quinta-feira, 25 de junho de 2020

Você é pessoa física ou pessoa jurídica?



A principal causa do fracasso brasileiro no combate ao coronavírus é o culto ao individualismo. Num momento em que enfrentamos uma pandemia que exigia trabalho em equipe e preocupação com o outro, fomos, em geral, simplesmente incapazes de realizar este  grande esforço coletivo. Cada um por si e todos se fodendo. Não à toa o único país que foi mais incompetente que o Brasil no combate à pandemia, os EUA, é o único que consegue ser ainda mais radical nesta ode ao individualismo. Como, num país como o Brasil, convencer milhões que seria necessário fazer sacrifícios pelo bem coletivo? Como convencer milhões que foram completamente abandonados pela sociedade e cujo dia a dia é um combate pela sobrevivência a lutar uma luta por aqueles que nunca se importaram com eles? Não rolou. Ou então rolou do jeito que estamos acostumados, de forma tosca.
A grande tragédia brasileira exposta pela pandemia é a informalização do trabalho. Mais da metade dos nossos trabalhadores está jogada no mercado de trabalho sem nenhum tipo de apoio ou proteção social. Sempre foi assim, mas a partir da Reforma Trabalhista passamos, como sociedade, a enxergar nisto uma qualidade. Ao invés de combater a informalidade e trazer as pessoas para a proteção da formalidade, passamos a facilitar a informalização. A isto deu-se o nome de produtividade. O empresariado brasileiro, em boa parte formada por empresários que incentivam a população a furar a quarentena, pois para eles a morte de milhares de pessoas não justifica o fechamento da economia, foi bem sucedido em fazer crer que contrataria mais se pagasse menos tributos trabalhistas. Não contratou. Provavelmente pôs este dinheiro no mercado imobiliário de Miami.
Um dos absurdos com os quais nos acostumamos é com a ideia de que o trabalhador é uma pessoa jurídica. Abandonamos o CPF para nos tornarmos CNPJ. Ao nos convertermos em empresa, desumanizamo-nos. Passamos a nos enxergar como empresa e a ver no outro trabalhador não mais um colega, com lutas e dilemas semelhantes, mas como um concorrente. Não queremos mais nos unir a este outro trabalhador na luta por melhorias de trabalho, queremos ver esta outra “empresa” falida e fora do mercado. A instituição que servia para unir os trabalhadores, o sindicato, passou a ser demonizada. Perdeu sua função de existência. O trabalhador, que antes ficava enfurecido de ter que pagar a contribuição sindical, agora é uma feliz empresa que paga sorrindo um contador. Ao invés de holerite, emitimos uma nota fiscal. Toda esta transformação rompeu os laços que ligavam os trabalhadores e, mais do que isto, eles passaram a se enxergar como uma empresa que negocia em pé de igualdade com o patrão. Se ele passou a ver o antigo colega trabalhador como inimigo na concorrência, o patrão passou a ser visto como o cliente a ser bajulado. Aquele que nos trocará em qualquer situação de discordância e que poderá achar um concorrente disposto a me substituir de um dia para o outro. Tudo isto foi chamado de produtividade.
No mundo econômico em que as empresas foram convertidas em clientes e em que os trabalhadores foram convertidos em pequenas empresas fornecedoras não mais de mão-de-obra, mas de um “serviço”, os grandes aplicativos de entrega se tornaram uma verdadeira vitrine. A partir destes serviços, um grupo de investidores converteu milhares de jovens (ou não tão jovens assim) pobres em fornecedores de serviço, sem nenhum tipo de direito e concorrendo entre si. Recebem cada vez menos e trabalham cada vez mais, o mundo dos sonhos dos defensores desta visão de “produtividade”. Deu certo. O cliente adora uma promoção de entrega grátis. É muito bom receber um sanduíche sem ter que pagar o trabalho do entregador de bicicleta, afinal. Enquanto a classe média fica em casa pedindo sanduíche, esta galera está na rua arriscando suas vidas. O nome disso? “Produtividade”.
A eleição de alguém como Bolsonaro é como uma queda de avião. São vários motivos e vários culpados. E ela é um sintoma de uma grave doença social, a desumanização. Somos completamente incapazes de fazer algo pensando no próximo e isto foi desenhado nos últimos anos. Como pedir ao homem convertido em empresa que se preocupe com algo diferente do que sua taxa de lucro? Empresa quer mais é que seu concorrente se foda. Parte deste processo explica a força de um discurso de sucateamento e destruição dos serviços estatais. Cada serviço estatal significa uma chance a menos de lucro para o homem-empresa. Ontem passou no Senado o projeto de privatização do sistema de saneamento. O homem-empresa não se importa com o fato de que este sistema não será universal. No mundo em que até o homem se transformou em empresa e tem como função gerar lucro, fazer o mesmo com a água é detalhe. É produtividade. O Brasil não aprendeu porra nenhuma com a tragédia.
A chegada da pandemia no Brasil se deu pela elite que trouxe a doença da Europa. Com as mortes concentradas neste extrato social, resolvemos fechar tudo. Três meses depois, a doença parece controlada entre a elite, mas dizimando as comunidades mais pobres. Fechamos quando a doença matava 50 por dia. Estamos reabrindo com a doença matando 1300 por dia. A morte está chegando àqueles que a sociedade se habitou a ver mortos. Àqueles que a sociedade já naturalizou a morte. Eles já não têm água limpa. Continuarão não tendo. Mas desta vez o homem-empresa ganhará mais dinheiro ainda com isto. O homem-empresa está com pressa. A economia não pode quebrar. Definitivamente, somos uma experiência humana que deu muito errado. Normalizamos todos os tipos de absurdo.

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