terça-feira, 5 de janeiro de 2021

O prédio do Jaguaré

 


A sexta-feira que antecedia o Natal era dia de festa no prédio do Jaguaré. Aquele dia começava a ser o assunto do mundo em que eu fazia parte na empresa pelo menos um mês antes. Eu trabalhava em compras e fornecedores nos enchiam de bebidas como brinde de fim de ano, numa relação que hoje considero um tanto quanto estranha. Eles adoravam nos dar uísques, que eu basicamente acho a pior bebida do mundo. Acho meio de mau gosto, provavelmente por causa de um tio viciado em bingo que eu tinha quando era criança. A imagem dele com um copo de uísque e um cigarro na mão enquanto esperava o número 32 ficou sempre associada a esta bebida para mim. Boa parte dos fornecedores lembrava este meu tio, aliás. Homens de classe média de terno, barrigudos e falando merda. Pareciam tão inofensivos à época. Era extremamente libertário poder encher a cara uma vez por ano no ambiente repressor de trabalho.

A festa da Editora era extremamente tosca. Eu trabalhava no setor editorial e ele está em crise pelo menos desde 2005, o que significava que nunca havia dinheiro para gastar nesta festa. Na verdade o evento ainda existia apenas porque o diretor geral da empresa era um péssimo DJ e tinha nesta festa um dos poucos eventos em que podia obrigar pessoas a escutá-lo. Sua seleção de músicas era tudo que havia de pior. Tenho pavor de gente que gosta de Jota Quest. A alimentação da festa lembrava uma festa de criança de 7 anos. Carne louca e cachorro quente na bisnaguinha. A cerveja era a que tinha sobrado de uma outra festa que a Editora organizava em outubro para celebrar uma revista de celebridades. Normalmente alguma marca ruim patrocinava o evento, isto quer dizer que tínhamos Bavaria e 1808 chocas animando a noite. Como tínhamos todo aquele arsenal de bebida dado pelos fornecedores, conseguíamos escapar da sobra de outubro. E naquele dia tínhamos muito síndrome do pequeno poder. Éramos todos fodidos de um departamento completamente negligenciado pela empresa, mas naquele dia tínhamos as bebidas no porta-malas. “Só vamos dividir com quem é gente fina com a gente”, pensávamos nós enquanto andávamos poderosos pelos corredores da firma.

A festa tinha dois momentos. O primeiro começava às 19 horas. Era o momento da obrigação. Espero que a descrição inicial tenha mostrado o quão tosca a festa era. Isto significava que a parte mais chique da empresa odiava o evento e não via a hora de ir embora. Gerentes, diretores, publicitários, jornalistas, todos odiavam aquela palhaçada. Mas tinham que ficar para serem vistos pelo chefe mais próximo e pelo diretor-geral DJ. Ele fazia um discurso anual que deveria acontecer às 20.30, mas que atrasava pelo menos uma hora. Este discurso era uma coisa surreal que já de certa forma previa o que seria o Brasil a partir de 2016. Todo ano começava com a frase “Boa noite, primeiramente peço desculpas pelo atraso” e a isto se seguia uma série de paranoias, mentiras e autobajulação. A empresa tinha, mais uma vez, calado todos os críticos que queriam vê-la no chão, iria valorizar os funcionários no ano seguinte e era um ótimo lugar para trabalhar. Ninguém queria derrubar a empresa, janeiro teria corte e todo mundo estava meio deprimido, mas mesmo assim cada palavrão e xingamento causava júbilo na elite da empresa, formada, como já dito, por gerentes, diretores, publicitários e jornalistas. Ao fim do discurso, seguia-se o DJ, mas isto era demais até para esta elite. A obrigação já estava cumprida, agora era hora de ir para casa ou aproveitar a noite para encontrar o/a amante. Na frente da editora tinha um motel que bombava nesta noite.

Para nós que ficávamos, a noite começava neste momento. Já estávamos alegres, mas a partir de agora ninguém é de ninguém. A moça do planejamento vai sair carregada, o rapaz do jurídico vai vomitar, o casal de jovens aprendizes vai se pegar no sofá. Era libertário. A isto se seguiam os outros 364 dias do ano...

Eu entrei pela primeira vez no prédio do Jaguaré aos 20 anos, no longínquo ano de 2004. O prédio era extremamente diferente dos locais em que eu fazia entrevistas de estágio. Na época fui direto para o processo de seleção que era num galpão caindo aos pedaços depois do estacionamento. Devia ter umas 300 pessoas naquele dia disputando umas 15 vagas de estágio. Seria o meu primeiro contato com o que há de pior no mundo, o departamento de RH. Sairia deste prédio apenas em 2015.

Por 11 anos, este prédio foi um dos centros da minha vida. Foi provavelmente o lugar que mais frequentei na vida depois das minhas casas. A beleza das festas da Editora é que elas conseguiam ser tão toscas quanto o prédio. Era tudo tosco e meio caindo aos pedaços. Quando entrávamos no prédio a primeira coisa que víamos era a entrada e de cara já tínhamos um galpão abandonado convertido em estacionamento. À direita tínhamos o restaurante e a lanchonete, à esquerda o prédio principal e ao fundo diversos galpões, alguns abandonados, outros convertidos em centros de treinamento e convenção, num deles aconteciam as festas. No meio deles, vários outros estacionamentos. A principal característica da empresa era a verticalização. Era uma empresa extremamente hierarquizada. Gerentes e diretores tinham direito a um estacionamento coberto (volta e meia caia uma telha lá, aliás), o resto da empresa guerreava por uma vaguinha mais perto do prédio. O coordenador promovido a gerente ganhava um adesivo novo no carro, dando a ele acesso a este novo estacionamento. Foda-se que era uma porra de um galpão abandonado que podia cair a qualquer momento, já era o suficiente para diferenciá-lo do restante. Havia, além disso, uma vaga de estacionamento que era a hiper especial, a do diretor-geral DJ. Ele era o único que podia parar o carro dentro do subsolo e tinha, pasmem, um elevador exclusivo. Dos quatro elevadores do prédio, um parava exclusivamente no subsolo e no último andar, porque o diretor-geral não queria correr o risco de encontrar nos outros 364 dias do ano o seu público da festa de fim de ano. Este elevador era liberado para o térreo quando algum político importante vinha visitá-lo. Lembro-me de Marta Suplicy e Sérgio Cabral visitando a editora e tendo a honra de pegar este elevador. Diz a lenda que era um elevador maior aliás, mas isto não posso confirmar. Li uma vez em algum lugar que empresas em que o diretor-geral costuma ficar no último andar são uma merda, são locais em que este costuma se enxergar como um “Deus” que está acima de tudo controlando. Faz sentido.

O transporte público era bastante escasso. O que nos restava era a estação de trem separada do prédio por uma ponte, que era tipo o lugar mais perigoso do mundo. Não há uma pessoa que fizesse aquele caminho que não tenha sido assaltada ao menos uma vez. Para escapar disso, tínhamos que pegar um ônibus para atravessar a ponte. Basicamente pagávamos uma passagem para descer no ponto seguinte. Uma destas pessoas assaltadas foi esta que escreve. Levaram o rádio da motorola que a empresa havia fornecido aos funcionários e por isso tive que abrir um BO. Chegando na delegacia mais próxima, o delegado disse que eu tinha que abrir o BO na delegacia mais perto da minha casa. Isto era uma sexta à noite. No sábado tentei ir na delegacia da Santa Cecília, mas BO eles só abriam de segunda. Na segunda lá fui eu. No caminho de ida, vi um carro sendo roubado na frente da delegacia. Lá chegando, quando passei meu endereço, o delegado disse que eu deveria abrir o BO na delegacia da Sé, que era mais próxima do meu endereço do que a da Santa Cecília. Na delegacia da Sé, por sua vez, o delegado me perguntou onde tinha sido o assalto. Eu respondi que foi na Ponte do Jaguaré e ele me disse que então eu deveria abrir o BO lá. Eu repliquei que o delegado de lá havia me dito na sexta que eu deveria abrir o BO na delegacia mais próxima da minha casa. “Ele disse isto porque é um filho da puta”, disse o delegado da Sé. Voltando para a delegacia do Jaguaré, encontrei um plantonista que aceitou fazer o meu BO, após o seguinte diálogo:

- Onde você foi assaltado?

- Na ponte do Jaguaré.

- Puta, lá é foda. Não sei por que vocês insistem em atravessar aquela porra a pé.

- É foda mesmo...

- Quando foi o assalto?

- Na sexta.

- E porque você não fez o BO na sexta, caralho?

Não havia nada na região do prédio do Jaguaré. Tudo que havia era o motel que bombava na sexta que antecedia o Natal e uma churrascaria, que era o único lugar em que era possível fazer uma confraternização entre colegas e onde os fornecedores nos levavam para almoçar. Ìamos tanto lá que conhecíamos a personalidade dos garçons. O cara que cortava a picanha era mal humorado. Uma certa vez não quis me servir carne porque eu ainda tinha um pedaço no prato. No dia fiquei contrariado, mas hoje com a sabedoria que a distância do tempo dá, percebo que ele estava certo. Nós adorávamos o cara que servia carne de cordeiro. Ele era tão bonzinho que dava vontade de pedir a carne de cordeiro só por causa dele. Mas ao mesmo tempo, aprendemos depois que a pior coisa do mundo era pedir este cordeiro, porque ele começaria a aparecer a cada cinco minutos oferecendo a carne.

Em 2015 saímos do prédio do Jaguaré. A negociação pela renovação do aluguel ia bem, até o momento em que por algum motivo o ego do diretor-geral foi ferido. Mudamos para o Itaim. Uma nova realidade nos esperava. Bares de cerveja artesanal, restaurantes com comidas naturais etc. A maluquice em que entrou o Brasil a partir daquele ano, porém, logo me fez começar a ter saudade do isolamento no Jaguaré. Ter que ir todo dia para o Itaim naquela época era saber que o pior estava por vir. Lembro-me de uma época em que não podíamos usar vermelho para ir trabalhar porque corríamos risco de ser xingados. E isto é sério, aconteceu mesmo. O dia em que Sérgio Moro liberou as conversas grampeadas ilegalmente de Dilma e Lula foi o mais bizarro. Eu estava na rua indo encontrar uns amigos neste dia. De repente, do nada, um monte de homem branco e velho começa a sair na varanda de casa e a gritar com camisas e bandeiras do Brasil. Entro num bar para ver o que aconteceu e vejo um plantão da Globo ao vivo com o palácio do planalto cercado por gente branca com ódio. Ainda não tinha ouvido as conversas, mas naquele dia pensei: “fodeu”. Encontrei em seguida um futuro ex-amigo animado e revoltado com a novidade.

- Acho que o Lula se fodeu, hahahaha, disse ele.

- Você já ouviu as conversas?

- Já sim, vou te mandar.

Após ouvir, eu disse:

- Não tem nada nesta porra.

- Eu também achei que não.

- Então por que você tá tão feliz?

- Porque ninguém tá percebendo que não tem nada e o Lula vai se foder hahahahaha

Ele estava certo. Não só Lula se fodeu. Moro continuou atropelando a lei, prendeu Lula ajudou a eleger um capitão fascista, virou ministro dele e hoje temos 200.000 mortos na pandemia.

O prédio do Jaguaré representa na minha vida tudo que é anterior a isto. O prédio do Jaguaré é o Brasil do metalúrgico e da guerrilheira que focavam na distribuição de renda. O prédio do Itaim é o Brasil do cinismo. O prédio do Jaguaré é o local em que muitos jovens de Osasco tiveram sua primeira oportunidade profissional. O prédio do Itaim é este Brasil sendo descontruído, mas se achando mais chique. A Editora entrou na merda após a mudança. Revistas foram fechadas, funcionários demitidos, tudo deu errado. Mas com mais glamour.

Entrei no prédio do Jaguaré aos 20 anos. Saí de lá aos 31. Muita coisa aconteceu na minha vida tendo lá como pano de fundo. Me formei, me apaixonei, fiz merda, algumas consertei, outras não, vivi. A maior parte das pessoas do meu mundo atual conheci no prédio do Jaguaré. Há algumas semanas um amigo passou lá e o prédio está basicamente abandonado. Ninguém quis o ponto após a saída da Editora e o prédio que foi por onze anos um dos centros da minha vida é hoje um episódio de “A Terra sem Ninguém”. Simboliza uma parte da minha vida que se foi. Aquele prédio das festas de fim de ano. Saudades das bisnaguinhas de cachorro quente e das Bavarias. Saudade do país do metalúrgico. Podia até ser meio tosco e ter defeitos. Mas funcionava do seu jeito. 


3 comentários:

  1. Lendo o trecho onde você fala sobre o conteúdo das conversas vazadas, lembro que tive uma reação parecida com a sua (Não tem nada nessa porra!). Detalhe: nunca fui eleitor do Lula ou da Dilma. Porém, me considero uma pessoa de bom senso, valorizo a justiça. E, quando aconteceu o ocorrido, não pude evitar o pensamento de que alguma coisa estava muito errada. E estava. A lei estava sendo torcida para sustentar uma situação que beneficia ainda hoje um monte de senhores de engenho conservadores sedentos por poder. Todos perdemos com isso, mas a maioria ainda não percebe.

    ResponderExcluir
  2. O Prédio do Jaguaré é um grande exemplo do nosso país. Aprendemos muito naquele lugar. E talvez, a esquerda, assim como o Jaguaré precisa renascer, como um novo dentro de toda a destruição.
    Obrigada por me lembrar dessa época

    ResponderExcluir
  3. Lembro das festas de fim de ano.
    O DJ era o Frederic Zoghaib Kachar, conhecido por todos como Fred, no tempo que trabalhei lá ele ainda era o diretor de finanças e recursos.
    O diretor geral era o Sr. Juan Ocerin, que foi demitido no ano de 2008, e suicidou-se no ano de 2013 pulando da janela de seu apartamento.
    A lanchonete era a Carmo & Lucca, onde tinha a happy hour nas sextas feiras a partir das 18 horas, com o geladissímo chopp escuro da cervejaria Xingú, e o inigualável Beirute feito pelo Cidão, e tinha uma funcionária da editora globo chamada Thais Itaqui, que cantava na banda Vitrola Acústica e as vezes eles tocavam na happy hour da lanchonete.
    Sai de lá no ano de 2006, mas a avenida jaguaré continuou fazendo parte da minha rota diária a caminho do novo local de trabalho, passava lá em frente pela manhã rumo a cidade universitária, e no período da tarde rumo ao Villa lobos.
    Naquele prédio funcionavam também o jornal Valor Econômico no mezanino e primeiro andar, e o jornal Meio & Mensagem no segundo andar.
    O primeiro a deixar o prédio se não me falha a memória foi o jornal Valor Econômico, e em seguida o jornal Meio & Mensagem, a Editora Globo foi embora por ultimo.
    Há alguns anos atrás eu sempre parava no posto Shell que fica em frente pra comer um lanche, e fiz amizade com um segurança que tomava conta das antigas instalações da editora, e que deixou eu entrar lá pra ver o que tinha restado das antigas instalações, os galpões da logística, a lanchonete, o Cedoc e a academia de competências já tinham sido demolidas, mas o prédio ainda estava lá.
    O prédio estava vazio, mas ainda não tinham iniciado o desmantelamento, ainda tinha elevadores, portas, eletricidade, água, e todo o maquinário do ar condicionado central ainda estava no subsolo, a imponente torre branca da caixa d`agua ainda estava lá.
    Circulei por todas as dependências da edificação e do terreno, transitar por aquele local totalmente deserto, local que outrora entre efetivos e terceirizados acomodava mais de 500 funcionários, que em cada metro quadrado exalava movimento, conversas, idéias, telefones que tocavam freneticamente, e anos depois apenas o vazio e o silêncio total, foi uma experiência surreal.
    Segundo o que o segurança me disse na época, a construtora ia construir um condomínio residencial no local e pretendia aproveitar o antigo prédio para fazer um mini shopping e área de lazer.
    Antes mesmo do ano de 2006 eu já sabia que em breve a editora teria que deixar o local, pois o mesmo pertencia a massa falida da Cooperativa agrícola de cotia ( C.A.C ), e tinha sido adquirida em leilão pela construtora.
    Gostei do seu Blog, obrigado pela postagem.
    Se tiver algumas fotos daquela época posta elas aqui, com certeza tem muita gente que vai gostar de relembrar.



    ResponderExcluir