Os últimos anos têm me mostrado
que eu sou a pessoa mais otimista e ingênuo do mundo. A tragédia que vivemos na
pandemia é a prova disto. Eu juro que, sem querer romantizar a enorme tragédia,
achava que de certa forma sairíamos mais forte como sociedade após viver esta
enorme tragédia coletiva. Eu realmente acreditava que esta tragédia criaria uma
rede de solidariedade e que entenderíamos que somos a mesma coisa. Que
sentiríamos como nossa cada perda humana que ocorresse e que entenderíamos que
a vida é mais importante do que o trabalho ou do que qualquer mercadoria. Achei realmente que a sociedade iria debater de forma séria a situação dos trabalhadores precários, rever nosso programa de proteção social e rediscutir o papel do estado no processo de reparação de desigualdades históricas e distribuição de riqueza. Isto claramente
não vai ocorrer. O cada um por si vai até piorar depois da pandemia. Além das enormes vidas humanas perdidas, nossa sociedade
perdeu qualquer vestígio que restava de humanidade e trucidou qualquer tipo de
esperança que eu ainda tinha. O Brasil lida com a pandemia da mesma forma que
lidou com todas as suas mazelas em sua história. Chegamos a um ponto em que de certa
forma vamos fingir que ela não existe. A tragédia entrou no Brasil através da
elite que trouxe a doença da Europa e, enquanto ela estava concentrada nesta
classe social, havia o consenso de que era necessário fechar tudo. A partir do
momento em que a elite e classe média se salvaram e a doença se espalhou entre
a camada mais pobre, acabou o consenso. Os grupos dominantes agora pressionam
pela abertura do comércio. Enquanto os pobres literalmente se matarão, pegando
transporte público lotado, para garantir o seu sustento, elite e classe média
ficarão em casa aproveitando os benefícios do home office. O número de mortos
nunca foi tão alto. Recordes a cada dia. Mas a galera cansou de ficar em casa.
Salvar vidas não é tão importante quanto curtir uma festa ou uma praia.
Formamos uma classe média que, em geral, é totalmente incapaz de fazer qualquer
tipo de sacrifício em nome do bem estar social.
Cometi o mesmo erro em 2018. Passei
a eleição inteiro tranquilo, achando impossível que Jair Bolsonaro e seu
projeto fascista recebessem mais de 50% dos votos. Qualquer um que for para o
segundo turno com ele, pensava este inocente eu, venceria. Formaríamos uma
frente ampla contra o fascismo. Isto se ele for para o segundo turno, pensava o
inocente eu. Na hora do vamos ver, pensava o inocente eu, a galera vai votar no
Alckmin. Quando eu abri os olhos, Bolsonaro quase ganhou no primeiro turno e
levou com facilidade no segundo. Abri os olhos não só para isto, mas para o
fato da minha vida ser rodeada de Bolsonaros. Os parentes racistas que diziam
que bandido bom era bandido morto. Os colegas da faculdade de economia que
defendiam a unhas e dentes seus privilégios. Os colegas de trabalho que
possuíam asco pelo conhecimento e que passavam o dia fazendo piadas
homofóbicas. Bolsonaro já havia ganho antes mesmo de existir. Ele foi a personificação
de um Brasil que cansou de fingir que tinha algum tipo de civilidade. Não é à
toa que o elogio que alguns eleitores faziam a Bolsonaro é que “ele diz umas
verdades”. A verdade se tornou um conceito aberto e, sem dúvida, no mundo
destas pessoas, Bolsonaro realmente diz umas verdades. Quem vivia numa mentira era
eu. Numa bolha de inocência. E continuei nela em 2020.
São vários os símbolos da era que
vivemos. A ignorância, o ódio, o preconceito e, sem dúvida nenhuma, o Flamengo.
No ano passado, morreram no clube nove jovens da categoria de base, queimados
enquanto dormiam dentro de containers. O clube não foi punido e faz o possível
para adiar o pagamento de indenizações às famílias das vítimas, indenizações
que não chegam a ser igual ao salário pago ao técnico Jorge Jesus. No mesmo ano
desta tragédia, o Flamengo se orgulha daquele que seus torcedores chamam de “melhor
ano da história do clube”. Liberta e brasileirão no mesmo fim de semana! Sobre
a tragédia, a torcida se acostumou. No meio desta enorme tragédia coletiva que
vivemos, a prioridade do Flamengo foi a volta do futebol. Não tenho
conhecimento de nenhuma contribuição que o Flamengo tenha dado à sociedade
neste período. A prioridade é voltar a jogar bola. O argumento é que eles, o
Flamengo, garantiram todo o protocolo de segurança. Foda-se que os outros
clubes não tiveram a mesma oportunidade e foda-se que à volta do clube centenas
de pessoas morrem diariamente. “Não temos nada a ver com isso”, diz a mensagem implícita
do clube. Passou por cima das leis municipais, voltando a treinar antes do
permitido, forçou a volta do campeonato mais insignificante do mundo, o
carioca, e se aproximou do presidente facínora para obter uma melhor negociação
nos direitos televisivos. Pressiona também para a maluquice final, a volta do
público aos estádios. Quem pegar pegou. O Flamengo tem como proteger seus
atletas. Embora não tenha protegido os nove do ninho.
O futebol nos idiotizou. Isto foi
fruto de um trabalho mercadológico que enalteceu a idiotice futebolística. Toda
vez que vemos uma matéria de alguém fazendo algo idiota por “amor ao clube”
somos direcionados a achar aquilo demais. Lembro das matérias de corintianos
vendendo tudo para ir ver um jogo no Japão e a galera pensando “uau, que demais”.
Hoje chegamos a um novo momento, em que estes idiotas são completamente
manipulados por todo tipo de interesse. O Flamengo formou um verdadeiro
exército de imbecis, cuja noção de felicidade é baseada única e exclusivamente
nos interesses do clube, mesmo que isto signifique risco à saúde pública e união
a um projeto de governo fascista. O Flamengo não é o único time a fazer isto,
aliás. O Palmeiras, por exemplo, conta com a anuência de sua torcida num
estranho projeto de uma esquisitíssima instituição financeira que também puxa o
saco do governo facínora. O problema é que nenhum clube o faz de forma tão
desumana e forte como o Flamengo e nenhum tem a força que o Flamengo tem
demonstrado. O Brasil se transformou no Bonde do Mengão sem Freio. Um bonde que
vai, sem freio, rumo ao abismo. É uma distopia digna dos piores filmes de terror
o que virou o Brasil e o papel do futebol neste horror. Enquanto o Flamengo reestreava num jogo sem público e sem transmissão pelo campeonato carioca no Maracanã, quatro pessoas morriam de corona no hospital de campanha ao lado. Mil e duzentas pessoas
morreram apenas ontem na pandemia. Sessenta mil morreram no total. Quantas mais
vão morrer? Não sabemos. Em agosto, volta o Brasileirão.
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