Quinta era dia de Hino Nacional
na escola onde eu estudava. Todxs xs jovens enfileiradxs de acordo com a turma
e o tamanho cantavam a plenos pulmões o “Ouviram do Ipiranga”. Era
possivelmente o momento mais chato da semana. Eu era o nerd da turma e ser nerd
nos anos 1990 significava ser impopular e disciplinado. Eu seguia todas as
regras possíveis da escola católica em que estudava e possivelmente sabia
cantar todo o Hino Nacional certinho, coisa que provavelmente não sei mais
fazer. Não sei se hoje é assim, uma vez que ser nerd meio que entrou na moda,
mas nos anos 1990 o sonho de todx nerd era em algum momento se rebelar. Tinha
até um filme que passava na Sessão da Tarde, A Revolta dos Nerds. As
escolas naquela época valorizavam muito a decoreba e eu passava muito tempo em
casa decorando coisas para ser o melhor aluno da turma. Este é um dos motivos,
aliás, para ter tanta gente na minha geração formada, com mestrado e sei lá mais
o que, mas que é extremamente burra, tipo o Abraham Weintraub. Deu certo, decorei
muita coisa, mas às vezes sobrava tempo para pensar e bastava cinco segundos de
reflexão mínima para perceber que aquilo de cantar o hino nacional era uma
enorme besteira. Na minha vida de ginásio, houve dois momentos em que tentei me
rebelar. Um foi na educação física. Embora eu fosse nerd, eu não era tão ruim
assim em educação física, eu era mediano. Algumas vezes, a aula consistia numa
corrida em torno da escola. Se não me engano eram dez voltas, os alunos bons as
faziam em 8 minutos, eu fazia em 10, os alunos ruins não completavam. O motivo
era um ponto cego que havia atrás da quadra. Os alunos ruins davam uma ou duas
voltas e depois paravam lá para fazer um piquenique. Presunto, queijo e guaraná Bacana de abacaxi.
Um belo dia resolvi me juntar a eles. Aquela corrida era uma merda, afinal.
Preparei-me uma semana para o ato de arrojo. Não dormi à noite. No dia eu
estava ansioso e tremia ao olhar para o sanduíche embrulhado em papel laminado
que havia preparado para a ocasião. Escondi-o dentro do casaco e comecei a
corrida encapotado, mesmo com uma temperatura beirando os trinta graus. Dei
uma, duas voltas, na terceira parei. Os alunos que realizavam o piquenique me
olharam com cara de surpresa. “O que você quer?”. Respondi tremendo que queria
me juntar a eles, com medo de não ser aceito. “Ah, senta aí” foi a resposta de
um deles enquanto servia meu copo de guaraná Bacana. Fiquei por cinco minutos
que pareceram meia hora. O tempo passa realmente devagar para um nerd cometendo
indisciplina. Depois que comi metade do sanduíche voltei a correr. Ao completar
a volta, o professor me olhou com cara de desgosto. Nada era pior para um nerd
dos anos 1990 do que a cara descontente da autoridade. Alguns não escaparam
disto até hoje. Fiz faculdade de economia nos anos 2000 com um grupo de pessoas
que eram como eu e elas são assim até hoje. Na corrida seguinte fiz o meu
melhor tempo, nove minutos e quarenta e cinco segundos. Foi a única vez que
corri abaixo dos dez minutos. A segunda rebelião foi num dia de Hino Nacional.
Um grupo de alunxs se escondia na sala de aula na hora do hino e um dia resolvi
me juntar a elxs. Sim, aquilo era tão, mas tão chato que xs alunxs ruins IAM
para a sala de aula mais cedo para escapar. A impressão que eu tinha é que se
houvesse apenas duas opções no mundo, estudar ou cantar o hino, todo mundo ia
querer estudar e teríamos a melhor turma do planeta. Fiz uma vez e ninguém
percebeu. Era a mesma coisa, presunto, queijo e guaraná Bacana de abacaxi.
Fiquei feliz, me senti um cara malvado. Na segunda semana, enquanto traçava um
belo sanduíche de mortadela, a casa caiu. A inspetora chegou e acabou com a
festa. Como castigo, na semana seguinte eu tive que fazer a coisa mais chata
dentre as mais chatas do mundo, ser o aluno que hasteava a bandeira. A escola
inteira ficava olhando para você e, mais do que isto, você tinha que cantar
realmente o hino certinho. A coordenadora dava olhares feios a cada erro.
Eu acho que sei cantar certinho
só a primeira parte do hino nacional, que é a que toca nos jogos de futebol. A
partir do “Deitado eternamente em berço esplêndido” eu já não sei mais direito
como é. Acho que quase todo mundo é assim, percebi isto no dia em que tive que fui
dispensado do exército. Um grande silêncio se fez na hora do “Deitado
eternamente em berço esplêndido”. O esporte é o único espaço em que o hino
nacional ainda faz algum sentido. Esta história de levar hino, bandeira e o
escambau a sério já causou muita tragédia. Eu era fascinado por futebol na
infância e na adolescência, isto me levou a estudar hinos nacionais e posso
afirmar que, com exceção talvez do hino da Dinamarca, o Brasil tem o pior hino
nacional entre os países que disputam competições futebolísticas. O hino da independência
é bem mais legal. Eu ainda acho que o Brasil teria ganho a Copa de 1998 se os
jogadores cantassem “ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil” ao invés de
“fulguras o Brasil florão da América”. Que porra é fulguras? Eu nunca usei esta
palavra na vida e deduzo que quase ninguém a tenha usado também. Hoje em dia,
embora eu ache legal xs jogadorxs perfiladxs cantando o hino, mesmo em eventos
esportivos acho meio bizarro, não pelxs jogadorxs, mas pela torcida. Lembro-me
que assisti a um jogo do Brasil na copa de 2010 na firma e na hora do hino um
colega que respeito muito colocou a mão no coração e berrou a plenos pulmões o “Ouviram
do Ipiranga”, olhando feio e criticando o desrespeito daquelxs que não faziam o
mesmo. Que coisa estranha um marmanjo colocando a mão no peito para cantar.
Normalmente quando isto acontece alguma enorme merda se aproxima. Vejamos as
manifestações de 2015 e 2016, por exemplo.
A principal razão de detestar o
nosso hino nacional é que ele foi feito por uma elite para ser repetido, mas
não para ser compreendido. Quase ninguém faz a menor ideia do que está sendo
cantado, a composição foi feita pensando quase exclusivamente na forma e não no
conteúdo. Fiz um vestibular em que o exercício da prova de português era
colocar o hino nacional na ordem direta e isto mostra o quanto ele é errado.
Fazendo este exercício fiquei com a impressão de que o hino é daquele jeito
exatamente porque se a galera prestar atenção vai ver que é uma porcaria. Ele é
como a linguagem do mundo jurídico. Uma elite a criou para que a população
ficasse completamente afastada do processo, não a compreendesse e assim ela
mantivesse seu poder. Algumas vezes eu assisto processos judiciais nos EUA, por
exemplo, e mesmo longe de ter o conhecimento linguístico do inglês que tenho do
português, sinto que entendo mais o que é dito lá do que o que é dito aqui. A
elite brasileira não se esforça em nada para ser entendida, criou uma espécie
de mundo próprio em que a linguagem é usada para a dominação e o hino nacional
é de certa forma um símbolo disto. É uma vergonha completa que umx juizx
condene uma pessoa sem que esta entenda o que elx está dizendo. E a vergonha é
para quem condena e não para o condenado.
Detestar o hino não me faz
detestar o Brasil, pelo contrário. O país tem MUITA coisa boa e não podemos nos
esquecer disto, por mais difícil que isto seja quando uma coisa como a que
temos atualmente nos presidindo chega ao poder com a anuência de 60% da
população (contando os que votaram nele e os que votaram nulo). Há algumas
coisas no Brasil que são tão boas que às vezes eu até acredito que são
resultado de alguma força superior, sei lá. A literatura brasileira entre os
anos 1920 e 1960 é uma delas. Drummond, Graciliano, Manuel Bandeira, Clarice,
Rachel de Queiroz, Guimarães, João Cabral, entre outrxs, todxs elxs existiram
na mesma região do planeta meio que ao mesmo tempo. Acho que, sei lá, em 1950
todxs estavam vivos e produzindo ao mesmo tempo. Acho isto surreal, é tão bom
que não dá para acreditar que é verdade. Uma outra pessoa que me faz sentir
isto é um cara chamado Herbert Caro. Ele foi o tradutor das obras do Thomas
Mann para o português. Judeu alemão, ele fugiu da Alemanha com a ascensão dos
nazistas ao poder, aprendeu português e se tornou tradutor. As traduções que
ele fez da Montanha Mágica e de Doutor Fausto são surreais. As
pessoas que dominam os dois idiomas com as quais já conversei sobre o assunto
dizem que ele melhorou o texto original. É maravilhoso. Um terceiro exemplo é o
Cartola. Às vezes fico uns seis meses sem escutar Preciso me Encontrar e
quando escuto tenho a impressão de que foram os dois minutos mais bonitos da
história. Eu sei que a letra não é dele, é do Candeia, mas mesmo assim, puta
que pariu, que coisa linda essa músico com ele cantando. O último exemplo é a
seleção brasileira feminina de basquete dos anos 1980-90. É realmente
inacreditável que Hortência, Paula e Janeth tenham jogado ao mesmo tempo e no
mesmo time. Poucas coisas no mundo esportivo são tão bonitas quanto o movimento
de arremesso da Hortência. Lembro apenas do controle de bola do Maradona e do
movimento de pernas do Ali como coisas tão belas. Uma coisa legal destes
exemplos que dei é que provavelmente só a gente sabe ou pode saber que isto
existe. Só a gente é capaz de ler e realmente entender Drummond e Bandeira ou
de entender o quanto a obra do Cartola é bonita. Claro que todo país tem isto.
Mas lembrar disto me torna menos angustiado com relação ao nosso presente.
Bolsonaro em algum momento vai para a lata de lixo, como Médici foi. A Rachel
de Queiroz vai ficar. Isto me alivia um pouco.
A principal função da linguagem é
a comunicação. Entender e ser entendido. A elite, em geral, é extremamente
conservadora em relação à linguagem, como é em relação a tudo, porque a
linguagem funciona para ela como uma forma de dominação. O que ela chama de
“português correto” é aquele que permite que esta relação siga funcionando. É ela
que impõe o que chamo de “ditadura da gramática”, em que uma série de regras
tenta definir como as pessoas devem se comunicar em determinada língua. Isto
funciona em certos ambientes, é óbvio, mas não no cotidiano. O português
correto sem aspas é aquele em que todxs xs participantes da conversa são
capazes de compreender e participar. Se você é capaz de ser compreendidx por
uma pessoa, mas quer falar “bonito” e desta forma é incompreendidx, o problema
é você e não a outra pessoa. Por isso não há nada mais errado do que uma sessão
do Supremo. Aquilo é o português mais errado possível, porque boa parte dxs
envolvidxs não consegue entender um caralho do que é dito. A língua é um ser
vivo em eterna transformação e isto é lindo. O pretérito mais que perfeito
simples, por exemplo, morreu. Ninguém, à exceção talvez dxs juízxs do Supremo,
diz “eu falara”. O certo na realidade é “eu tinha falado”. “Eu tinha falado”
está sempre certo, “eu falara” pode até estar certo em situações específicas,
mas é provável que esteja errado. Parto do pressuposto que numa conversa
informal se algo não é compreendido a culpa é sempre do falante, e não do
ouvinte. É apenas uma opinião pessoal.
Linguagem também é arte e neste
caso tudo vale. Para mim, tudo que se propõe a ser arte deve ser encarado como
arte. Nenhum argumento é mais escroto do que “isto não é arte”. Podemos falar
que tal coisa é boa ou ruim, de acordo com gostos pessoais, mas nunca falar que
algo não é arte. Ler Drummond é descobrir algo novo a cada leitura. Já li A
Um Hotel em Demolição, meu poema favorito dele, uma quinhentas mil vezes e
cada vez que leio percebo algo novo em ritmo, em rima ou em referência. Dxs
poetas brasileirxs o que mais me encanta no momento é João Cabral de Melo Neto,
porque ele consegue fazer algo que julgo sublime, que é escrever textos profundos
de forma simples. Vejam esta coisa linda que se segue:
A educação pela pedra, 1965
Uma educação pela pedra: por
lições;
Para aprender da pedra,
frequentá-la;
Captar sua voz inenfática,
impessoal
(pela de dicção ela começa as
aulas).
A lição de moral, sua resistência
fria
Ao que flui e a fluir, a ser
maleada;
A de poética, sua carnadura
concreta;
A de economia, seu adensar-se
compacta:
Lições da pedra (de fora para
dentro,
Cartilha muda), para quem
soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no
Sertão
(de dentro para fora, e
pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe
lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria
nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a
pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a
alma.
Olha que coisa linda ! A
quantidade de coisas que ele consegue passar usando palavras simples. Pedra,
por exemplo, oito vezes nas dezesseis linhas do poema, cada uma com um
significado diferente. Nada é mais lindo do que o sublime alcançado pela
simplicidade. E nada é mais feio do que o feio alcançado na tentativa de ser
complexo. Um hino, afinal, é arte ou comunicação? Pode ser as duas coisas. O
hino nacional brasileiro falha nas duas.
Já na linguagem para comunicação,
o meu conceito de beleza é diferente. O bonito é aquilo que alcança x ouvintx.
Não há nada pior no mundo do que uma pessoa que corrige as outras em conversas
informais. Elas são tão chatas quanto o nosso hino nacional. Uma coisa que eu
acho maravilhosa que vem acontecendo no português de São Paulo é a morte da
conjugação no presente. Você fala, ele fala, nós falamos, vocês falam, eles
falam. Todas estas conjugações estão sendo substituídas por “fala”. Você fala,
ele fala, nós fala, vocês fala, eles fala. Eu acho lindo como a evolução de uma
língua é incontrolável e leva sempre à maior facilidade. A única conjugação que
está sobrevivendo no presente é a da primeira pessoa. A gente não pode falar
“eu fala”, para todas as outras pessoas isto funciona. Já No pretérito
imperfeito a morte da conjugação está acontecendo em todas as pessoas. Eu
falava, você falava, ele falava, nós falava, vocês falava, eles falava. E sim,
repito, isto é lindo. É lindo porque facilita a comunicação. Isto vai chegar na
língua escrita algum dia? Não faço ideia. Provavelmente não. A língua escrita
tem a função de conectar pessoas que falam “idiomas diferentes”. Mas é
libertário falar nós falava. Porque o “mos” não serve para nada. O “nós” já
especifica qual a pessoa que estamos utilizando afinal.
Vivemos numa sociedade opressora
em que a linguagem é usada para dominar e está inserida num todo opressor. E
parte desta opressão está ligada à ideia dos gêneros. Em português (e em todas
as línguas latinas, que eu saiba), o pronome do plural em situações que não
sejam exclusivamente femininas é o masculino. Como disse Paulo Freire, se numa
sala tivermos 100 pessoas, sendo 99 mulheres e 1 homem, usaremos o pronome
masculino “eles”. Isto quer dizer algo? Sim, quer ! Pelo simples motivo de que
tudo quer dizer algo. Por que usamos o termo “denegrir” como ofensa? Porque
somos uma sociedade racista e a língua reflete o nosso racismo. A luta contra o
racismo pede sim mudanças na língua. Sociedades se transformam e línguas não
são dados fixos. Elas não apenas podem como devem seguir transformações
sociais. O “o” e o “a” podem não mais serem capazes de atender todas as
necessidades sociais e faz todo sentido imaginar que surja um “e” ou um “x”. E
mais do que isto, se isto ocorrer, é função da pessoa que fala se adequar ao
desejo da pessoa que não mais se reconhece como “o” ou “a”. Uma pessoa tem o
direito de escolher qual artigo a define. As mudanças na língua acontecem não
apenas para facilitar, mas também para incluir e para libertar. O gênero neutro
é uma libertação. Se a pessoa que ser “x”, chame-a de “x”. O nome disto é
educação. Todos temos um papel na sociedade de opressores e oprimidos. Cabe a
quem herda os privilégios de séculos de opressão ouvir e se adequar as demandas
dos oprimidos. E não reclame de como isto será difícil. Perceba o quanto para
você tudo é mais fácil. É assim que criaremos uma sociedade melhor. Vida longa
ao X.