos, que, segundo suas palavras, “mataram todo mundo”. A violência contra populações indígenas explodiu em seu governo. O agronegócio e o extrativismo invadem, com anuência do governo, reservas indígenas, expulsam populações e agridem os nativos. Aumentou o número de lideranças indígenas assassinadas. Qual a reação dos eleitores desta coisa quando o então candidato prometia fazer isto ou quando veem algo sobre o assunto? Algo muito próximo ao “E daí?”.
Durante a campanha, o candidato coisa fez diversas declarações racistas. Disse que quilombolas eram pesados por arrobas. Chamou a gigantesca desigualdade racial que vivemos de mimimi. “E daí?”. Estimulou a xenofobia contra imigrantes africanos e haitianos. “E daí?”. Disse a uma deputada que não a estuprava porque "ela não merecia". "E daí?". Disse que fraquejou ao ter uma filha mulher. "E daí?". Prometeu entrar em guerra contra a Venezuela, vizinho que não nos ameaça. “E daí?”. Disse que as universidades públicas eram um antro de vagabundos. “E daí?”. Seu filho disse que fecharia o Supremo com um cabo e um soldado. “E daí?”. Disse que o maior erro da ditadura foi ter matado “pouca gente”. “E daí?”.
O grande momento da carreira desta coisa que nos governa até chegar à presidência foi na sessão de impeachment de Dilma Rousseff, quando, em rede nacional, dedicou seu voto à figura que a tinha torturado na juventude. Um homem que enfiava ratos na vagina das presas por prazer sádico. “E daí?”.
Mais de cinco mil brasileiros já morreram durante a pandemia do Covid-19. Muitos ainda vão morrer. A coisa que nos preside faz tudo para boicotar os esforços para salvar vidas. Espalhou uma cura falsa, criou burocracias para liberar o dinheiro que permitiria que muitos trabalhadores informais ficassem em casa se cuidando, faz campanha quase que diária contra o isolamento, única saída para diminuir a tragédia. Todo o discurso genocida da coisa encontrou na Covid a chance de se realizar. A reação dele às mortes é chocante, mas não surpreendente. “E daí?” é a reação esperada e o que  o fez chegar ao cargo em que chegou. Nas poucas vezes em que tentou simular algum tipo de compaixão pelas vítimas da tragédia, tudo que conseguimos ver é cinismo. Muitos (não a maioria) dos que votaram nele se mostram arrependidos. Sentem na pele o que é ver a coisa que possui o maior cargo do país dizer “E daí?” para seus medos, dores e sofrimentos. Bem-vindo ao clube. Muita gente já sente isto desde 2018. Dois anos vivendo num país que diz “E daí?” para vocês. Respeito o arrependimento destas pessoas. Mas elas são cúmplices. Não dá para ser amigo de quem falou “E daí?” para tanta gente por tanto tempo. Simplesmente não dá.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Angústia



Tenho dormido cedo. Evitei notícias por uma semana. O pensamento não acontece de forma linear. Dois problemas se misturam. A verdade do universo e a prestação que vai vencer. Mais de um mês sem abraçar minha mãe. A NET cancelou minha internet. Eu odeio a NET. A internet gratuita da NET funciona no meu apartamento. Eu amo a NET. Um mês sem ver minha irmã. Um mês usando máscara. Doria e Covas falando todo dia. Fiquem em casa. Bruno deixou de ser apenas o neto de Mário. Vê-lo lutando todo dia enquanto tem câncer é um alento. Quatro anos do impeachment. Bruno votou a favor. Que merda. O dia em que os bárbaros iniciaram o ataque à Roma. Dilma caiu. Temer subiu. Depois caiu junto com Aécio. Os bárbaros se aproximam de Roma. O chefe dos bárbaros elogia a tortura em programas de subcelebridades. Os bárbaros cada vez mais perto. Lula é preso. Facada. Os bárbaros chegam à Roma. O juiz que prendeu Lula vira funcionário do bárbaro-mor. Lula é solto. Tarde demais. Quando exatamente se tornou tarde demais? Acho que faz tempo. Que Deus tenha misericórdia desta nação. Não teve.
Lave as mãos com água e sabão. Passe álcool gel. É difícil manter a mente sã. Bate Sol aqui das 7 às 11. Precisamos de 15 minutos por dia. Metrô 2 vezes por semana. Enchendo. O rapaz vende fone. Outro chocolate. Outro canta Bob Marley. O governo não os ajuda. 600 reais enrolados. O presidente queria dar 200. Morre gente todo dia. Acontece. Voltem ao trabalho. 1 milhão vão morrer sem restrições. 44 mil vão morrer se fizermos tudo certo. Morreram 2 mil. Faltam 42 mil se der tudo certo. 999998 se fizermos o que o presidente manda. Novecentos e noventa e nove mil novecentos e noventa e oito. Novecentosenoventaenovemilnovecentosenoventaeoito. Ummilhão. Números. Como convencer as pessoas a ficarem em casa? Pessoas não são números.
Cinquenta e sete milhões setecentos e noventa e sete mil oitocentos e quarenta e sete brasileiros votaram no capitão. Saíram de casa num domingo e apertaram 17. Ditadura. Tortura. Armas. Machismo. Xenofobia. Submissão. Religião. Mito. O genocídio chegou mais rápido do que o previsto. Por quem dobram os sinos? Nenhum homem é uma ilha. Um chinês comendo um morcego. O príncipe da Inglaterra. A mesma doença.
Pedalada fiscal. Ainda não sei bem o que é isso. Algo como atraso ao repasse de verbas do governo para o público. Ou abertura de crédito suplementar sem a aprovação do Congresso. Sei lá. Quando se quer culpar alguém, inventa-se um crime. Reforma no triplex do Guarujá. O possível comprador não quis comprar. A reforma não aconteceu. Quando se quer culpar alguém, inventa-se um crime. Moro na XP. Fraude fiscal. Guedes na XP. Fraude fiscal. Quando se quer inocentar alguém, esconde-se o crime. O juiz trabalhando com a acusação. Invenção de provas. Manipulação de áudios. Quando se quer inocentar alguém, esconde-se o crime.
Temos que ficar em casa por nós. E pelos outros. Individualismo. Como convencer a ficar em casa pelos outros se só pensamos em nós. Mão invisível do mercado. Estado mínimo. Gastos públicos. Déficit fiscal. CPFs com problemas. Burocracia. Filas. A sociedade não faz nada por mim, por que devo fazer algo pela sociedade? Eu não faço nada pela sociedade, por que ela deve fazer algo por mim?
“Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.” B. Brecht
“A história, Stephen disse, é um pesadelo de que eu estou tentando acordar”. Carreatas na frente dos hospitais. Gente morrendo dentro. Gente matando fora. Bandeira do Brasil. Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil. Ou ficar a pátria louca ou matar pelo Brasil. Nacionalismo. Militarismo. Xenofobia. Todo mundo sabe onde isso dá.
“Os sonhos teus vão acabar contigo.
O interesse pela vida austera
Irá desaparecer feito fumaça. Então
Desejos e paixões irão murchar,
O mensageiro do céu não virá a correr
Nem a juventude do ardente pensar…
Para, meu amigo, de tanto sonhar,
Exime o entendimento de morrer.” D. Kharms
Vontade de viajar. Não queria mais. Agora quero. Conhecer Belém. A Chapada. Voltar pra Imbituba. A festa de 50 anos de casamento da minha tia ficou sei lá pra quando. O casamento do meu amigo pra dezembro. “Para” no escrito. “Pra” no falado. Algum dia “pra” vai ser aceito no escrito. Três quilos a menos. O próximo carnaval promete. O passeio de bicicleta.
Cruzou o limite do inaceitável. Trinta anos defendendo a tortura. Deveriam ter matado uns trinta mil, ele disse. Prefiro um filho morto a um filho gay, ele disse. Só vagabundo recebe bolsa família, ele disse. Aquele lá pesa não sei quantas arroubas, ele disse. Vamos metralhar os petralhas, ele disse. As minorias têm que se submeter às vontades da maioria, ele disse. Viva o cara que enfiava rato na vagina de mulheres para obter delações, ele disse. O que pensar de quem acha que só agora é inaceitável?
“Não amei bastante meu semelhante,
não catei o verme nem curei a sarna.
Só proferi algumas palavras,
melodiosas, tarde , ao voltar da festa.

Dei sem dar e beijei sem beijo.
(Cego é talvez quem esconde os olhos
embaixo do catre.) E na meia-luz
tesouros fanam-se, os mais excelentes.

Do que restou, como compor um homem
e tudo o que ele implica de suave,
de concordâncias vegetais, múrmurios
de riso, entrega, amor e piedade?

Não amei bastante sequer a mim mesmo,
contudo próximo. Não amei ninguém.
Salvo aquele pássaro -vinha azul e doido-
que se esfacelou na asa do avião.” Drummond
Capitão Nascimento enfiava a sacola na cabeça do favelado. A plateia vibrava vendo aquilo na tela grande. O nariz do torturado sangrava. O juiz mandou raspar a cabeça do político preso. Ele foi para a solitária. Delírio entre os jornalistas. Qual o tamanho da cela em que ele dorme? Sua refeição de hoje foi macarrão e salsicha. Delírio. O apresentador de TV celebra cada morte. CPFs cancelados. O governador falou para atirar na cabeça. Nove mortos em Paraisópolis. Gustavo Cruz Xavier, 14, Dennys Guilherme dos Santos Franco, 16, Marcos Paulo Oliveira dos Santos, 16, Denys Henrique Quirino da Silva, 16, Luara Victoria Oliveira, 18, Gabriel Rogério de Moraes, 20, Eduardo da Silva, 21, Bruno Gabriel dos Santos, 22, e Mateus dos Santos Costa, 23.
“Mulher, como você se chama? – Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? – Nao sei.
Para que cavou uma toca na terra? – Não sei.
Desde quanto está aqui escondida? – Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? – Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? – Não sei.
De que lado você está? – Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. – Não sei.
Esses são teus filhos? – São.” Szymborska
Não tinha sal no mercado. O fornecedor não entregou. Caminhoneiros ameaçam greve. Fila de carros nos postos. Chegou gasolina. Intervenção Militar Já. 2015. Eles são a minoria, disse a jornalista. A passeata tem crianças e idosos e transcorre pacificamente. Intervenção Militar Já. 2016. Eles são a minoria, disse a jornalista. A passeata tem crianças e idosos e transcorre pacificamente. Intervenção Militar Já. 2017. Eles são a minoria, disse a jornalista. A passeata tem crianças e idosos e transcorre pacificamente. 2018. Tocam as trombetas do Apocalipse. Gritos na janela. Mito. Onde você estava quando a liberdade começou a ruir?
A Bolsa caiu com a chegada do fim do mundo. As bolsas da Ásia caíram mais de 10%. Onde investir? As pessoas estão comprando armas. O presidente e o juiz facilitaram a posse. Quem tentar roubar meu sal vai levar chumbo. Oitenta tiros mataram Evaldo Rosa. Excludente de ilicitude, disse o conje.
Aulas online. Zoom. Google Meet. Google Hangout. Espelhar tela. Não sabia nada disso há um mês. Fila na farmácia. Dipirona e AS estão em falta. Ligamos quando chegar. O remédio secreto do astronauta. A substância secreta produzida no laboratório secreto. Mais uma cura. Hidroxicloroquina. Fórmula: C18H26ClN3O. Massa molar: 335,872 g/mol. Mais uma cura. Azitromicina. Mais uma cura. Doria comunista. Maia comunista. Bill Gates comunista. Pronunciamento do presidente. A caixinha do remédio. Vamos orar. Soam as panelas.
Parasita. O cheiro. Os pobres se matando. No final, resolvem matar o rico. A vida no porão. Justus no navio. Voltem ao trabalho, ele disse. Reforma Trabalhista. Informalidade. Vamos crescer e gerar empregos. Não crescemos e não geramos empregos. É direito ou emprego, disse o presidente. Reforma da Previdência. Vamos crescer e gerar empregos. Não crescemos e não geramos empregos. É aposentadoria ou emprego, disse o presidente. É vida ou emprego, diz ele agora. Vamos metralhar os petralhas.
A cultura e o peido do palhaço. Moraes Moreira morreu. Viúva Porcina não se manifestou. Acabou Chorare é foda. O secretário ouvindo Wagner e imitando Goebbels. Faz só dois meses isso. É difícil se concentrar. Reclamava que não tinha tempo. Agora tenho, mas não sei o que fazer. Surto. Reflexões. O que seria da minha vida se tivesse seguido um caminho diferente?
“O filho que não fiz
hoje seria homem.
Ele corre na brisa,
sem carne, sem nome” Drummond
Golfinhos em Veneza. Ar puro. A romantização da tragédia. Prisão preventiva como instrumento de tortura. Vai ficar preso até falar. O rato na vagina. O triunfo da ignorância. A violência como solução. Não teremos o que fazer com esses respiradores depois, disse o novo ministro. Como será nosso futuro? Mais um mês disso? Mais dois anos e meio disso? Ciclos no Brasil costumam durar 20 anos. Mais vinte anos disso?
Escolhemos nosso destino. O que teríamos sido? Não seremos. Somos isto. O filho que não fiz. O presidente que não escolhemos. A presidenta que não derrubamos. As crianças que não matamos. A renda que não distribuímos. Fome. Miséria. Doença. Tortura. Ignorância. Preconceito.
“Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.” C. Meireles

quarta-feira, 15 de abril de 2020

A imbecilidade como religião



Não há na história republicana do Brasil um fenômeno político semelhante a Jair Bolsonaro. Ele é único e original. Por isto é tão perigoso e desesperador. Ninguém sabe ao certo como enfrentá-lo, embora seja bem previsível no que isto vai dar.
O sentimento que os fãs de Bolsonaro têm por ele é religioso. A submissão é total. Ao contrário dos outros líderes populares que o Brasil já teve, como Vargas e Lula, Bolsonaro não entregou nenhuma melhora material em suas vidas. A vida de ninguém melhorou graças a Bolsonaro, nem mesmo a dos mais ricos. O fascínio que Bolsonaro exerce sobre estas pessoas é de caráter mais metafísico. Bolsonaro as libertou. Bolsonaro libertou os imbecis, fez com que eles se sentissem valorizados, e por isto estes imbecis estão dispostos a matar e morrer por ele.
Os imbecis se enxergam em Bolsonaro. Todos tivemos Bolsonaros em nossa vida. O tio que falava merda, o colega de trabalho que achava que a solução era matar todo mundo, o colega de escola que fugia de livros, mas opinava sobre tudo. Bolsonaro deu a estas pessoas a representação. É um prazer gigantesco para eles ver alguém com as características do ex-capitão chegar ao topo. Eles passaram a vida estando errados. De repente, sentem que estão certos. O ego inflou.
A imbecilidade se tornou ideologia. Não importa qual o assunto, neste meio liderado pelo presidente vai prevalecer sempre a opinião mais imbecil. A mamadeira de piroca. O kit gay. A mudança de sexo em crianças. A doutrinação comunista nas faculdades públicas. Nada disso existe. Bolsonaro “salvou” o mundo disso. Não importa que nada disso exista. Lembre-se que, mesmo após termos ido ao espaço, ainda achamos que existe um Senhor no céu que controla tudo que fazemos, que sabe o que pensamos e vê o que fazemos, que nos mandará para o inferno se formos desobedientes, mas que nos ama. O inferno. Não é tão difícil assim acreditar no capitão.
 Toda a carreira de Bolsonaro é uma ode à imbecilidade e à mediocridade. Capitão, foi afastado do exército por planejar um atentado frustrado. Deputado por 28 anos, não entregou nenhum projeto relevante, não participou de nenhuma comissão importante. Seu papel era ser a voz dos frustrados e falar merda.  Do mesmo jeito que agora fala sem saber sobre a cloroquina, passou uma década sendo o convidado polêmico de programas de subcelebridades. Não sabia nada sobre nenhum assunto, mas opinava. Quase sempre com uma frase pronta que agradasse o senso comum. O Bolsonaro da tela contentava o Bolsonaro do sofá, frustrado por uma vida que não se realizou. O sucesso de Bolsonaro é o sucesso dessa gente.
O capitalismo gera frustração. Muito raramente somos o que queremos ser. A vida adulta é uma enorme decepção se não fugirmos do ciclo imposto. O trabalho nos faz infelizes. O trânsito nos faz infelizes. O casamento nos faz infelizes. A solidão nos faz infelizes. O medo nos faz infelizes. Queremos comprar mais do que temos. Fazemos dívidas. Ficamos no trabalho para pagar estas dívidas. Queremos uma casa maior. Queremos um carro novo. Queremos ganhar mais para gastar mais. Odiamos nosso trabalho. Odiamos nosso chefe. Odiamos nossa vida. Precisamos de um culpado. Que tal o governo? Que tudo exploda.
Tudo explodiu. Bolsonaro foi eleito sem prometer empregos, saúde, moradia ou qualquer melhora real na vida. Suas promessas principais na campanha foram matar e expulsar a oposição, entrar em guerra com a Venezuela, fazer as minorias se submeterem às maiorias, legalizar a tortura, perseguir homossexuais, retirar direitos sociais e corromper a democracia. Mais da metade do país votou neste projeto. Mais da metade do país se dispôs a matar com Bolsonaro.
Uma boa parte desta mais da metade se mostra também disposta a morrer por Bolsonaro. O crème de la crème da imbecilidade. Você não morreria por seu libertador? Os imbecis morreriam. Se outros vão morrer pela imbecilidade deles, não importa. Você não lembra das promessas do presidente? Você acha mesmo que esta gente vai ser convencida a ficar em casa porque pessoas vão morrer? Elas não deixaram isso claro na urna?
Talvez o único personagem histórico brasileiro que possa ser comparado a Bolsonaro, por incrível que pareça, seja Antônio Conselheiro. Ao menos no que se refere à ideia de que seus seguidores estão dispostos a ir até o fim pelo líder. A diferença é que a “Nova Canudos” não defende os direitos dos miseráveis e esfomeados. A “Nova Canudos” quer criar o paraíso dos imbecis. Se a antiga Canudos foi massacrada pela elite pelas forças da elite do Sudeste, a "Nova Canudos" conta com o apoio desta mesma elite para massacrar.
Evangélicos compram com mais facilidade o discurso de Bolsonaro. Não é diferente do discurso dos pastores e também cria um sentimento de pertencimento a algo. Os imbecis se encontraram em Bolsonaro e pela primeira vez sentem que têm razão. Ganhar uma eleição para estas pessoas, afinal, é ter razão. Lutarão até a morte para continuarem tendo razão. “Viva a cloroquina”.
Todos os dados possíveis comprovam que o Brasil nunca foi tão bom quanto no período entre 1994 e 2014. Avançamos em todas as áreas possíveis, com estabilidade democrática. Mostrar dado para imbecil é tão infrutífero quanto questionar a fé de alguém. Citar ciência para os imbecis é perda de tempo. Eles triunfaram achando. E vão continuar achando.
O Brasil não soube enxergar Bolsonaro como o inimigo a ser batido. Que pena. Pessoas como ele só saem do poder depois de muita destruição. Quem não conhece a história tende a repetir seus erros. Não acho que algo como ele já tenha acontecido. A história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa. Não acho que algo como ele já tenha acontecido. Vivemos a tragédia.