O Brasil possui uma
característica própria de lidar com seus problemas e tragédias, o tornar-se
acostumado. Nós não resolvemos quase nada. Acostumamo-nos aos problemas de tal
maneira que em determinado momento paramos de enxergá-lo. É o que está
acontecendo com a questão da Covid-19. Ficamos acostumados à ideia de que
morrem mais de mil pessoas por dia da doença. O que outrora nos comovia, deixou
de nos comover. E o fim da comoção tornou desnecessários para uma boa parte das
pessoas os sacrifícios da quarentena. Esconder os problemas, apagá-los, é uma
forma de evitar os sacrifícios para suas reais resoluções, especialmente para a
classe média e para a elite.
Numa sociedade que escolheu
ignorar problemas para impedir a solução, aqueles que os apontam são logo
marginalizados ou convertidos em “terroristas”. Temos um grave problema de
terras. O maior produtor de alimentos do mundo possui gente passando fome. Um grupo
surgiu e apontou a existência deste problema, o MST. Logo foi marginalizado.
Chamado de radical. Impedir que eles cheguem até as pessoas é uma forma de
impedir que o problema seja percebido pela massa preocupa em trabalhar,
consumir, pagar contas e dormir. A existência do sistema requer que estas
pessoas estejam preocupadas com isto e façam tudo para manter esta roda do
trabalhar, consumir, pagar contas e dormir rodando. O mesmo acontece com a
questão da gentrificação e da especulação imobiliária. Temos um grave déficit
habitacional em SP, preços explodindo de tal forma que uma pessoa de classe
média precisa de 30 anos para comprar um apartamento pequeno. O MTST aponta
este problema e logo recebe a mesma taxação que o MST. É importante impedir que
aqueles que enxergam o problema tenham algum acesso aos meios de informação
para continuar no mundo de fantasias em que o problema não existe, condição
fundamental para aqueles que se beneficiam deste problema.
O Brasil nada fez por mais de um
século para corrigir os efeitos nefastos de sua maior tragédia, a escravidão.
Apenas nos anos 2000, governos estaduais e federal adotaram medidas de ações
afirmativas que criara cotas em universidades públicas para enfrentar este
problema. A classe média e a elite branca logo se escandalizaram, e o principal argumento que elas apresentaram era
que o problema não existia, estava sendo inventado. O Brasil, diziam eles, é
uma democracia racial. A classe média e a elite brasileira são verdadeiramente
incapazes de realizar qualquer tipo de sacrifício para solucionar qualquer
problema e para isto é fundamental sua negação. Somos uma democracia racial
justa e feliz, e nela impera a meritocracia, dizem eles. A mesma coisa acontece
quando se fala de qualquer medida de distribuição de renda. Classe média e
elite surtaram quando surgiu o Bolsa-Família, que salvou milhões de brasileiros
de fome nas últimas duas décadas. O argumento era sempre meritocrático, do tipo
temos que dar a vara e ensinar a pescar, e não dar o peixe. Argumento típico,
aliás, de quem não sabe nem pescar nem o que fazer com o peixe. Argumento de
gente que paga alguém para pescar e para cozinhar o peixe. A elite e a classe
média brasileira resolveram construir prédios cada vez mais altos, com cada vez
mais grades e cercas, com cada vez mais seguranças, normalmente pessoas pobres,
exatamente para continuar a não enxergar os problemas. É mais fácil tomar uma
taça de vinho e fazer um churrasco na varanda olhando de cima.
A quarentena no Brasil foi um
fracasso. Há dois motivos principais para isto. O primeiro foi o boicote da
elite empresarial e do presidente da República que a representa. Eles fizeram
tudo para causar o caos. Como dito em parágrafo anterior, são pessoas incapazes
de realizar qualquer tipo de sacrifício. Quando eles falam sobre o impacto da
economia, eles estão falando do próprio bolso. Eles estão se lixando para o
resto. A primeira coisa que farão quando isto acabar é ir embora para Miami ou
para a Europa. A segunda causa é a precarização do trabalho. Passamos os
últimos quatro anos fazendo o possível para destruir o sistema de proteção
social ao trabalhador. Quase todo nosso sistema de proteção é voltado ao
trabalho formal. É ele que tem aposentadoria, INSS, seguro-desemprego e que
pode ficar em casa nesta situação. Nada fizemos, nada, para criar algum tipo de
proteção às pessoas que perderam a formalidade. Empurramos milhões para a
tragédia dizendo que isto era produtivo. Como cobrar de uma pessoa que precisa
trabalhar de dia para jantar à noite que ela fique em casa? O governo federal e
a elite fizeram tudo para boicotar o pagamento da renda emergencial. Isto
feito, estão desesperadas para parar de pagar. Já reduziram pela metade para os
próximos dois meses e, em seguida, como num passe de mágica, o problema mais
uma vez deixará de existir. É gostoso pagar pouco para receber o almoço pedido
no Ifood, afinal. Quando não tem taxa de entrega, melhor.
Uma das principais causas da
tragédia que vivemos é que a elite e classe média conseguiram nos últimos anos
empurrar para a sociedade que tudo pode ser feito, menos aumentar impostos. A
solução para todos os problemas está apenas nos gastos e não na receita, então
vamos cortando tudo. Investimento em saúde, em educação, em moradia. Tudo isto
explodindo agora. Tudo isto sem ser falado. Mais do que o cansaço pela
quarentena, o que classe média e elite não aguentam mais é fazer sacrifício. Três
meses já foi tempo de mais, encheu o saco. Eles querem consumir e explorar. Uma
das primeiras coisas que vai abrir em SP serão os shoppings centers. Não há
nada mais inútil e perigoso neste momento do que abrir os shopping. Mas
foda-se.
Sou uma pessoa branca de classe
média e conversar com as pessoas que fizeram parte do meu mundo até 2016 é
desesperador. Principalmente porque me enxergo nelas. Eu fui por muito tempo
aquilo que critico. O emprego de merda para financiar as bebedeiras nos fins de
semana e viagens cada vez mais caras, os olhos fechados. Frequentava lugares em
que toda a clientela era branca e em que todos os atendentes eram negros. Dizia
que racismo não existia. Trabalhava num ambiente em que basicamente só havia
pessoas brancas, apenas o pessoal de limpeza e de segurança era negro. Dizia
que racismo não existia. Uma conversa em 2014 abriu meus olhos. Conversava com
um amigo parecido comigo num bar, numa mesa com outros amigos. Ele contava,
rindo, que um colega iria pagar sua empregada doméstica para que ela votasse em
Aécio. Todo mundo riu. Eu não. Não dormi duas noites. O problema passou a existir
e minha vida mudou. O que eu seria sem este momento? Isto me assusta.
Todos nós perderemos pessoas
próximas nos próximos meses. E tudo começou lá atrás, na eleição do genocida. E
quando podíamos impedir a concretização da tragédia, resolvemos abrir os shoppings. Os três meses não parecerão
nada quando a pessoa próxima partir. Esta é a única dor que mesmo uma sociedade
de merda como a nossa não consegue se acostumar. Podíamos evitar. Mas ficar em
casa encheu o saco. E a economia precisa rodar. A Bolsa de Valores está animada
com o reaquecimento da economia. É fundamental para esta turma que os problemas sigam sem existir. Está triste? "Faça terapia, vai resolver."
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