A principal causa do fracasso brasileiro
no combate ao coronavírus é o culto ao individualismo. Num momento em que
enfrentamos uma pandemia que exigia trabalho em equipe e preocupação com o
outro, fomos, em geral, simplesmente incapazes de realizar este grande esforço coletivo. Cada um por si e
todos se fodendo. Não à toa o único país que foi mais incompetente que o Brasil
no combate à pandemia, os EUA, é o único que consegue ser ainda mais radical
nesta ode ao individualismo. Como, num país como o Brasil, convencer milhões
que seria necessário fazer sacrifícios pelo bem coletivo? Como convencer
milhões que foram completamente abandonados pela sociedade e cujo dia a dia é
um combate pela sobrevivência a lutar uma luta por aqueles que nunca se
importaram com eles? Não rolou. Ou então rolou do jeito que estamos
acostumados, de forma tosca.
A grande tragédia brasileira
exposta pela pandemia é a informalização do trabalho. Mais da metade dos nossos
trabalhadores está jogada no mercado de trabalho sem nenhum tipo de apoio ou
proteção social. Sempre foi assim, mas a partir da Reforma Trabalhista passamos,
como sociedade, a enxergar nisto uma qualidade. Ao invés de combater a
informalidade e trazer as pessoas para a proteção da formalidade, passamos a
facilitar a informalização. A isto deu-se o nome de produtividade. O empresariado
brasileiro, em boa parte formada por empresários que incentivam a população a
furar a quarentena, pois para eles a morte de milhares de pessoas não justifica
o fechamento da economia, foi bem sucedido em fazer crer que contrataria mais
se pagasse menos tributos trabalhistas. Não contratou. Provavelmente pôs este
dinheiro no mercado imobiliário de Miami.
Um dos absurdos com os quais nos
acostumamos é com a ideia de que o trabalhador é uma pessoa jurídica.
Abandonamos o CPF para nos tornarmos CNPJ. Ao nos convertermos em empresa,
desumanizamo-nos. Passamos a nos enxergar como empresa e a ver no outro
trabalhador não mais um colega, com lutas e dilemas semelhantes, mas como um
concorrente. Não queremos mais nos unir a este outro trabalhador na luta por
melhorias de trabalho, queremos ver esta outra “empresa” falida e fora do
mercado. A instituição que servia para unir os trabalhadores, o sindicato,
passou a ser demonizada. Perdeu sua função de existência. O trabalhador, que antes
ficava enfurecido de ter que pagar a contribuição sindical, agora é uma feliz
empresa que paga sorrindo um contador. Ao invés de holerite, emitimos uma nota
fiscal. Toda esta transformação rompeu os laços que ligavam os trabalhadores e,
mais do que isto, eles passaram a se enxergar como uma empresa que negocia em pé
de igualdade com o patrão. Se ele passou a ver o antigo colega trabalhador como
inimigo na concorrência, o patrão passou a ser visto como o cliente a ser
bajulado. Aquele que nos trocará em qualquer situação de discordância e que poderá
achar um concorrente disposto a me substituir de um dia para o outro. Tudo isto
foi chamado de produtividade.
No mundo econômico em que as empresas
foram convertidas em clientes e em que os trabalhadores foram convertidos em
pequenas empresas fornecedoras não mais de mão-de-obra, mas de um “serviço”, os
grandes aplicativos de entrega se tornaram uma verdadeira vitrine. A partir
destes serviços, um grupo de investidores converteu milhares de jovens (ou não
tão jovens assim) pobres em fornecedores de serviço, sem nenhum tipo de direito
e concorrendo entre si. Recebem cada vez menos e trabalham cada vez mais, o
mundo dos sonhos dos defensores desta visão de “produtividade”. Deu certo. O
cliente adora uma promoção de entrega grátis. É muito bom receber um sanduíche
sem ter que pagar o trabalho do entregador de bicicleta, afinal. Enquanto a
classe média fica em casa pedindo sanduíche, esta galera está na rua arriscando
suas vidas. O nome disso? “Produtividade”.
A eleição de alguém como
Bolsonaro é como uma queda de avião. São vários motivos e vários culpados. E
ela é um sintoma de uma grave doença social, a desumanização. Somos completamente
incapazes de fazer algo pensando no próximo e isto foi desenhado nos últimos
anos. Como pedir ao homem convertido em empresa que se preocupe com algo
diferente do que sua taxa de lucro? Empresa quer mais é que seu concorrente se
foda. Parte deste processo explica a força de um discurso de sucateamento e
destruição dos serviços estatais. Cada serviço estatal significa uma chance a
menos de lucro para o homem-empresa. Ontem passou no Senado o projeto de
privatização do sistema de saneamento. O homem-empresa não se importa com o
fato de que este sistema não será universal. No mundo em que até o homem se
transformou em empresa e tem como função gerar lucro, fazer o mesmo com a água
é detalhe. É produtividade. O Brasil não aprendeu porra nenhuma com a tragédia.
A chegada da pandemia no Brasil se
deu pela elite que trouxe a doença da Europa. Com as mortes concentradas neste
extrato social, resolvemos fechar tudo. Três meses depois, a doença parece
controlada entre a elite, mas dizimando as comunidades mais pobres. Fechamos
quando a doença matava 50 por dia. Estamos reabrindo com a doença matando 1300
por dia. A morte está chegando àqueles que a sociedade se habitou a ver mortos.
Àqueles que a sociedade já naturalizou a morte. Eles já não têm água limpa.
Continuarão não tendo. Mas desta vez o homem-empresa ganhará mais dinheiro
ainda com isto. O homem-empresa está com pressa. A economia não pode quebrar.
Definitivamente, somos uma experiência humana que deu muito errado. Normalizamos
todos os tipos de absurdo.
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